01 agosto 2010
fernando luís / num café de bolonha
4
De quando em quando há
um precipício, um desatino nas coisas,
encadeamentos nebulosos a que
nos levam palavras, olhares.
Nada altera a substância do mundo,
nem o acreditado sentimento nem,
em irradiado poder,
a inesperada metáfora.
Tudo está no vazio,
nesse estremecimento. Tu, mesmo
tu, levas o teu nome ao impasse,
à perda das coisas nele contidas.
É então, de quando em quando,
que voa a trave do pensamento,
a pedra da alma, o sangue,
o sangue encordoado e brilhante
e acordas impaciente,
parado, e te afundas
na ideia de morte.
fernando luís
num café de bolonha
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990
30 julho 2010
miguel esteves cardoso / rara
Ouço-te
a ser rara
a estrela
no espaço
onde algo
se desprende
e quase tudo
se desmonta
Ouço-te
a virar
os paus
a comer
vestígios
importantes
e estás
em apuros
com as noites
estás em
ponta fina
de margens
dadas
os braços
pelo pó
e os olhos
por força maior
Ouço-te
ao aparecer
da vista
e do tacto
e estás incólume
de mim
das causas
disso
dos porquês
daquilo
miguel esteves cardoso
sema
publicação sazonal de artes e letras
ano I, n.º 2,
verão 1979
28 julho 2010
wallace stevens / a casa estava silenciosa e o mundo estava calmo
A casa estava silenciosa e o mundo estava calmo
O leitor tornava-se no livro; e a noite de verão
Era como a essência consciente do livro.
A casa estava silenciosa e o mundo estava calmo.
As palavras eram pronunciadas como se não houvesse livro,
A não ser o leitor inclinado sobre a página,
A desejar inclinar-se, a desejar extremamente ser
O letrado para quem o seu livro é verdadeiro, para quem
A noite de verão é como uma perfeição de pensamento.
A casa estava silenciosa porque assim tinha de estar.
O silêncio fazia parte do sentido, parte do espírito:
Era a perfeição no seu acesso à página.
E o mundo estava calmo. A verdade num mundo calmo
No qual não há outro sentido, a própria verdade
Está calma, ela própria é verão e noite, ela própria
É o leitor em tardia vigília, inclinado, lendo.
wallace stevens
the house was quiet and the world was calm, transport to summer (1947)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003
27 julho 2010
josé miguel silva /ao amanhecer
As lágrimas não sabem
o que dizem, deixam-se cair
em turvos argumentos,
lembram-se de coisas.
Quase nos estragam as bebidas.
Ao fim de três whiskies,
abres uma porta
e tudo se aclara.
As memórias, os cadernos,
os aprestos do negrume,
ficaram para trás.
Agora já conheces
os fósforos que tens,
abriga-os da chuva de dezembro.
Quem sabe que cigarros
estarão à tua espera.
josé miguel silva
canal revista de literatura nr.6
verão de 1999
palha de abrantes
26 julho 2010
paulo barbosa / desemprego
Tal como Rimbaud, as vozes instrutivas exiladas, a abominação a todos os
modos de vida, a inabilidade na luta
Tal como La Boétie, perfilho o “Discurso Sobre a Servidão Voluntária”
Tal como o meu irmão, degrado-me na usura e sou dispensável
Tal como Belmiro, queixo-me da conjuntura e sou perverso
Agora acordo preguiçoso, sem hora nem ponto, conhecendo as mutilações
que nos aguardam, implacáveis
Tal como Ginsberg, fico sentado dias a fio a olhar as rosas na retrete
Colecciono más caras e escrevo frase sobre frase pelo cano abaixo
paulo barbosa
oficina de poesia
revista da palavra e da imagem
nr. 1 série II
junho 2002
21 julho 2010
manuel alegre / coração polar
1
Não sei de que cor são os navios
quando naufragam no meio dos teus braços
sei que há um corpo nunca encontrado algures no mar
e que esse corpo vivo é o teu corpo imaterial
a tua promessa nos mastros de todos os veleiros
a ilha perfumada das tuas pernas
o teu ventre de conchas e corais
a gruta onde me esperas
com teus lábios de espuma e de salsugem
os teus naufrágios
e a grande equação do vento e da viagem
onde o acaso floresce com seus espelhos
seus indícios de rosa e descoberta.
Não sei de que cor é essa linha
onde se cruza a lua e a mastreação
mas sei que em cada rua há uma esquina
uma abertura entre a rotina e a maravilha
há uma hora de fogo para o azul
a hora em que te encontro e não te encontro
há um ângulo ao contrário
uma geometria mágica onde tudo pode ser possível
há um mar imaginário aberto em cada página
não me venham dizer que nunca mais
as rotas nascem do desejo
e eu quero o cruzeiro do sul das tuas mãos
quero o teu nome escrito nas marés
nesta cidade onde no sítio mais absurdo
num sentido proibido ou num semáforo
todos os poentes me dizem quem tu és.
2
Ouvi dizer que há um veleiro que saiu do quadro
é ele que vem talvez na nuvem perigosa
esse veleiro desaparecido que somos todos nós.
