22 janeiro 2009

ernesto sampaio / um texto poético








(…)

O fogo despe-se cada vez mais cheio de alegria alisado no vento de cada
poro da aurora
Começa-se a abrir o Sol em gotas de sangue tatuadas de esperma
Há uma flor de lava no fim de cada braço no fim de cada perna no fim
dos tempos
E uma chuva de cinzas e de espinhos caminha a meu lado onde começa o
mar das grandes lanças de água
É todo o teu ventre a cantar nas minas da catástrofe de noites sem
véus de rios que começam a vida de gestos no crepúsculo
São os teus olhos voando sobre os frutos da tempestade
É a cabeleira da Terra envenenando o ar de beleza ao ritmo alucinado
com que abres as pálpebras deixando sair os lagos da tua infância
e a luz louca da crisálida que nos gerou dissimulada em cada pedra
em cada cama onde morremos juntos

Chicote ronronando por cima de nós em noites desmedidas na coragem
de ver nascer uma nova manhã e uma nova estrada e uma nova boca incrível
Monstros sem ordem génios galopando na respiração estrelada dos meus
pulmões Primaveras a recolher numa outra vida numa outra vida amante
Olhar suculento mestre do horror e da audácia gelada em cada canto em
cada flor de fumo colada aos ossos dum horizonte inocente e inesgotável
Poeira dum astro pré-existente ao nosso espiral dos dias que estreitamos
puros tripas da raiva vegetal que embrulhamos em cada palavra
Fogo perpétuo fruto espantoso de bandeiras negras e vermelhas comboio
que esmaga e canta e ninguém deterá

Fuzis do hálito esbraseado danados embraiados num sinal nos ares num
sinal vermelho
Na cinta a pistola de cada injustiça nas costas a metralhadora da
porrada que nos deram no bolso um chacal a sorrir-nos no sexo tu
Tu meu avião de vinho minha rã no cérebro meu castelo de múmias
minha jovem eterna de mãos de radium minha fonte que enche a boca de estrelas
meu grande ventre de movimentos marítimos meu incêndio possuído numa cama de meteoros
meu sopro de todas as potências minhas costas de Mar e de Terra
minhas coxas de deboche minha mulher de movimentos de fuzilamento de movimentos loucos
minha flor de sangue de ferro de esperma minha destruição luminosa
minhas nádegas de noite e de loucura

MEU AMOR

Habito a lealdade dos presságios
Começo a ser um bom leito para o meu sangue

(…)








ernesto sampaio
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
de perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




19 janeiro 2009

konstandinos kavafis / velas







Temos à frente os dias do futuro
como uma fila de velas acesas –
quente e vivas e douradas velas.

Ficam atrás os dias passados,
fileira triste de velas sem chama:
ainda sobe fumo das que estão mais perto,
vergadas pelas frias que já se apagaram.

Eu não quero vê-las: tanto me entristece o seu ar de agora
como relembrar o fulgor antigo.
Olho à minha frente as velas acesas.

Não vou voltar-me nem vou ver num arrepio
como cresce tanto a fileira escura,
como é tão veloz o apagar das velas.






konstandinos kavafis
kavafis páginas íntimas
trad. joão carlos chainho
hiena editora
1994







18 janeiro 2009

alexandre o´neill / agora escrevo







Que queriam fazer de mim?


Uma palavra, um gemido obsceno,
Uma noite sem nenhuma saída,
Um coração que mal pudesse
Defender-se da morte,
Uma vírgula trémula de medo
Num requerimento azul, azul,
Uma noite passada num bordel
Parecido com a vida, resumindo
Brutalmente a vida!

