17 abril 2014

josé miguel silva / esconde-esconde




A nossa vida, libertada, pode agora
começar, dissemos, com o optimismo
de quem inaugura um abrigo decente
e se pretende a salvo das cargas
do mundo. A salvo? Lá mais para
diante se verá que não é bem assim.
Mas por enquanto não pensemos nisso.
Apreciemos a herança de cada tarde,
quando o oiro do crepúsculo acumula
sentimento sobre muros tão perfeitos
que podiam estar no British Museum
e nenhuma convulsão nos prende a vista.

  

josé miguel silva
serém, 24 de março
averno
2011




16 abril 2014

luis muñoz / esta



Esta é a noite
com seu dorso de iguana.
Não penso ter medo dela
nem pelo que conjura
nem pelo que ilumina.

Teu medo não acaba sem o meu
quando são uma força.



luís muñoz
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004



15 abril 2014

paul éluard / ela está de pé nas minhas pálpebras



Ela está de pé nas minhas pálpebras
com os dedos nos meus entrelaçados.
Ela cabe toda em minhas mãos,
ela tem a cor dos meus olhos
e desaparece na minha sombra
como uma pedra sobre o céu.

Tem sempre os olhos abertos
e não me deixa dormir.
Os sonhos dela à luz do dia
fazem os sóis evaporar-se,
fazem-me rir, chorar e rir,
falar sem ter nada a dizer.




paul éluard
algumas palavras (antologia)
tradução antónio ramos rosa e luiza neto jorge
dom quixote
1977




14 abril 2014

konstandinos kavafis / desideri


1
DESEJOS
Como corpos belos dos que morrem sem ter envelhecido
— e são guardados, em lágrimas, num mausoléu magnífico,
com rosas na fronte e com jasmins aos pés —
assim os desejos são, desejos que esfriaram
sem serem consumados, sem que um só fruísse
uma noite de prazer, ou uma aurora que a lua inda ilumina.



constantino cavafy
90 e mais poemas
trad Jorge de Sena
edições asa
2003



13 abril 2014

miguel martins / provavelmente


Provavelmente, a próxima vez que ouvires falar de mim
será quando te disserem que morri
e que morri por minhas próprias mãos
(isso acontece).

Isso acontece do outro lado da ternura,
onde ela é demasiada e coisa rara,
vermelha e branca, ou seja, cor-de-rosa
quase transparente.

São coisas explicáveis e que não carecem de explicação
(já não),
como os incêndios, a fadiga extrema
ou o cheiro agreste da benzina.

São coisas da natureza dos comboios que passam
a alta velocidade
sem se importarem com os ratos e as flores
que nos carris fazem a sua lida.

È a morte,
uma coisa que tudo simplifica.


miguel martins
resumo
a poesia em 2012
documenta
2013







12 abril 2014

maria alberta menéres / queria dizer-te



Queria dizer-te que não sei
que há qualquer coisa
talvez desperdiçada  talvez não
Tu sentiste-a  disseste que era como
qualquer uma outra coisa que
esqueci
A tarde era  talvez já fosse tarde
e a noite não vinha
─  como sempre
Queria dizer-te mas não sei se agora
me saberás ouvir



maria alberta menéres
os mosquitos de suburna
1967




11 abril 2014

maria victoria atencia / ao sul



Ao sul de algum país está a minha casa
com discos de Bob Dylan e Purcell, e facturas,
e pudim de Yorkshire e livros a esperar-me,
e vozes que se cruzam pelos seus aposentos.
Mas o sangue tão frio do jasmim atravessa-me
quando a tarde tomba e escrevo, como agora,
ou pelo meus ausentes me calo no terraço.
Um cão grande acossado ladra no elevador.



maria victoria atencia
antologia poética
paulina o el libro de las aguas
tradução josé bento
assírio & alvim
2000



10 abril 2014

leopoldo maria panero / os imortais


cada consciência procura a morte da outra
hegel


Na luta entre consciências algo caiu ao chão
e o fragor de cristais alegrou a assembleia
Desde então habito entre os imortais
Onde um rei come defronte ao Anjo caído
e semelhantes a flores a morte nos desfolha
e lança no jardim onde crescemos
temendo que nos chegue a recordação dos homens.



leopoldo maria panero
poemas do manicómio de mondragón
trad. de jorge melícias
ed. alma azul
2003




09 abril 2014

maria do rosário pedreira / não partas já



Não partas já. Fica até onde a noite se dobra
para o lado da cama e o silêncio recorta
a margem do tempo. É aí que os livros
começam devagar e as cores nos cegam
e as mãos fazem de norte na viagem. Parte apenas

quando a manhã se ferir nos espelhos do quarto
em estilhaços de luz, e um feixe de poeiras
rasgar as janelas como uma ave desabrida.
Alguém murmurará então o teu nome, vagamente,
Omo a gastar os dedos na derradeira página.

E então, sim, parte, para que outra história se
invente mais tarde, quando os pássaros gritarem
à primeira lua e os gatos se deitarem sobre
o muro, de olhos acesos, fingindo que perguntam.



maria do rosário pedreira
a casa e o cheiro os livros
gótica
2002




08 abril 2014

paul auster / fragmento de frio



Porque cegamos
no dia que sai connosco,
e porque vimos o nosso hálito
embaciar
o espelho do ar,
a nada se abrirá
o olho do ar
senão à palavra
que renunciamos: o inverno
terá sido um espaço
de maturidade.

Nós que nos tornamos nos mortos
de outra vida que não a nossa.


paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002



07 abril 2014

manuel alegre / e alegre se fez triste



Aquela clara madrugada que
viu lágrimas correrem no teu rosto
e alegre se fez triste como se
chovesse de repente em pleno agosto.

Ela só viu meus dedos nos teus dedos
meu nome no teu nome. E demorados
viu nossos olhos juntos nos segredos
que em silêncio dissemos separados.

A clara madrugada em que parti.
Só ela viu teu rosto olhando a estrada
por onde um automóvel se afastava.

E viu que a pátria estava toda em ti.
E ouviu dizer-me adeus: essa palavra
que fez tão triste a clara madrugada.




manuel alegre
o canto e as armas
europa-américa
1979



06 abril 2014

àlex susanna / visões




Da janela oval do avião
levas os olhos à estranha paisagem
onde bem poderias passear,
tens dificuldade em reconhecer
o mais breve caminho que se ofereça,
tornado ruga milenária
ou vazio antediluviano.                             
Tudo parece tão longínquo e disforme
que decides ignorá-lo.
 
Acontece tanto na vida como na poesia:
quando estas se elevam ou afastam demais
daquilo que te é familiar
fazem com que percas o interesse
porque preferes vivê-las de baixo,
do nível zero, esse
onde as coisas são como são:
caminhar exige sempre um mínimo de esforço.


àlex susanna
poemas
tradução de egito gonçalves




05 abril 2014

fernando pessoa / chove



Chove. Que fiz eu da vida?
Fiz o que ela fez de mim...
De pensada, mal vivida...
Triste de quem é assim!

Numa angústia sem remédio
Tenho febre na alma, e, ao ser,
Tenho saudade, entre o tédio,
Só do que nunca quis ter...

Quem eu pudera ter sido,
Que é dele? Entre ódios pequenos
De mim, 'stou de mim partido.
Se ao menos chovesse menos!



fernando pessoa