17 novembro 2014

pablo neruda / tu eras também uma pequena folha



Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.

  

pablo neruda




16 novembro 2014

laurie anderson / o sonho anterior



          (para walter benjamim)


Hansel e Gretel estão vivos e de boa saúde
E a viver em Berlim
Ela é empregada num bar
Ele teve um papel num filme de Fassbinder
E à noite sentam-se a descansar
Bebendo Schnapps e gin
E ela diz: Hansel, dás mesmo cabo de mim
E ele diz: Gretel, quando queres és mesmo cabra
Ele diz: Desperdicei toda a minha vida com a nossa estúpida lenda
Quando o meu verdadeiro e único amor
Era a bruxa má

Ela disse: O que é a história?
E ele disse: A História é um anjo
Soprado para trás na direcção do futuro
Ele disse: A História é uma pilha de destroços
E o anjo quer voltar para trás e consertá-los
Reparar as coisas que foram quebradas
Mas há uma tempestade que sopra do Paraíso
E que não pára de empurrar o anjo
Para trás na direcção do futuro
E esta tempestade, esta tempestade
Chama-se
Progresso.





laurie anderson
anéis de fumo
poemas
tradução de joão lisboa
assírio & alvim
1997





15 novembro 2014

álvaro de campos / apontamento



A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.

Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?

Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.

Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.

Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-no especialmente, pois não sabem porque ficou ali.




álvaro de campos








14 novembro 2014

manoel de barros (1916-2014)



Matéria de poesia



(1)

Todas as coisas cujos valores podem ser
Disputados no cuspe à distância
Servem para a poesia

O homem que possui um pente
E uma árvore
Serve para poesia

Terreno de 10×20, sujo de mato – os que
Nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
Servem para poesia

Um chevrolé gosmento
Coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca
São bons para poesia
As coisas que não levam a nada
Têm grande importância
Cada coisa ordinária é um elemento de estima

Cada coisa sem préstimo
Tem seu lugar
Na poesia ou na geral

O que se encontra em ninho de joão-ferreira:
Caco de vidro, garampos,
Retratos de formatura,
Servem demais para poesia

As coisas que não pretendem, como
Por exemplo: pedras que cheiram
Água, homens
Que atravessam períodos de árvore,
Se prestam para poesia

Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
E que você não pode vender no mercado
Como, por exemplo, o coração verde
Dos pássaros,
Serve para poesia

As coisas que os líquenes comem
-sapatos, adjetivos -
têm muita importância para os pulmões
da poesia

Tudo aquilo que a nossa
Civilização rejeita, pisa e mija em cima,
Serve para poesia

Os loucos de água e estandarte
Servem demais
O traste é ótimo
O pobre-diabo é colosso
Tudo que explique
     O alicate cremoso
     E o lodo das estrelas
Serve demais da conta

Pessoas desimportantes
dão para poesia
qualquer pessoa ou escada

Tudo que explique
     a lagartixa de esteira
     e a laminação de sabiás
é muito importante para a poesia

O que é bom para o lixo é bom para poesia

Importante sobremaneira é a palavra repositório;
A palavra repositório eu conheço bem:
     Tem muitas repercussões
Como um algibe entupido de silêncio
     Sabe a destroços

As coisas jogadas fora
Têm grande importância
- como um homem jogado fora

Aliás, é também objeto de poesia
Saber qual o período médio
Que um homem jogado fora
Pode permanecer na Terra sem nascerem
Em sua boca as raízes da escória

As coisa sem importância são bens de poesia

Pois é assim que um chevrolé gosmento chega
Ao poema e as andorinhas de Junho.


manoel de barros
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




13 novembro 2014

eugénio de andrade / os amantes sem dinheiro



Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com  a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.



eugénio de andrade





12 novembro 2014

gastão cruz / paisagem escocesa



A relva chega ao mar, sempre uma praia de erva contra o cinzento da água.
Uma bandeira branca vai correndo. Um farol; o cemitério de Dunbar. Ao longe,
pequenas cristas de espuma quase coroam o verde agressivo. O sol, penetrando
entre as escamas, cai sobre ele, num terror de esmeralda. O céu é um peixe.
Em variação, a luz parece baixa ou retém-na, por vezes, o céu cheio de
imagens. Por cima, a nuvem negra, concentrada. Mas no resto do céu figuras
claras. Numa lâmina, a prática da prata.