A chave dos sonhos, o segredo
Da felicidade, as mil e uma
Noites de solidão e medo,
A batata cozida do dia-a-dia,
O muscular fim de semana,
As sardinhas dormindo,
Decapitadas, no azeite,
O amor feito e desfeito
Como uma cama
E ao fundo – o mar…
Mas defendi-me e agora escrevo
Furiosamente, agora escrevo
Para alguém:

Lembras-te, meu amor, dos passeios que demos
Pela cidade? Dos dias que passámos
Nos braços da cidade?
Coleccionámos gente, rostos simples, frases
De nenhum valor para além do mistério
Também simples do nosso amor,
Inventámos destinos, cruzámos vidas
Feitas de compacta vontade,
De dura necessidade, rostos frios
Possuídos por uma ausência atroz,
Corpos extenuados mas sem nenhum sono para dormir,
Olhos já sem angústia, sem esperança, sem qualquer
Pobre resto de vida!
Seguimos a alegria das crianças, agressiva
Como o carvão riscando uma parede,
Aprendemos a rir (oh que vergonha!...)
Com a gente «ordinária», e calados
Descemos até ao rio – e ali ficámos
A ver!

O amor continua muito alto,
Muito acima, muito fora
Da vida, muito raro
E difícil: maravilhoso
Quando devia ser fiel,
Fiel em cada dia,
Paciente e natural em cada dia,
Profundo e ao mesmo tempo aéreo,
Verde e simples,
Como uma árvore!

Ganhámos juntos o que perdemos separados:
A luz incomparável, esta luz quase louca
Da primavera, esta gaivota
Caída dos ombros da luz,
E a leve, saborosa tristeza do entardecer,
Como uma carta por abrir,
Uma palavra por dizer…


Ganhámos juntos o que vamos perdendo
Separados:
A alegria – inocente
Cidade,
Coração aberto pela manhã,
Pequeno barco subindo
Nitidamente o rio,
Fumegando, fumando
Com o seu ar importante de homenzinho…
E a ternura – beijo sobrevoando
O teu rosto fiel,
Fogo intensamente verde sobre a terra,
Intensamente verde nos teus olhos,
Pequeno «nariz ordinário»
Que entre os meus dedos protesta
E se debate…


Duas árvores de avanço,
Uma corrida louca…
… E o teu coração na minha boca!


E o amor,
Não o que destrói, o que não é amor,
Não a fúria dos corpos quando trocam
Desespero por desespero,
Não a suprema tristeza de existir,
A obscena arte de viver,
A ciência de não dar e receber,
Mas o amor que se traduz
Pela bondade, a confiança,
A pureza, a fraternidade,
A força de viver, de triunfar da morte,
De triunfar da sorte,
A vertigem de conhecer
Necessidade e liberdade!


Ganhámos juntos o que perdemos separados.


Flechas velocíssimas,
Nossos sonhos voavam
Em direcção à vida,
E era na vida que queriam acertar,
Era na vida que queriam morder,
Era à vida que nos queriam ligar!


Nos nossos sonhos entrava gente viva,
Entravam cartas, poemas, versos
Tão cheios de sentido como ruas
E ruas plenas de ritmo e sentido,
Como os melhores versos,
Entravam amigos, desejos, lutas
E esperanças comuns.
Recordações, amores antigos
Como navios perdidos muito ao longe
Ou já imóveis sob anos e anos de silêncio,
Leituras discutidas, evocadas: sonhos
E destinos próximos, tristezas e alegrias semelhantes,
Vidas exemplares,
Vidas fulgurantes de vida!


Michaux, o que dizia
A cada passo: «Et comment!»
Para exprimir o seu apago à vida,
A sua indomável alegria!
E N-2 e Berta,
Um ao outro presos
Como fantasmas,
Mas vivendo e ajudando a viver!
E Éluard, os seus poemas
Simples como gestos de alegria,
Directos como palavras
De justa cólera,
Irreprimíveis como beijos
Quentes de ternura,
Completos como pássaros
Rápidos no azul!
E muitos outros ainda,
Muitas outras vidas,
Reais ou inventadas
Exemplarmente do real!


Nos nossos dias entravam dúvidas e erros,
A terrível solidão de certas horas
Sem um ombro amigo,
O coração abandonado, flutuando
Como um peixe morto, um resto
De calor dentro do frio.
Dúvidas, erros,
E a tentação de levantar andaimes,
De entrar «em obras», de instalar
Em cada dia um «problema»
E de dourar
O «problema» de cada dia…


Mas não só a dúvida e o erro,
O coração entornado, a cabeça perdida
Entravam nos nossos dias.
Porém
Tratava-se de realizar.


