06 agosto 2014

mário cesariny / o moço pastor que ali vem cantar




III

o moço pastor que ali vem cantar
a sombra que deu
aos montes que têm o rio a passar
outro azul no céu

vê perto seu canto que ouvido se esconde
e é o que ele sabe
mas longe na noite sem fim lhe responde
a mesma verdade

que é a estação fria como está nos ramos
e na lua-cheia
pequeno cordeiro que há anos e anos
ele pastoreia



mário cesariny
manual de prestidigitação
vizualizações
assírio & alvim
1981




05 agosto 2014

rené char / o inofensivo


Choro quando o sol se põe porque ele te esconde da minha vista e porque não sei entender-me com os seus rivais nocturnos. Embora ele esteja baixo e agora sem febre, é impossível contrariar o seu declínio, suspender a sua desfolhagem, arrancar ainda algum desejo à sua desfolhagem, arrancar ainda algum desejo à sua claridade moribunda. A sua partida funde-te com a sua obscuridade, como a lama do leito se dissolve na água da torrente para além do entulho das margens destruídas. Dureza e moleza de origens diferentes têm então efeitos semelhantes. Cesso de receber o hino da tua palavra; subitamente já não te vejo inteira ao meu lado; não é o fuso nervoso do teu pulso que eu seguro na mão, mas o ramo oco de uma qualquer árvore já morta e gasta. Só se dá nome ao arrepio, e a mais nada. É de noite. Os artifícios que se acendem acham-me cego.

De verdade só chorei uma única vez. O sol ao desaparecer tinha cortado o teu rosto. A tua cabeça rolara na fossa do céu e eu já não acreditava no futuro.

Qual é o homem da manhã e qual o homem das trevas?




rené char
este fanático das nuvens
poemas dos dois anos
palavra em arquipélago (1952-60)
tradução y. k. centeno
cotovia
1995



04 agosto 2014

jorge de sena / felicidade



A felicidade sentava-se todos os dias no peitoril da janela.

Tinha feições de menino inconsolável.
Um menino impúbere
ainda sem amor para ninguém,
gostando apenas de demorar as mãos
ou de roçar lentamente o cabelo pelas faces humanas.

E, como menino que era,
achava um grande mistério no seu próprio nome.



jorge de sena
perseguição : poemas
cadernos de poesia
1942



03 agosto 2014

william carlos williams / a acácia em flor



Por
entre
verdes

duros
velhos
claros

quebrados
ramos
outro

branco
doce
Maio

vem


william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993


02 agosto 2014

daniel filipe / desnecessária explicação



Que importa a melodia,
se acaso aos outros dou,
com pávida alegria,
o pouco que me sou?

Que importa ao que me sabe
estar só no meu caminho,
se dentro de mim cabe
a glória de ir sozinho?

Que importa a vã ternura
das horas magoadas,
se ao meu redor perdura
o eco das passadas?

Que importa a solidão
e o não saber onde ir,
se tudo, ao coração,
nos fala de partir?


daniel filipe
marinheiro em terra
1949




31 julho 2014

samuel beckett / elas vêm



elas vêm
outras e as mesmas
com cada uma é diferente e é o mesmo
com cada uma a ausência de amor é diferente
com cada uma a ausência de amor é a mesma

1937
  



samuel beckett
trad. manuel portela
relâmpago” nr.13
10/2003




30 julho 2014

konstandinos kavafis / che fece….il gran rifiuto



A algumas pessoas um dia cai
em que o grande Sim ou o grande Não sobrevém
dizer. Logo surge ao de cima a que tem
pronto dentro de si o Sim e ao dizê-lo vai

além da sua honra e do que está convencida.
A que negou não se arrepende. De novo interrogada
Voltaria a dizer não. Mas tem-na derrotada
Aquele não – o correcto – toda a sua vida.



konstandinos kavafis
poemas e prosas
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
1994



29 julho 2014

arsenii tarkovskii / tive em miúdo uma doença



Tive em miúdo uma doença
E fome e medo. Grossas escamas soltando-se
Dos lábios, que eu humedecia. Nunca esqueci
Esse sabor, salgado e frio.
Mas não parava de andar, andar, andar.
Sentava-me nos degraus do alpendre ao sol,
Caminhava no meu modo leve como se dançasse
A melodia do caçador de ratos, no rio. Sentava-me
Ao sol nos degraus, a tiritar,
E a mãe vinha ali, acenando, parecia
Tão perto, e eu sem poder tocar-lhe:
Movo-me para ela, que sete degraus acima
Acena; movo-me para ela, que acena
Sete degraus acima.


arsenii tarkovskii
8 ícones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987



28 julho 2014

josé gomes ferreira / ouve, semente



Ouve, semente
que o vento trouxe:
a terra para que em flores rebente
também é movediça e doce?


josé gomes ferreira
província
1945
poesia III
portugália
1971



27 julho 2014

antónio ramos rosa / teu corpo principia

  

Dou-te um nome de água
para que cresças no silêncio.

