17 setembro 2010
chico buarque / choro bandido
mesmo que os cantores sejam falsos como eu
serão bonitas, não importa
são bonitas as canções
mesmo miseráveis os poetas
os seus versos serão bons
mesmo porque as notas eram surdas
quando um deus sonso e ladrão
fez das tripas a primeira lira
que animou todos os sons
e daí nasceram as baladas
e os arroubos de bandidos como eu
cantando assim:
você nasceu para mim
você nasceu para mim
mesmo que você feche os ouvidos
e as janelas do vestido
minha musa vai cair em tentação
mesmo porque estou falando grego
com sua imaginação
mesmo que você fuja de mim
por labirintos e alçapões
saiba que os poetas como os cegos
podem ver na escuridão
e eis que, menos sábios do que antes
os seus lábios ofegantes
hão de se entregar assim:
me leve até o fim
me leve até o fim
mesmo que os romances sejam falsos como o nosso
são bonitas, não importa
são bonitas as canções
mesmo sendo errados os amantes
seus amores serão bons
edu lobo - chico buarque
para a peça “O corsário do rei de Augusto Boal”
1985
15 setembro 2010
sylvia plath / medalhão
Junto ao portão com a estrela e a lua
trabalhadas em pau de laranjeira descascado
jazia ao sol a serpente de bronze
inerte como um cordão de sapatos, morta
mas ainda flexível, a mandíbula
sem articulação e um esgar retorcido,
a língua como uma seta cor-de-rosa.
Suspendi-a sobre a minha mão.
O seu pequeno olho escarlate
inflamado era uma chama vidrada
quando o voltei para a luz,
ao partir um dia uma pedra,
assim ardiam os pedaços de granada.
O pó dava ao seu dorso uma tonalidade ocre
do mesmo modo que uma truta exposta ao sol.
Mas o seu ventre conservava o fogo
que avançava sob a cota de malha,
e as velhas jóias, ali, ardiam lentamente
em cada escama opaca do ventre:
o pôr-do-sol visto através de um vidro leitoso.
E vi larvas brancas serpear,
finas como alfinetes na ferida negra
onde as suas vísceras inchavam como se
estivesse a digerir um rato.
Quase tão casta como uma faca,
puro metal de morte. O tijolo arremessado
pelo trabalhador completou o seu esgar.
sylvia plath
pela água
tradução de maria de lurdes guimarães
assírio & alvim
1990
13 setembro 2010
gil t. sousa / é verão
25/
é Verão no meu sangue e o corpo é o quadrante dum relógio mágico onde todas as horas são marcadas com sinais de fogo.
nas veias queimadas, só o carinho da Lua – essa velha surda e cega ! – que na sua bondade de fêmea me transforma os pecados em paixão e faz dos meus gritos orações poderosas que os deuses escutam e aceitam.
gil t. sousa
falso lugar
2004
11 setembro 2010
steve mccaffery / poema de jornal
levante-se e desça as escadas.
apanhe o jornal e folheie imediatamente
a necrologia
se o seu nome não aparecer
volte para a cama.
steve mccaffery
pullll lllllll
poesia contemporânea do canadá
trad. john havelda, isabel patim & manuel portela
antígona
2010
09 setembro 2010
josé agostinho baptista / o tempo e o mar
Era um homem, a sombra de um homem e
caminhava para o mar.
Estas pegadas
são o obscuro rumor do tempo
e o tempo é uma vara oblíqua nas mãos de deus.
Que fará um homem com as dores do mundo,
com a última gota dos cálices ao lado da noite?
Reconstruir o teu rosto da amada
dar vida à sua silenciosa vida?
Matar,
no súbito ardil do Outono, os vestígios de uma
palavra secreta?
Há uma cidade profunda onde em profunda água
ela o esquece.
Quem para o mar caminha
leva consigo a maldição das ilhas com um
lírio quebrado, uma ânfora de pólen,
um adeus.