«Realizar»: fazer passar
Para a realidade,
Pôr em prática sonhos,
Ideias, teorias.
Por exemplo: a indústria,
A agricultura realizam
Certas teorias
Químicas, físicas,
Biológicas.
Por exemplo: hoje
Estão a ser realizados
Os mais velhos
Sonhos do homem.
Por exemplo – mais pessoal
Mas não menos importante:
Em ti
Via realizados os meus sonhos!










alexandre o´neill
surrealismo / abjeccionismo
antologia organizada por
mário cesariny de vasconcelos
minotauro
1963








15 janeiro 2009

saint-john perse / elogios xvi





… Aqueles que são antigos na região, são levados, muito cedo, a empurrar o postigo e olhar o céu, o mar que muda de cor e as ilhas, dizendo: o dia será belo a julgar por esta aurora.

E logo depois é o dia! E as chapas dos telhados acendem-se num frémito, e a baía é abandonada à angústia, o céu à fluência, e o Contador precipita-se na insónia!

O mar, entre as ilhas, é rosa de luxúria; o seu prazer é assunto a discutir, pode-se tê-lo por uma colecção de pulseiras de cobre.
Crianças correm nas margens! Cavalos correm nas margens! …um milhão de crianças servindo-se das suas pestanas como guarda-sóis… e o nadador

tem uma perna na água tépida mas a outra pesa numa corrente fresca; e as gonfrenas, os ramis,
os acalefos de flores verdes e essas pílias de tufos apertados que são a barba dos velhos muros
enlouquecem sobre os telhados, nas bordas das goteiras,

pois um vento, o mais fresco do ano, levanta-se nos lagos das ilhas que se azulam,
e, espraiando-se até estas rochas planas, as nossas casas, corre no interior do ancião
até ao lugar cheio de crinas que há no peito.

E o dia iniciou-se, o mundo
não é assim tão velho que, de repente, não tenha rido…


*

É então que o cheiro do café sobe a escada.








saint-john perse
elogios
trad. jorge melícias
quasi
2002








13 janeiro 2009

amalia bautista / que fazes aqui?








Julgava que te tinha dito adeus,
um adeus contundente, ao deitar-me,
quando pude por fim fechar os olhos,
esquecer-me de ti, dessas argúcias,
dessa tua insistência, teu mau génio,
tua capacidade de anular-me.
Julgava que te tinha dito adeus
de todo e para sempre, mas acordo,
encontro-te de novo junto a mim,
dentro de mim, rodeias-me, a meu lado,
invades-me, afogas-me, diante
dos meus olhos, em frente à minha vida,
por sob a minha sombra, nas entranhas,
em cada golpe do meu sangue, entras
por meu nariz quando respiro, vês
pelas minhas pupilas, lanças fogo
nas palavras que minha boca diz.
E agora que faço?, como posso
desterrar-te de mim ou adaptar-me
a conviver contigo? Principie-se
por demonstrar maneiras impecáveis.
Bom dia, tristeza.










amalia bautista
cuéntamelo outra vez
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004

12 janeiro 2009

pedro s. martins / sem título







voei na dança de nuvens vermelhas
pejos testemunhas daqueles
que no mais simples exercício de lucidez
nunca conseguiram elevar os pés acima do sonho. e vi
copas de velas humanas amedrontadas pelo cinza das
almofadas indefinidas. fumos negros saídos das
vossas línguas infaustas
incapazes de serem filtrados pelos cardumes
de peixespecado que moram
na vossa saliva agreste

agora que o sol desbaratou as nuvens que me eram colmo
resta-me esperar que o gritar do fogo
me guie até casa
pois quando vir tudo pintado com o filho
do laranja vermelho incandescente
saberei certamente
que o meu legado é consumido a par com o mundo







pedro s. martins










08 janeiro 2009

carlos poças falcão / os restos







De noite há movimentos para nada procurar:
moeda sobre o tampo numa rotação local,
faces sem saída, cinzas nos cinzeiros.
Vêm habitantes para um esplendor funesto
e a alma fica líquida, dobrada nos sifões,
sob as galerias, por bares subterrâneos.
Há séculos nocturnos em que as moedas giram
assim entre conversas e qualidades mortas.
Nada se procura quando não existe encontro
- e as cidades brilham nas zonas terminais,
às luzes amarelas. É preciso haver um mito
para esmerilar os restos, as areias, os pós de ouro.