gastão cruz
poemas reunidos
dom quixote
1999



11 novembro 2014

guillaume apollinaire / a ponte mirabeau




Sob esta ponte passa o rio Sena
             e o nosso amor
      lembrança tão pequena
sempre o prazer chegava após a pena

             Chega a noite a hora soa
             vão-se os dias vivo à toa

Mãos dadas nós fiquemos face a face
             enquanto sob
      a ponte dos braços passe
de eternas juras tédio que se enlace

             Chega a noite a hora soa
             vão-se os dias vivo à toa

E vai-se o amor como água corre atenta
             e vai-se o amor
     ai como a vida é tão lenta
e como só a esperança é violenta

            Chega a noite a hora soa
            vão-se os dias vivo à toa

Dias semanas passam à dezena
            nem tempo volta
     nem nosso amor nossa pena
sob esta ponte passa o rio Sena

            Chega a noite a hora soa
            vão-se os dias vivo à toa




guillaume apollinaire
poesia do século xx
(de thomas hardy a c. v. cattaneo)
tradução de jorge de sena
editorial inova
1978




10 novembro 2014

vittorio sereni / as mãos



Estas tuas mãos que sobre ti se fecham:
fazem-me noite no rosto.
Quando lentamente as abres, lá à frente
a cidade é aquele arco de fogo.
O sono futuro
será  de persianas riscadas de sol 
e eu terei perdido para sempre
aquele sabor de terra e vento
quando as voltares a abrir.



vittorio sereni
frontiera
edizione di corrente
milano 1941


(versão de stefano cortese e gil t. sousa)






09 novembro 2014

özdemir ince / como eclode um poema



Nascer do sol, cigarras, cantos de galo,
barco no porto, ruídos diversos,
Ulker suspira no sono, respiração agitada,
empurras as persianas da varanda; crepúsculo,
colina escura,
casas brancas de arcadas, campos de milho
ao fundo,
figueiras do diabo, salgueiros; um clarão,
um só loureiro,
chilrear de pássaros, ruído de gotas           
a cair na água,
e, sobretudo, a própria voz de Agosto,
que não deixa dormir.
 
Tudo são apenas descrições, observações,                             
quando muito notas para um poema,
que amanhã se repetirão no mesmo momento,
mais ou menos no mesmo minuto,
quer vejas ou não, quer entendas ou não,
e mesmo que não abras a porta da varanda,            
podias dormir, não acordar mais, estar
num barco ou em outra ilha,
imaginar o mesmo acordar sumptuoso,
sem uma só testemunha:
se podes sincronizar o teu sono, o teu olho,
o teu ouvido e a tua insónia.
Assim são apenas notas de viagem,
notas da aurora, observação                                              
de pequenos factos, descrições, sensibilidades
cintilantes,
salvo se não conseguires arrumar na imagem
 rectangular do quadro da janela, sim, precisamente,
as oliveiras perenes e as folhas poeirentas
das figueiras.

O que se chama poesia pode começar                  
pelo odor sufocante da seiva da figueira:
quer dizer que ela depende de ti, do teu olfacto, da tua aptidão para perceber esse odor,
para o reproduzir,
e para transpor, num canto de galo, a tua cidade natal  
para esta ilha;
talvez, então, se possa passar qualquer coisa;
nesse momento, - quem sabe? -
um poema pode começar.
 

özdemir ince
poemas
tradução de egito gonçalves




08 novembro 2014

isidore ducasse conde de lautréamont / cantos de maldoror



Ó velho oceano de vagas de cristal, assemelhas-te relativamente àquelas marcas azuladas que vemos no dorso pisado dos musgos; és um imenso azul aposto ao corpo da terra: gosto desta comparação. Assim, mal te vemos, passa um sopro prolongado de tristeza, tal um murmúrio da tua brisa suave, deixando inapagáveis traços na alma profundamente abalada, e invocas a lembrança dos teus amantes, sem que nem sempre nisso reparemos, e os rudes começos do homem, onde ele trava conhecimento com a dor que não mais o abandona. Eu te saúdo, velho oceano!