Invento a alegria
da terra que habito
porque nela moro.

Invento do meu nada
esta pergunta.
(Nesta hora, aqui.)

Descubro esse contrário
que em si mesmo se abre:
ou alegria ou morte.

Silêncio e sol - verdade,
respiração apenas.

Amor, eu sei que vives
num breve país.

Os olhos imagino
e o beijo na cintura,
ó tão delgada.

Se é milagre existires,
teus pés nas minhas palmas.

O maravilha, existo
no mundo dos teus olhos.

O vida perfumada
cantando devagar.

Enleio-me na clara
dança do teu andar.

Por uma água tão pura
vale a pena viver.

Um teu joelho diz-me
a indizível paz.



antónio ramos rosa
estou vivo e escrevo sol
1966 


26 julho 2014

john updike / açores



Grandes navios verdes
eis que navegam
ancorados, para sempre;
sob as águas

enormes raízes de lava
prendem-nos firmes
a meio do atlântico
ao passado.

Os turistas, pasmando
do convés,
proclamam aos guinchos lindas
as encostas malhadas

de casinhas
(confetti) e
doces losangos
de chocolate (terra).

Maravilham-se com
os campos graciosos
e os socalcos
feitos à mão para conter

os modestos frutos
das vinhas e das árvores
importadas pelos
portugueses:

paisagem rural
vindo à deriva
de há séculos;
a distância

amplia-se.
O navio singra.
Outra vez a constante
música alimenta

um vazio à popa,
os Açores sumidos.
O vácuo atrás e o vácuo
à frente são o mesmo.


john updike
trad. jorge de sena



25 julho 2014

alexandre m. jardim pimenta / porta


Era uma porta imensa
Imensa e terrível
Maior do que se pensa
Maior do que se sonha
Pétrea-impreterível
Sua visão era medonha.
Do Céu do Inferno ou da Lei
Não saberia lhes dizer
Tudo o que sei
É que seu ranger
Era interminável...
Sei que ante ela eu estava
Era insuportável
Mas ali eu permanecia
Ante ela eu esperava
Quem ou o que não sabia
Enquanto enlouquecia
Enquanto ela cantava
Cada vez mais estranho
Eu à mim me via
Tomado de espanto
Por aquele ebúrneo canto.
Não havia qualqueroutro ruído
Naquela noite de abandono
O vento mesmo havia recolhido
Suas mãos em seu profundo ventre
E diante a minha cara morta e sem sono
A imensa porta se abria
E algo me dizia: Entre!
... Sôfrega... violenta...
... Lenta... como uma condenação eterna
Imensa imensamente ela ia se abrindo
E cada rangido
Era cruel como um mugido
Dum animal perdido
Na noite erma, na noite sem forma,
Minha alma estava enferma
A porta vociferava
Tal qual relinchava
Como um animal esfaqueado
Inabilmente esquartejado
Sua chave era meu medo?
Algo dizia: Entre! Mas eu não entrava
E quanto mais eu ali esperava
Tão mais estranho ia ficando ali parado
Com minhas raízes mergulhando
Naquele sítio ao qual sabe-se lá
Como fui transportado
Até diante aquele ser realíssimo
 
Eu cada vez mais estranhíssimo
À beira da absoluta irrealidade
Por trás da porta não se podia apreender
Qualquer sinal de movimento ou claridade
Era só e só aquele ranger adstringente e seco
Até que um grito santo irrompeu do meu ser
Mas foi engolido pela imensidão e não houve sequer eco.
  

alexandre m. jardim pimenta




24 julho 2014

maria amélia neto / o medo


Surgiu
Por detrás
Da nuvem escura
Que tapou a lua.
Escorregou
Sobre a planície,
Negro,
Envolto
Em longas chamas.
Era meu.
Pertencia-me.
Era o medo


maria amélia neto
o vento e a sombra
1960