carlos poças falcão
poesia do mundo/2
edições afrontamento
1998







07 janeiro 2009

andre breton e paul éluard / tentativa de simulação da mania aguda





Bom dia, Senhores, boa noite, Minhas Senhoras e Companhia do Gás. Senhor Presidente, estou às suas ordens, tenho um chapéu tricorne negro na minha bicicleta. Puseram o gato, o cão, a minha mãe e o meu pai, os meus filhos, a águia na sua carrocinha, puseram os espécimes pobres no furgão, cujos eixos giram, giram e giram. De uma ponta à outra, as agulhas caem como feridas à sabrada. O cemitério está na ponta da aldeia perto da câmara municipal. Aí está o que não é para reatar as cadeias da família em tempo de fome.

O cocorocó das elegantes anima as alíneas dos escrivães. Existe ali Lamartine que dormia num estandarte em cima da carreta de urna garupa de lebre a toda a velocidade, existia lá Bazaine que ia entregar Sedan a César. Tu, por exemplo, não estás lá: tu tens um regador, tens uma perna cortada, isso sorna duas pernas que eu salto no mês de Janeiro. Em Fevereiro colho as favas. Em 1930 vivo dos meus rendimentos.

Atingido por uma insolação no alto do céu, o Parisiense acaba por armar uma rede de patos. Não se grita por socorro, mas auréola, e a dignidade encontra-se nela bem. Tenho processos absolutamente seguros para colher o feno do fauno. Um massagista ofereceu-me uma amassadeira. É para as reler ao canto da lareira que trago comigo as obras dos Titãs e dos Tântalos. Não tenho necessidade de os mencionar no inventário das minhas invenções. A pintura faz-se notada. Respeito Monsieur Courbet, Monsieur Ingres fatiga-me. Foices eclipsam a meus olhos a couraça. Aqui, a propósito disto, avisei os gendarmes: não sacrificamos jogos de cartas à pequena preguiça; não é uma razão para estarmos enforcados em corvos com vinte metros de altura, para irmos gritar «Arre» às árvores mortas.

O casamento de Maria consumou-se no meio de um transbordamento de suspiro. Foi preciso separar o construtor da sua obra. Ele misturava demasiadas arquitecturas a esta carcaça de tijolos que ceifa as sanguessugas nas belas tardes de Verão. O ventre conserva-se inteiramente vivo na mão. Eu gosto de estar deitado sobre o ventre, com a condição de não ser sempre o meu., bem entendido. As mulheres são mãos pequeninas em Paris e mãos grandes no campo. Comem os pardais no Luxemburgo. Não compreendo o esperanto mas acho que a esperança desordenada começa por si mesma. Aposto urna bexiga contra uma lanterna de um gato-pingado em como não existe a eternidade. A eternidade é o éter e mais nada. Fiz os meus estudos em casa de uni advogado que me dizia: Nunca confesse. Na junta de saúde fui reformado pela visão.

Possuo um pavilhão de caça. Uma porta de verdura fecha a herdade de uma ponta a outra. Eu recolho as apostas. O quinteiro tem um chapéu que eu usei, é uma oferta da quinteira. No fundo do chapéu há o meu retrato com os pés no ar (pois é o chapéu quem olha). As crianças que brincam à volta deles apanham bofetadas. Se se batesse o sangue como se bate o leite, iriam fazer-se observações. Bismarck dizia-me no outro dia: «Agarra o teu tempo, que eu apanhei bem a Alsácia.» Bebemos uma taça de champanhe no Champ-do-Mars. O florista que espezinha os canteiros espezinha as áleas. Para a caça que ele leva levantam patíbulos de forca.