Ó velho oceano, a tua forma harmoniosamente esférica, que a1egra a face grave da geometria, por demais me lembra os o1hos pequeninos do homem, semelhantes aos do javali, de tão pequenos, e aos dos pássaros nocturnos pela perfeição circular do contorno. No entanto, em todos os séculos o homem se julgou belo. Por mim, creio antes que o homem só por amor-próprio acredita na sua beleza, mas que não é belo de verdade, e o suspeita; se não, porque olha ele com tanto desprezo o rosto do semelhante? Eu te saúdo, velho oceano!

Ó velho oceano, tu és o símbolo da identidade: sempre igual a ti próprio. Não varias de um modo essencial, e se algures as tuas vagas são furiosas, mais adiante, em qualquer outra zona, ei-Ias na mais completa calma. Tu não és como o homem, que pára na rua para ver dois buldogues morderem-se pelo pescoço, mas que não pára quando um enterro passa; que de manhã está acessível, e de mau humor à tarde; que hoje ri e amanhã chora. Eu te saúdo, velho oceano!




isidore ducasse
conde de lautréamont
cantos de maldoror
poesias
trad. pedro tamen
fenda
1988





07 novembro 2014

jorge luís borges / limites




De todas as ruas que escurecem ao pôr-do-sol,
deve haver uma (eu não sei dizer qual),
em que já passei pela última vez
sem perceber, refém daquele Alguém



que, com antecedência, fixa leis omnipotentes,
ajusta uma balança secreta e inflexível,
para todas as sombras, formas e sonhos
tecidos na textura desta vida.



Se há um limite para todas as coisas, e uma medida,
e uma última vez, e nada mais, e esquecimento,
quem nos dirá a quem, nesta casa,
nós, sem saber, já dissemos adeus?



Pela janela que amanhece retira-se a noite
e entre os livros empilhados que lançam sombras
irregulares na mesa difusa,
deve haver um que eu jamais lerei.



Há uma porta que tu fechaste para sempre
e algum espelho te esperará em vão;
Há uma, entre todas as tuas memórias,
que agora está perdida além da evocação.



Tu nunca voltarás a recapturar o que o Persa
disse no seu idioma tecido com pássaros e rosas,
quando, ao pôr-do-sol, antes que a luz disperse,
tu queres pôr em palavras tantos inesquecíveis.



Ao amanhecer pareço ouvir o turbulento
murmúrio de multidões crescendo e dissolvendo;
tudo por que fui amado, esquecido,
espaço, tempo, e Borges, vão me deixar agora.



jorge luis borges








06 novembro 2014

jaime rocha / zona de caça


17.

Não se sabia se eram anjos, os rapazes, se tinham
vindo do círculo dos infernos ou se nasceram ali
mesmo no meio das mulheres, sozinhos, como
brinquedos domésticos. Nem se a mulher havia
sido desfigurada por um corvo, competia ao
guerreiro julgar essas imagens logo que o cavalo
o transportasse por entre as árvores vestido de
cromados. Foi num desses dias de Junho, numa
paisagem em que um pastor de cabras varava
uma ribeira quase seca, que o cavaleiro saiu de
dentro de uma pintura levando consigo a mulher.
Tudo se passara inesperadamente, com os pássaros
agitados, aos gritos. Uma grande língua de cobra
tapara o quadro do pintor onde eles existiam e
lançara-os contra uma casa no meio da plantação.
Houve quem dissesse que era um pintor das águas,
lá no Bósforo, onde os cavalos são saudados pelos
peixes. Toda a gente sabia que ele dava vida às
cores e ressuscitava os mortos.

  


jaime rocha
zona de caça
relógio d´água
2002




05 novembro 2014

antónio ramos rosa / na grande confusão



Na grande confusão
deste medo 
deste não querer saber 
na falta de coragem 
ou na coragem de 
me perder me afundar 
perto de ti tão longe 
tão nu
tão evidente 
tão pobre como tu 
oh diz-me quem sou eu 
quem és tu?
  


antónio ramos rosa