josé agostinho baptista
paixão e cinzas
biografia
assírio & alvim
2000
07 setembro 2010
samuel beckett / três poemas de amor
cascando
1
fosse apenas o desespero da
ocasião da
descarga de palavreado
perguntando se não será melhor abortar que ser estéril
as horas tão pesadas depois de te ires embora
começarão sempre a arrastar-se cedo de mais
as garras agarradas às cegas à cama da fome
trazendo à tona os ossos os velhos amores
órbitas vazias cheias em tempos de olhos como os teus
sempre todas perguntando se será melhor cedo de mais do
que nunca
com a fome negra a manchar-lhes as caras
a dizer outra vez nove dias sem nunca flutuar o amado
nem nove meses
nem nove vidas
2
a dizer outra vez
se não me ensinares eu não aprendo
a dizer outra vez que há uma última vez
mesmo para as últimas vezes
últimas vezes em que se implora
últimas vezes em que se ama
em que se sabe e não se sabe em que se finge
uma última vez mesmo para as últimas vezes em que se diz
se não me amares eu não serei amado
se eu não te amar eu não amarei
palavras rançosas a revolver outra vez no coração
amor amor amor pancada da velha batedeira
pilando o soro inalterável
das palavras
aterrorizado outra vez
de não amar
de amar e não seres tu
de ser amado e não ser por ti
de saber e não saber e fingir
e fingir
eu e todos os outros que te hão-de amar
se te amarem
3
a não ser que te amem
samuel beckett
trad. miguel esteves cardoso
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990
06 setembro 2010
luís vaz de camões / correm turvas as águas deste rio
Correm turvas as águas deste rio,
que as do Céu e as do monte as enturbaram;
os campos florecidos se secaram,
intratável se fez o vale, e frio.
Passou o verão, passou o ardente estio,
umas coisas por outras se trocaram;
os fementidos Fados já deixaram
do mundo o regimento, ou desvario.
Tem o tempo sua ordem já sabida;
o mundo, não; mas anda tão confuso,
que parece que dele Deus se esquece.
Casos, opiniões, natura e uso
fazem que nos pareça desta vida
que não há nela mais que o que parece.
luís vaz de camões
sonetos
05 setembro 2010
jaime rocha / zona de caça
29.
Aí nasce pela primeira vez um jovem
amante que logo pergunta ao cavaleiro
como se veste a crueldade. É um amante
que odeia a caça, uma espécie de anjo nu
que sai da água. Há uma floresta junto a
um lago. E resina, um aroma que cura
a alma. Mas o jovem amante insiste, quer
saber se os sátiros incomodam as coisas do
amor. Não, diz o cavaleiro, o mal vem das
colmeias, do veneno que corre pelos trilhos.
jaime rocha
zona de caça
relógio d´água
2002
02 setembro 2010
guillevic /discurso
Considerar que um novo corpo
É feito de um continente
Em que a areia e o vento
Pertencem a um século desconhecido.
guillevic
encloches (1971)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003
gil t. sousa / dentro do tempo
24/
dentro do tempo, o tempo
o cheiro do mundo
quando me cantas essa rua antiga
*
já por aqui morri
e, vivo,
regresso ao beijo seguro
e fiel
gil t. sousa
falso lugar
2004
01 setembro 2010
luís miguel nava / sol subterrâneo
O sol é subterrâneo, aquele a que eu
me quero hoje estender é o do meu espírito, é preciso
cavar bem fundo até o fazer surgir.
luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002
30 agosto 2010
antónio franco alexandre / veneza , travessia
III
porque amanhece, subindo
a casa calcária, súbitas asas espalhadas
no silêncio da rocha: o próprio asco
da água calcinada, a curva líquida de merda
à beira do palazzo,
& o doce ventre onde uma espiga ardente
jorra na piazza o céu dentro dos vidros.
suba a cà foscari! os dentes
ácidos de sementes quebradas, ii manifesto
deitado sobre a cama, junto ao sexo.
desabotoando a camisola verde, dizia «os braços,
& na porta de areia os turistas pacientemente esmagavam
o papel dos chuveiros, dizia, «o torso,
& eu sentia, no quadrado cerrado, o suor
escorrido dos lábios, dizia, «a neve,
algures o vento,
& as lajes molhadas, um re de cinza
contra os olhos,
enquanto as asas se despiam, vagarosas.
porque amanhece. almoço de bataglia
c/ spaghetti.
mrs. stone roendo as implacáveis unhas.
a mão que dobra, lenta, a dobra dos cabelos.
a flor pousa no pássaro. miragem. quase noite.
vago, de hashish, o acre
minuto de falar. dizia, «ninguém,
& o quarto quebrado, as mesas onde o mundo
pousa os dedos, porque
certamente amanhece, dizia, «o medo,
& o ombro levantado ameaçava os dias.
invento, a água,
o testículo de ouro,
a lâmina das folhas, invento, na bicicleta verde,
pousava sobre o pêlo: a flor.