Não tenho como finalidade senão o símbolo da oração que dirijo todas as tardes, à minha meca. A bárbara pede perdão. Tiro o meu prazer da barba à imperial onde o encontro. A feitiçaria é uma devassidão que desemboca na sala de lavores, a obra de caridade. Se me rio é por causa da alva nos joelhos, uma bela carapuça de piolhos em cima da cabeça. O filho de Louise mudou a espingarda de ombro. Ele não cumpre dos seus deveres militares senão
o estritamente necessário: o capacete. Fraternizar igualmente com sua irmã.

Escrevo desenho, tenho boca de lobo, tenho a minha mulher comigo na minha cama, mesmo quando estou de pé. Ela trabalha para mim a entregar-se a todos os prazeres. Dou-lhe o seio assim como aos filhos que afago no ângulo. Ao mais pequeno chamo São Tomás, o pequeno São Tomás, e à maior; Primavera. É muito bonito. Toda a gente me felicita. Fiz com que fizesse a primeira comunhão em cima do balcão com um biscoito. Isto é o meu sangue, explicava-lhes eu. Depois comemos bacalhau salgado debaixo das franjas do candeeiro. E meti-os num colégio. Há mais de dez anos que não tenho notícias deles. Quem sabe se a pequena não se casou e divorciou. Minha mãe casou-se com o Xá da Pérsia, alugaram uma loja em Passy, uma espécie de casa de passe com passagem de nível para os homens sós. O xá chega cedo ao castelo, minha mãe é furta-cores.

Trago comigo uma canção que as raparigas gostam de cantar, eu empresto-a. Em troca elas confiam-me o seu primeiro livro de valor que lhes foi entregue com uma coroa seca. Recuso assinar os beijos que elas me dão. Faço-lhes sinal para terem paciência. Já não tenho idade de ter horror pela tempestade. Na nossa cama, tocamos a quatro mãos uma ária de Luili que nunca li na cama, a Paiva penteia-se a tomar banho, romanza, e também a ária da Viúva às escuras. Eu arrasto os sobejos de reconhecimento para os sorrisos que brilham à minha volta. Não me detenho com precauções inúteis.Suporto o fardo que me deram porque é quente mas só me preocupo com as ninfas. Há uma que esconde uma fonte no sovaco. Os oleiros à noite ali vão procurar a cor fugitiva.

Um dia disse para mim: O que faz esta chave na minha algibeira? Fui então a Mans ver Clemenceau. Disse-lhe: «Sabe o que esta chave faz na minha algibeira?» Ele pôs-me um olho negro e eu tive de ficar de guarda à Câmara dos Deputados durante vinte e quatro horas. Roubei a fechadura, depois de me ter certificado que estava realmente à temperatura da Câmara. Com medo que o Presidente se escondesse com as consequências deste incidente, mandei dourar seis dentes e apanhei um balão para voltar a casa. No balão encontro Gambetta. Digo-lhe: «Sabe O que faz este balão no céu?» Ele atira-me pela borda fora mas o meu cerco estava feito havia muito tempo. Era o cerco de Paris. Assino a paz e vou buscar o papel mata-borrão aos Inválidos. Na esplanada encontro Madame Curie que volta das corridas. Digo-lhe «Não tem vergonha de correr assim na sua idade?» Ela empresta-mo o seu cavalo e eis que chegamos ao seu ranch, faubourg Saint-Germain. Ali fizemos experiências de germinação espontânea. Entendia-me bem com Pasteur mas a sua irmã fez quanto pôde para me tornar a vida impossível. Dormia com um olho aberto e outro fechado. Urna noite, a aia percebeu que, muito habilmente eu a via a despir-se. Gritou tanto que toda a gente apareceu e se lançou sobre mim para me forçar a partir.

… … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Agora não me meto em mais nada, embora a guerra tenha acabado. Deito-me debaixo das pontes dos rios sem água cortados pela chuva, já não agradarei a ninguém, já não sou eu sequer quem está na minha mala de porco, não tenho fome, não tenho medo: cobarde de mais para ter medo, comilão de mais para comer. Fui eu quem tive de amputar a mulher do sexo do homem com o pretexto de cirurgia estética. Estou mais acabado que um folhetim. Ninguém se daria ao trabalho de me dar trabalhos. Estou magro como um cepo que só tem a sombra da sua única folha. Sou realmente um qualquer, arrasto-me sobre os fechos da minha janela, deviam abater-me com assobios deviam prestar-me o imenso serviço de se servirem do meu pé para pé de mesa.








andre breton e paul éluard
as possessões
a imaculada concepção

tradução franco de sousa
estúdios cor
1972






06 janeiro 2009

alejandra pizarnik / conto de inverno







A luz do vento entre os pinheiros - compreendo
estes sinais de tristeza incandescente?



