11 novembro 2010
cruzeiro seixas / ao que encontrei tanto e tanto
Ao que encontrei tanto e tanto
acrescentei.
Recordo essas horas esses dias.
Tudo o que era morto ressuscitava
os animais encontravam-se
e altos monumentos brancos cresciam em cada praça.
O nosso sangue circulava livre nas montanhas e no mar
e os músculos erguiam árvores
que nos cobriam com a sua ilimitada confiança.
Nós todos éramos dois.
Um dia queimamos o fundo do mar
e o incêndio alastrou às vagas absurdas
ao sangue misterioso.
Estavas pálido como a água
jamais alguém empalideceu assim.
Que horas eram meu amor distante?
Ao que encontrei tanto acrescentei
nesta tarde exageradamente tranquila.
cruzeiro seixas
o que a luz oculta
arte e manifesto, galeria
porto
2000
09 novembro 2010
nuno vidal / lachrimae coactae
A locusta sagrada vinha pela noite
rilhava a esperança posta para amanhã
nas pancadas repetidas das gelosias.
O pulso apertava o fim sem chegada
mas que fazia morrer cada dia
tinha
de haver sempre para quê?
Aqui era a decrépita restaurada mão
aleivosa do amor a dobrar-nos
no cadafalso, com escarninha mesura.
Pelo soalho cotão, o cheiro
restado dos lençóis, doçura
tudo em rodilha, cinza, exaltação.
Pelo lento valado do verão
de tentearmos encontros, as vésperas
num visco enorme de sol tardio
julgando cada dia por roubado
ao destino que não pertencia
e corria por outro regato.
Meu Deus, a tua sede cortada.
Tens sempre o teu albergue, os teus
inestimáveis bens comungados
e porém. Os espoliados d´aquém
mar, que diabo os carregue?
Mas não fiques, não oiças
não quero, eu só quero que
a noite não suceda.
Eu desamparo-te o foral eu
nem vale que me cale
quedo-me sem pátria que nem
tinha e houvera unhas tangia
uma canção de protesto triste.
nuno vidal
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990
06 novembro 2010
gil t. sousa / era um passo novo
27
era um passo novo
um timbre de rua nova
numa cidade calada
a tua mão na água dormente
a dança do teu olhar
sobre o peso
do tempo sábio
segui-te o sonho
como uma ave
e regressei
ainda mais só
gil t. sousa
falso lugar
2004
04 novembro 2010
manuel francisco t. / não te esqueces?
veneza é um peixe obscuro
inventado por ticianos náufragos.
a peste ensinou-nos na pele ver
a última tela víbora imagem
do bispo. em gelos esquecidas
ardem estas estátuas o corpo
veneziano, peixe que em
nós se instala.
deixa-o vir, disse. a espia doce
aceitou no hotel dês avenirs
refúgio gnóstico d´enviados espaciais.
deixa, sim, um aeroplano destes tudo
será, raiz e lenta lágrima, ele
em jardins saberá. eu digo-lhe.
manuel francisco t.
colóquio letras 113-114
fundação calouste gulbenkian
1990
02 novembro 2010
sophia de mello breyner andresen / a escrita
No Palácio Mocenigo onde viveu sozinho
Lord Byron usava as grandes salas
Para ver a solidão espelho por espelho
E a beleza das portas quando ninguém
Passava
Escutava os rumores marinhos do silêncio
E o eco perdido de passos num corredor
Longínquo
Amava o liso brilhar do chão polido
E os tectos altos onde se enrolam as sombras
E embora se sentasse numa só cadeira
Gostava de olhar vazias as cadeiras
Sem dúvida ninguém precisa de tanto espaço vital
Mas a escrita exige solidões e desertos
E coisas que se vêem como quem vê outra coisa
Podemos imaginá-lo sentado à sua mesa
Imaginar o alto pescoço espesso
A camisa aberta e branca
O branco do papel as aranhas da escrita
E a luz da vela – como em certos quadros –
Tornando tudo atento
sophia de mello breyner Andresen
ilhas
caminho
2004
31 outubro 2010
miguel serras pereira / talvez um barco
Podia dizer-to agora mesmo
mas do silêncio já nada me separa
ou só o tempo lento ainda de um momento
uma palavra só sem mais cansaço
Será talvez um barco se fores tu
- a chuva da manhã nos vidros limpos
e o vulto esguio perdido duna a duna
de quem regressa apenas de partida
Um pássaro esquecido brilha ainda
em dois olhares levemente embaciado
pela mesma indecisa febre antiquíssima
Podia dizer-to agora mesmo
E talvez seja um barco se fores tu
- ou serei eu talvez se for o mar
miguel serras pereira
trinta embarcações para regressar devagar
relógio d´água
1993
28 outubro 2010
gonçalo m. tavares / chão
Não há limite que não seja por ele suportado.
Suporta todo o cansaço. Traições, fadiga, falhanços.
Aconteça o que acontecer tens um corpo que pesa;
e um chão, mudo, imóvel, que não desaparece.
gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004
26 outubro 2010
fernando pessoa / o andaime
O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!
Aqui à beira do rio
Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
Figura, anônimo e frio,
A vida vivida em vão.
A 'sp'rança que pouco alcança!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
Sobre mais que minha 's'prança,
Rola mais que o meu desejo.
Ondas do rio, tão leves
Que não sois ondas sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam - verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer.
Gastei tudo que não tinha.
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.