& o quarto quebrado, a franja das falanges
sobre a curva das asas.
a pálida brancura das gavetas.
o crânio do silêncio contra a mesa. in
vento, manhãs, quando se parte, de dentro
das esquinas, dizia, «o sol,
algures o sangue,
&. as mãos espalhavam a pele,
cobriam cuidadosas os ossos, o lençol.
noite fora crescia a bicicleta verde,
de cornos espetados sobre o olhar deserto.
esmagava, no peito, o papel das sementes. dizia, «o ar,
& repartido o trigo, amanhecia.
a casa, escura. a relva incendiada. e por dentro
da luz, a seiva do calcário, miragem. invento.
o sol partido em dois. azul, e quase noite
os degraus encardidos, a cama onde adormece
o moedeiro falso.
colar a boca aos passos, o desejo.
devagar se despindo; dizia «o mar,
algures os astros,
& a boca amealhava o ouro ardido.
invento, o ombro de água,
a ruga onde começa
a brancura das asas, horizontal respira.
a carne mansa, do calor da relva
deitada sobre a cama, junto às lajes.
uma manhã, invento, dentro da chuva, erguido
sobre a cinza, dizia «quase noite,
então amanhecia.
ao fundo, longe, vê: a poeira nos pulsos,
& a mão se dobra, lenta, no travão das rodas.
despindo em torno o ar, dizia, «o dia,
& os aviões roncavam sobre a areia.
subindo o céu de vidro,
a casa desertada, ao longe
a cúpula dos sinos, a névoa de são marcos.
ventre que a noite invade,
madrugador o pão dos embarcados. não invento.
papel de azul, as asas, um fio cortado a vento.
inclinado nos olhos, olhava, inclinado nas unhas,
olhava, dizia «amanhece,
porque amanhecia.
antónio franco Alexandre
(tríptico nómada)
poemas
assírio & Alvim
1996
29 agosto 2010
al berto / carta da árvore triste
[…]
escrevo-te enquanto não amanhece
a morte desperta em mim uma planta carnívora
o mundo parece despedaçar-se pelos desertos do delírio
pântano de lodo entre a pele da noite e a manhã
espaço de penumbras e de incertezas
onde podemos perder tudo e nada desejarmos ainda
por isso aproveito o pouco tempo que me sobeja da noite
este vácuo lento este visco dos espelhos
espessa escuridão agarrada à memória debaixo da pele
começa a asfixia o perigo de ter amado
no mais profundo segredo das noites devorávamo-nos
e um barco tremeluzia pelas cortina do quarto
como um presságio
nos objectos e a roupa atirada para cima das cadeiras
revelam-me a pouco e pouco a desolação em que tenho vivido
é-me desconhecida a vida fora dos sonhos e dos espelhos
tu brincavas com o sangue
a noite cola-se-me aos gestos
enquanto balbucio com dificuldade esta carta
onde gostaria de deixar explicadas coisas
não consigo
o silêncio é o único cúmplice das palavras que mentem
eu sei
comemos a lucidez do asfalto
mudámos de morada sempre que foi preciso recomeçar
vivíamos como nómadas sem nunca nos habituarmos à cidade
mas nada disto chegou para nos entendermos
o tempo transformou-se num relógio de argila
tudo esqueci dessas derivas
e pelo corpo de nossos desencontros diluíram-se os sonhos
a verdade é que nunca teria conseguido escrever-te
sob o peso da luz do dia
a excessiva claridade amputar-me-ia todo o desejo
cegar-me-ia tentaria cicatrizar as feridas reabertas pela noite
sou frágil planta nocturna e triste
o sol ter-me-ia sido fatal
conduzir-me-ia ao entorpecimento da memória
e eu quero lembrar-me do teu rosto enquanto puder
o pior é que me falta tempo
sinto a manhã cada segundo mais próxima
ameaçadora e cruel
a luz arrastar-me-á para uma espécie de inércia inexplicável
o silêncio será definitivo
o sangue adormece nas veias e o desejo de permanecer
arremessar-me-ia para o esquecimento sem regresso
poderia até projectar um eventual regresso antes de partir
tenho a certeza de que parto para sempre
não haverá regresso nenhum
creio que se tornaria mais fácil escrever-te de longe
na deambulação por algum país cujo nome ainda não me ocorre
num país com sabor a tamarindos rodeados de mar
onde flores mirrassem ao entardecer e devagar
a paixão nascesse durante o sono
um país um pouco maior que este quarto
fingiria escrever-te para te enviar a minha nova morada
poderia assim queimar os dias no desejo de receber noticias
inventaria mesmo desculpas plausíveis
greves dos correios inexistentes terríveis epidemias
catástrofes
e na espera duma carta acabaria por me embebedar
beber muito e esperar
esperar
digo tudo isto mas já não te amo
[…]
al berto
o medo
três cartas da memória das índias
(excerto)
assírio & alvim
1997
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