Um enforcado balança-se na árvore marcada com a cruz
lilás.

Até que conseguiu deslizar fora do meu sonho e
entrar no meu quarto pela janela, com a cumplicidade
do vento da meia-noite.








alejandra pizarnik
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro

tradução de josé bento
assírio & alvim
2001






04 janeiro 2009

maria victoria atencia / reencontro






Na noite infinita dos que não têm consolo,
Sob a tremenda luz do suicídio perdem-se
suas palavras talvez, enquanto o gelo range
pelo amor que um dia, por certo, contiveram,
e que agora os levanta – oh, sim: bem lentamente –
até à própria face da Suprema Beleza.








maria victoria atencia
antologia poética
el coleccionista
tradução josé bento
assírio & alvim
2000






30 dezembro 2008

conselhos de ano novo







Senhoras e senhores da classe de 99.
Usem protector solar.
Se apenas vos pudesse dar um conselho para o futuro,
diria: usem protector solar.

As suas vantagens a longo prazo
já foram provadas cientificamente,
ao passo que o resto dos meus conselhos
não têm outra base mais segura
do que a minha atribulada experiência.

Agora, vou dar-vos os meus conselhos para o futuro.

Gozem a força e a beleza da vossa juventude.
Mas deixem lá,
que só compreenderão a força e a beleza da vossa juventude
quando a tiverem perdido.

Daqui a 20 anos hão-de olhar para os vossos retratos
e ver que registaram coisas que vocês agora não conseguem entender:
as possibilidades que se vos abriam
e o aspecto fabuloso que tinham!

É que vocês não são tão gordos como imaginam.

Deixem de se preocupar com o futuro,
ou então preocupem-se
mas saibam que isso vale tanto a pena
como tentar resolver uma equação de álgebra
a mascar pastilha elástica.

Os verdadeiros problemas da vossa vida
serão coisas que nem sequer passaram
pelas vossas cabeças preocupadas.
Do tipo daquelas que surgem às 4 da tarde numa terça-feira qualquer.

Façam todos os dias uma coisa daquelas que mete medo.
Cantem.

Não se tornem levianos com o coração dos outros
nem aceitem que o sejam com o vosso.

Usem o fio dental.

Não sejam invejosos:
às vezes vamos à frente, outras vamos atrás.
A corrida é longa,
mas a verdade é que é uma corrida contra vós próprios.

Lembrem-se dos elogios que vos fizeram,
esqueçam os insultos.
(Se conseguirem, digam-me como é que fizeram.)

Guardem as vossas velhas cartas de amor,
queimem antes os extractos do banco.

Façam “stretch”.
Não tenham remorsos
se não souberem o que querem fazer da vida.
As pessoas mais extraordinárias que conheci,
não sabiam, aos 22 anos, o que queriam fazer dela.
Alguns dos quarentões mais interessantes que conheço,
ainda não sabem...

Tomem bastante cálcio.
Cuidem dos vossos joelhos
Que vos vão fazer muita falta.

Talvez se casem, talvez não.
Talvez tenham filhos, talvez não.
Talvez se divorciem aos 40 anos,
talvez dancem sem parar no vosso 75º aniversário de casamento.

Façam o que fizerem,
não se entusiasmem demais,
nem se censurem.
As vossas escolhas são meio caminho andado,
tal como acontece com toda a gente.

Gozem o vosso corpo,
usem-no de toda a maneira que puderem!
Não tenham medo dele, nem do que os outros pensam dele:
o vosso corpo
é o instrumento mais fantástico que jamais terão!

Dancem, ainda que não tenham onde dançar,
a não ser na vossa sala de estar!

