05 abril 2014

fernando pessoa / chove



Chove. Que fiz eu da vida?
Fiz o que ela fez de mim...
De pensada, mal vivida...
Triste de quem é assim!

Numa angústia sem remédio
Tenho febre na alma, e, ao ser,
Tenho saudade, entre o tédio,
Só do que nunca quis ter...

Quem eu pudera ter sido,
Que é dele? Entre ódios pequenos
De mim, 'stou de mim partido.
Se ao menos chovesse menos!



fernando pessoa




04 abril 2014

adília lopes / clarice lispector



Clarice Lispector,
a senhora não devia
ter-se esquecido
de dar de comer aos peixes
andar entretida
a escrever um texto
não é desculpa
entre um peixe vivo
e um texto
escolhe-se sempre o peixe
vão-se os textos
fiquem os peixes
como disse Santo António
nos textos



adília lopes
clube da poetisa morta
caras baratas
antologia
relógio d´água
2004




03 abril 2014

josé de almada negreiros / esperança



Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu fi-lo perfeitamente.
Para diante de tudo foi bom
bom de verdade
bem feito de sonho
podia segui-lo como realidade

Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu sei-o de cor.
Até reparo que tenho só esperança
nada mais do que esperança
pura esperança
esperança verdadeira
que engana
e promete
e só promete.
Esperança:
pobre mãe louca
que quer pôr o filho morto de pé?

Esperança
único que eu tenho
não me deixes sem nada
promete
engana
engano que seja
engana
não me deixes sozinho
esperança.



josé de almada negreiros




02 abril 2014

amalia bautista / a dieta



Deitei-me sem jantar, naquela noite
sonhei que te comia o coração.
Suponho que seria pela fome.
Enquanto devorava aquela fruta
─ era doce e amarga ao mesmo tempo ─
tu beijavas-me com os lábios frios,
mais frios e mais pálidos que nunca.
Suponho que seria pela morte.



amalia bautista
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004



01 abril 2014

manuel antónio pina / como desenhar uma casa



Primeiro abre-se a porta
por dentro sobre a tela imatura onde previamente
se escreveram palavras antigas: o cão, o jardim impresente,
a mãe para sempre morta.

Anoiteceu, apagamos a luz e, depois,
como uma foto que se guarda na carteira,
iluminam-se no quintal as flores da macieira
e, no papel de parede, agitam-se as recordações.

Protege-te delas, das recordações,
dos seus ócios, das suas conspirações;
usa cores morosas, tons mais-que-perfeitos:
o rosa para as lágrimas, o azul para os sonhos desfeitos.

Uma casa é as ruínas de uma casa,
uma coisa ameaçadora à espera de uma palavra;
desenha-a como quem embala um remorso,
com algum grau de abstracção e sem um plano rigoroso.



manuel antónio pina
como desenhar uma casa
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012



31 março 2014

rené char / a companheira do cesteiro



Amava-te.
Amava o teu rosto de nascente sulcado pela tempestade
e o emblema do teu  domínio cingindo o meu beijo.
Há quem se entregue
a uma imaginação completamente redonda.
A mim basta-me ir.

Do desespero, meu amor,
trouxe o cestinho mais pequeno
que se pôde entrelaçar em vime.



rené char
furor e mistério
tradução margarida vale de gato
relógio de água
2000




30 março 2014

pedro tamen / o sangue



3.
Escrevo estes versos de grãos de terra na mão: eis a prova.
Tenho a certeza dos passos. Todos temos. Só no mais diferimos.
Era uma longa subida. Era a certeza
da nossa própria emigração. A mais bela,
a mais funda companhia. A perfeita igualdade do transporte
foi amassada em três quedas. Um braço, outro braço, um corpo
e a longa subida.



pedro tamen
o sangue, a água e o vinho
1958





29 março 2014

antónio franco alexandre / escrevo do que sei…



2
escrevo do que sei eis o que ignoro
esqueço-me de ti que me não esqueces
existes no futuro como as casas
como os caules do vento permaneces

olho-te agora e já não estremeço
dias vadios de terra desfolhada
não tenho já motivos como dantes
nossas razões são rimas consoantes

deixa que pouse a pedra psicológica
azul por dentro como um vão veneno
bebo na fonte as mãos termino o quadro



antónio franco alexandre
poemas
assírio & alvim
1996



28 março 2014

konstandinos kavafis / ao pé da casa



Ontem, divagando por um bairro
mais distante, passei pela casa
onde eu às vezes ia, ao tempo de ser jovem.
De meu corpo o Amor se apoderou ali
com sua força incrível. Ontem,
quando passava pela velha rua,
lojas, calçada, pedras,
paredes e varandas e janelas,
tudo se transformou por magia do amor.
Nada restou que fosse pobre e vil.

E enquanto eu me ficava olhando a porta,
parado, a demorar-me ao pé da casa,
de todo o ser me fluíam, restitutos,
os sensuais prazeres que tinha em mim guardados.

[1918 ]

  

constantino cavafy
90 e mais poemas
trad jorge de sena
edições asa
2003




27 março 2014

federico garcia lorca / é verdade



Ai, quanto trabalho me dá
querer-te como eu quero!
Por teu amor me dói o ar,
o coração
e o chapéu.

Quem compraria de mim
este cinteiro que tenho
e esta tristeza de fio
branco, para fazer lenços?

Ai, quanto trabalho me dá
querer-te como eu quero!



federico garcia lorca



26 março 2014

daniel faria / se te puseres à escuta…



4
Se te puseres à escuta a magnólia pode ser uma árvore de fruto ─
A escuta enche-nos de sumo como um poço no meio dos pátios.
A magnólia enxerta-me nos pensamentos, é um profundo
Rumor na minha carne, a linha que me vai da mão
A outra mão. Ela não tem medo
De aproximar-se quando minha mãe me pega ao colo.
Ela levanta-me da terra
Como os tufões e os bandos dos pássaros.



daniel faria
poesia
do ciclo das intempéries
quasi
2003




25 março 2014

sophia de mello breyner andresen / instante



Deixai-me limpo
O ar dos quartos
E liso
O branco das paredes
Deixai-me com as coisas
Fundadas no silêncio


sophia de mello breyner andresen





24 março 2014

alberto caeiro / todos os dias



Todos os dias agora acordo com alegria e pena.
Antigamente acordava sem sensação nenhuma; acordava.
Tenho alegria e pena porque perco o que sonho
E posso estar na realidade onde está o que sonho.
Não sei o que hei de fazer das minhas sensações.
Não sei o que hei de ser comigo sozinho.
Quero que ela me diga qualquer cousa para eu acordar de novo.




alberto caeiro