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25 outubro 2024

john updike / ferramentas

 
 
 
Dizei-me, como têm lucro os fabricantes de ferramentas?
Uso o mesmo martelo há quarenta anos. A chave de fendas
turva de ferrugem passou há muito tempo para a minha mão
jovem, o seu novo proprietário. Esquecidas, as ferramentas
esperam para serem usadas; o alicate, boca muita aberta,
dentes como um tubarão de banda desenhada; a chave inglesa,
mandíbulas num parafuso; a plaina ainda afiada para morder,
ondulante e cheirosa; o berbequim ainda bom para mastigar
o pinho, como um pensamento paciente; a fita métrica,
polegadas inalteradas apesar de eu ter escolhido; o esquadro
de carpinteiro, ainda inteiro e recto, embora eu me tivesse
desviado; o nível de madeira da escassa colecção
do meu pai. As suas formas persistentes impregnam a cava,
em parcimónia que envergonha a nossa vida perdulária.
 
 
 
john updike
ponto último e outros poemas
trad. ana luísa amaral
civilização editora
2009




09 agosto 2024

john updike / no princípio

 



 

 

No princípio, a Cultura ilude-nos, mas a Natureza
acaba por nos apanhar. A minha pele, noto,
agora que tenho setenta e cinco anos,
pende, enrugada como essas dunas em Marte
que nos dizem que a vida lá devia ter existido –
lama monocelular em charcos estagnados.
Em Tucson, no final do filme, um homem no
espelho dos lavabos avançou para mim,
 
olhos desvairados e pequenos, cabelo branco,
pescoço hirto – que podia ser, tão hostil e estranho,
tão pronto para o lixo, como um saco de pipocas
nojento no seu revestimento de gordura velha?
Onde o rapaz de sardas que costumava espreitar
pelo espelho da frente, à saída para a escola?
 
 
 
john updike
ponto último e outros poemas
trad. ana luísa amaral
civilização editora
2009




26 julho 2014

john updike / açores



Grandes navios verdes
eis que navegam
ancorados, para sempre;
sob as águas

enormes raízes de lava
prendem-nos firmes
a meio do atlântico
ao passado.

Os turistas, pasmando
do convés,
proclamam aos guinchos lindas
as encostas malhadas

de casinhas
(confetti) e
doces losangos
de chocolate (terra).

Maravilham-se com
os campos graciosos
e os socalcos
feitos à mão para conter

os modestos frutos
das vinhas e das árvores
importadas pelos
portugueses:

paisagem rural
vindo à deriva
de há séculos;
a distância

amplia-se.
O navio singra.
Outra vez a constante
música alimenta

um vazio à popa,
os Açores sumidos.
O vácuo atrás e o vácuo
à frente são o mesmo.


john updike
trad. jorge de sena