Da minha janela vejo-o passar no vento sul
outras vezes sentado olhando o ângulo mágico
sinto a sua presença logarítmica
vem num alexandrino de Cesário Verde
traz a ferragem e a maresia
traz o teu corpo irrepetível
o teu ventre subitamente perpendicular
à recta do horizonte e dos presságios
ou simplesmente a outra margem
o enigma cintilante a florir no cedro em frente
qual é esse país pergunto eu
qual é esse país onde tudo existe e não existe
qual é esse país de onde chega este perfume
este sabor a alga e despedida
esta lágrima só de o pensar e de o sentir.
Não é apenas um lugar físico algures no mapa
é talvez o adjectivo ocidental
o verbo ocidentir
o advérbio ocidentalmente
quem sabe se o substantivo ocidentimento.
Está na palma da mão no nervo no destino
e também no teu corpo aberto ao vento do nordeste
é talvez o teu rosto alegre e triste - esse país
que existe e não
existe.
Eu não sei de que cor são os navios
sei que por vezes
no mais recôndito recanto
no simples agitar de uma cortina
numa corrente de ar
num ritmo
há um brilho súbito de estrela e bússola
uma agulha magnética no pulso
um mar por dentro um mar de dentro um mar
no pensamento.
Há um eu errante e mareante
não mais que um signo
um batimento
um coração polar
algo que tem a cor do gelo e do antárctico
e sabe a sul a medo a tentação
uma irremediável navegação interior
um navio fantasma amor fantástico
manuel alegre
senhora das tempestades
dom quixote
1998
19 julho 2010
adonis / um espelho para o século xx
Um caixão com a cara de um rapaz
Um livro
Escrito no ventre de um corvo
Um animal selvagem escondido numa flor
Um rochedo
A respirar com os pulmões de um lunático:
É isto
É isto o Século Vinte
adonis
a palavra interdita
trad. maria de lurdes guimarães
campo das letras
2001
15 julho 2010
e. e. cummings / pode nem sempre ser assim
[ i ]
pode nem sempre ser assim; e eu digo
que se os teus lábios, que amei, tocarem
os de outro, e os teus dedos fortes e meigos cingirem
o seu coração, como o meu em tempos não muito distantes;
se na face de outro os teus suaves cabelos repousarem
nesse silêncio que eu sei, ou nessas
palavras sublimes e estremecidas que, dizendo demasiado
ficam desamparadamente diante do espírito vozeando;
se assim for, eu digo se assim for –
tu do meu coração, manda-me um recado;
que eu posso ir junto dele, e tomar as suas mãos,
dizendo, Aceita toda a felicidade de mim.
Então hei-de voltar a cara, e ouvir um pássaro
cantar terrivelmente longe nas terras perdidas.
e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & Alvim
1998
14 julho 2010
amalia bautista / xerazade
Levo já quase mil noites com fábulas
e a cabeça dói-me e tenho seca
a língua e esgotados os recursos,
a imaginação. E nem sequer
sei se me salvarei com as mentiras.
amalia bautista
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004
12 julho 2010
gil t. sousa / do teu nome
21/
sobra de todo o silêncio
o raro acorde
do teu nome
a que solidão altíssima
me entregas
quando te deixas morrer assim
no abraço faminto
do tempo?
gil t. sousa
falso lugar
2004
10 julho 2010
r. lino / palavras do imperador hadriano no princípio do sono
há um pouco de vento fustigando a tarde
- mas não mais que um pouco –
e o meu corpo exposto às dunas
cai como ao princípio da noite.
hoje e ontem
escorrem-me pelos olhos
enquanto estendo as mãos
e por elas inscrevo o gosto do tacto pela areia.
disseram-me que o homem
estava escrito no homem
e o tempo dele: linhas cruzadas
ou ilhas ou maior profundidade,
nunca pude ler as tuas mãos
e das linhas apenas percebi
como pelos gestos tu me afirmavas
ou negando
me reafirmavas: dunas pelo vento
e de novo partíamos.
não posso, no entanto, pedir contas
à tua ausência. no simulacro
da coragem, quantas vezes
teremos dito o que negávamos
e a tua boca
mais perto da minha
teria, apesar
a certeza de que ninguém perde ninguém
e que os negócios do estado
apenas confirmam
entre as misérias de uns
e os ousados roubos de outros
como passa sobre essa certeza
o tempo
ao correr das sociedades
e dos impérios
no princípio desta noite.
r. lino
palavras do imperador hadriano
1984
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987
08 julho 2010
jorge reis-sá / danny boy
Vou finalmente fechar o postigo, expirar a entrada mais feliz
do meu coração. É altura, José, de deixar as flores secarem,
o poço ganhar a escuridão que vem ameaçando há anos.
Soltarei de vez os canários e os pardais que prendi
naquela gaiola, junto ao coberto. Da mesma forma
que o farei contigo – segue o teu caminho e deixa que
este pobre velho que a vida baralhou encerre os seus pulmões
e procure noutra casa entradas maiores para o maior coração.
jorge reis-sá
vou para casa
quasi
2008
06 julho 2010
rui lage / les baigneuses
...........................para o Agostinho Santos
nas margens do rio depois de jantar
um vulto equipado de isqueiro
e tabaco de enrolar
passa a pente fino cabelos
que as casas deitam nas águas
com fachadas anoitecidas
e postigos iluminados,
quais do banho saídas
ou das telas de Degas
níveas mulheres de robe
e turbante a fumegar.
rui lage
corvo
quasi
2008
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