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17 setembro 2025

john updike / televisão

  
 
Ligo-a como se fosse uma torneira,
nem frio nem quente, só tépido infotenimento,
e dela jorram as provas cintilantes
de conflitos, misérias, concupiscência,
desatrelados pouco a pouco, em remissões
de publicidade ansiosa que antecipa
para nosso bem a melhor vida dependente
de uma compra, de alguma aquisição indispensável.
 
Um carro lustroso dá curvas na chuva murmurante,
uma praia de alvura óssea acolhe peles bronzeadas,
um toalhete acalma as rugas de uma bela enrugada,
um unguento consola a dor sedentária,
dentes falsos resplandecem, a cerveja provoca alegria,
e cabelos pintados arremessam a cor pelo ecrã:
erupções de luz bebidas pelo meu cérebro,
que depressa se cansa, até ficar sequioso outra vez.
 
 
 
john updike
ponto último e outros poemas
trad. ana luísa amaral
civilização editora
2009




25 outubro 2024

john updike / ferramentas

 
 
 
Dizei-me, como têm lucro os fabricantes de ferramentas?
Uso o mesmo martelo há quarenta anos. A chave de fendas
turva de ferrugem passou há muito tempo para a minha mão
jovem, o seu novo proprietário. Esquecidas, as ferramentas
esperam para serem usadas; o alicate, boca muita aberta,
dentes como um tubarão de banda desenhada; a chave inglesa,
mandíbulas num parafuso; a plaina ainda afiada para morder,
ondulante e cheirosa; o berbequim ainda bom para mastigar
o pinho, como um pensamento paciente; a fita métrica,
polegadas inalteradas apesar de eu ter escolhido; o esquadro
de carpinteiro, ainda inteiro e recto, embora eu me tivesse
desviado; o nível de madeira da escassa colecção
do meu pai. As suas formas persistentes impregnam a cava,
em parcimónia que envergonha a nossa vida perdulária.
 
 
 
john updike
ponto último e outros poemas
trad. ana luísa amaral
civilização editora
2009




09 agosto 2024

john updike / no princípio

 



 

 

No princípio, a Cultura ilude-nos, mas a Natureza
acaba por nos apanhar. A minha pele, noto,
agora que tenho setenta e cinco anos,
pende, enrugada como essas dunas em Marte
que nos dizem que a vida lá devia ter existido –
lama monocelular em charcos estagnados.
Em Tucson, no final do filme, um homem no
espelho dos lavabos avançou para mim,
 
olhos desvairados e pequenos, cabelo branco,
pescoço hirto – que podia ser, tão hostil e estranho,
tão pronto para o lixo, como um saco de pipocas
nojento no seu revestimento de gordura velha?
Onde o rapaz de sardas que costumava espreitar
pelo espelho da frente, à saída para a escola?
 
 
 
john updike
ponto último e outros poemas
trad. ana luísa amaral
civilização editora
2009




26 julho 2014

john updike / açores



Grandes navios verdes
eis que navegam
ancorados, para sempre;
sob as águas

enormes raízes de lava
prendem-nos firmes
a meio do atlântico
ao passado.

Os turistas, pasmando
do convés,
proclamam aos guinchos lindas
as encostas malhadas

de casinhas
(confetti) e
doces losangos
de chocolate (terra).

Maravilham-se com
os campos graciosos
e os socalcos
feitos à mão para conter

os modestos frutos
das vinhas e das árvores
importadas pelos
portugueses:

paisagem rural
vindo à deriva
de há séculos;
a distância

amplia-se.
O navio singra.
Outra vez a constante
música alimenta

um vazio à popa,
os Açores sumidos.
O vácuo atrás e o vácuo
à frente são o mesmo.


john updike
trad. jorge de sena