Leve som das águas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!
Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava já perdido.
Impaciente deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.
Som morto das águas mansas
Que correm por ter que ser,
Leva não só lembranças -
Mortas, porque hão de morrer.
Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim -
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser - muro
Do meu deserto jardim.
Ondas passadas, levai-me
Para o alvido do mar!
Ao que não serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar.
fernando pessoa
revista presença
1931
24 outubro 2010
jorge velhote / piazza s. marco
A sabedoria é para os barcos
sob as pontes da noite,
a alma, o oiro.
Aqui dormiria, à distância singular
de um beijo, um lençol de água,
um travesseiro de cuidada pedra.
Outras coisas da infância, mas devagar, outros corpos a penumbra percorrendo,
a poeira da luz espiando os sapatos, a navalha chamuscada.
Também eu herdei a perigosa ilusão
da bicicleta, um silêncio
danado por mulheres, pelo ardor cristalino do álcool,
no limbo mais rasgado do mundo;
o segredo tão natural da pintura
na profecia azul dos mosaicos,
no carvão amargo da noite;
certos vestígios pelo tráfico outrora florescente:
sedas, frutos, tabaco, pequenos tesouros,
caixinhas de laque, sandálias
gastando, dia após dia, a mágoa.
Que posso fazer pelas pedras desta praça senão
cobri-las de aves, trapos, moedas
e pela poalha do crepúsculo seduzir os vitrais,
os óleos santos, o sândalo, o bolor intenso das paredes?
Cambiar a chuva pelos claustros do vento, o vidro
de oficiante fogo, como
em Murano a família Barelli?
Que poderei comprar para o vazio
deste anoitecer? um pouco do meu sol?
daquele mar, um punhado de areia?
jorge velhote
colóquio letras nr. 90
março 1986
fundação calouste gulbenkian
1986
21 outubro 2010
josé miguel silva / libertação
Foi o dia em que um polido agente da autoridade
nos veio buscar a casa para nos interrogar.
Alguém havia assaltado o posto médico
e o medo da vizinhança apontara para nós.
Não sabíamos de nada, mas o nosso luto
(morrera-nos o mundo há pouco tempo)
dizia o contrário. Éramos muito jovens,
tínhamos a boca ferida de insultos. A nossa vida,
coitada, lia muitos livros de aventuras políticas,
sentia-se capaz, dizia, de dar a volta ao mundo
numa barca de cortiça. Não lhe demos confiança.
Após o depoimento ainda passei pela biblioteca
e à noite festejámos a libertação da nossa inocência.
Nunca mais pedimos sal aos vizinhos.
josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d'água
2003
19 outubro 2010
edgar lee masters / george gray
Muitas vezes observei
a figura de mármore que esculpiram para mim:
um barco ancorado com as velas recolhidas.
Não representa a minha chegada a um porto de destino,
mas a minha existência.
Pois o amor foi-me oferecido e eu fugi dos seus enganos;
o desgosto bateu-me à porta, mas eu tive medo;
a ambição chamou por mim, mas eu receei a maré.
No entanto, sempre desejei dar um sentido à minha vida.
Agora sei que devemos erguer as velas
e tomar os ventos do destino
aonde quer que conduzam o barco.
Dar um sentido à nossa vida pode terminar em loucura,
mas uma vida sem sentido é um flagelo
de desassossego e de vago desejo –
é como um barco que suspira pelo mar e não se atreve.
edgar lee masters
spoon river
tradução josé miguel silva
relógio d´água
2003
17 outubro 2010
maria gabriela llansol / fui dar com ela no quarto a chorar
340
Fui dar com ela no quarto a chorar, o telemóvel
Atirado para um canto. Entre lágrimas, foi dizendo
(E tem doze anos) que seu amigo decidira que deviam
Esperar. Sua mensagem: «Só o amor verdadeiro está
Por vir». É ténue a diferença (pensei) entre um galã
E um filósofo. Mas ela, sobretudo, descobrira que os
Novos instrumentos «mordem» tanto como os antigos,
Salvo que muito mais depressa. A mentira vende. Para
A publicidade, na nova comunicação é impossível a má
Notícia. Por que não trocam com os jornais?
maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003
14 outubro 2010
federico garcia lorca / 1910 (intermédio)
Aqueles olhos meus de mil novecentos e dez
não viram enterrar os mortos,
nem a feira de cinza do que chora de madrugada,
nem o coração que treme acantonado como um cavalinho do mar.
Aqueles olhos de mil novecentos e dez
viram a branca parede onde urinavam meninas,
o focinho do touro, a seta venenosa
e uma luz incompreensível que iluminava pelos cantos
pedaços de limão seco sob o negro duro das garrafas.
Aqueles olhos meus no pescoço do poldro,
no seio trespassado de Santa Rosa adormecida,
nos telhados do amor, com gemidos e mãos sem vergonha
num jardim onde os gatos comiam as rãs.
Sótão onde o velho pó junta estátuas e musgos.
Caixas que guardam silêncios de caranguejos devorados.
No sítio onde o sonho tropeçava na sua realidade.
Ali os meus pequenos olhos.
Não me perguntem nada. Já vi como as coisas
procuram a sua direcção e encontram o seu vazio.
No ar deserto há uma dor de ausências
e nos meus olhos pessoas vestidas, sem nudez!
federico garcia lorca
nova iorque num poeta
trad. antónio moura
hiena editora
1995
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