Leiam todas as instruções,
mesmo que não as sigam.
Não leiam revistas de beleza, porque se sentirão mais feios!

Dêem-se ao trabalho de conhecer os vossos pais,
nunca se sabe quando vos deixarão para sempre!

Sejam simpáticos com os vosso irmãos,
eles são a melhor ligação que têm com o passado
e os que, mais provavelmente,
se manterão ao vosso lado no futuro.

Compreendam que os amigos vêm e vão.
Aguentem-se com os poucos e os melhores que têm.

Trabalhem muito para preencher as lacunas em geografia
e no estilo de vida.

À medida que forem envelhecendo,
mais vão precisar das pessoas que conheciam quando eram novos.

Vivam uma vez na cidade de Nova Iorque,
mas partam antes que ela vos torne duros!
Vivam uma vez na Carolina do Norte,
mas partam antes que ela vos torne moles demais.

Viajem.
Aceitem certas verdades inalienáveis.

Haveis de passar por crises,
os políticos não deixarão de vos endrominar,
vocês também vão envelhecer.
Quando isso acontecer, vocês também vão dizer
que quando eram novos os preços eram razoáveis,
que os políticos eram mais sérios
e que as crianças respeitavam os mais velhos.

Respeitem os que são mais velhos que vocês.

Não fiquem à espera que alguém vos sustente.
Talvez venham a ter bens ou casem com alguém rico,
mas nunca se sabe se tudo isso desaparecerá...

Não se preocupem demais com o cabelo,
senão, quando tiverem 40 anos, ficarão com o ar de quem tem 85.

Tenham cuidado com os conselhos que ouvem,
mas sejam pacientes com aqueles que os dão.

Os conselhos são uma espécie de nostalgia.
Dá-los é uma maneira de trazer o passado,
de o limpar,
de o pintar por cima dos pedaços feios
e de o reciclar por mais do que vale.

Mas não deixem de acreditar em mim
quanto à protecção solar.









baz luhrmann
everibody’s free (to wear sunscreen)
cd “something for everybody”
emi-vc
(tradução livre)

23 dezembro 2008

marguerite yourcenar / estações alciónicas...







Estações alciónias,
solstício dos meus dias ...

Longe de embelezar, à distância,
a minha felicidade,
devo lutar para lhe não turvar a imagem;
a sua própria recordação
é hoje demasiado forte para mim.

Mais sincero que a maioria dos homens,
confesso sem rodeios
as causas secretas dessa felicidade:
aquela calma tão propícia aos trabalhos
e às disciplinas
parece-me um dos mais belos efeitos
do amor.


E espanto-me
de que estas alegrias tão precárias,
tão raramente perfeitas no decorrer de uma vida humana,
sob qualquer aspecto
além de que nós os tenhamos procurado
e recebido,
sejam consideradas com tanta desconfiança
por pretendidos sábios,
que eles receiem o seu hábito e excesso
em vez de temer a sua falta e perda,
que passem a tiranizar os sentidos
um tempo que seria mais bem empregado
a ordenar ou a embelezar a alma.

Naquela época
punha em fortalecer a minha felicidade, apreciá-la,
e também em julgá-la,
a atenção que sempre dispensara aos mais pequenos pormenores
dos meus actos;
e que é a própria voluptuosidade
senão um momento de atenção apaixonada do corpo?

Toda a felicidade é uma obra-prima:
o menor erro falseia-a,
a menor hesitação altera-a,
a menor deselegância desfeia-a,
a menor estupidez embrutece-a.


A minha
não é responsável em coisa alguma por aquelas
das minhas imprudências
que mais tarde a quebraram.

Julgo ainda
que teria sido possível a um homem mais hábil que eu
ser feliz até à morte.









marguerite yourcenar
memórias de adriano
trad. maria lamas
ulisseia
1974







15 dezembro 2008

raul brandão / papéis do gabiru

.
.



klavdij sluban








chove um dia, outro dia, sempre.
amanhece um dia nublado,
outro dia alvorece áspero e negro.
o vento abala a pedra
sobre que é construído o casebre.
o inverno tem a sua voz própria,
a sua cor, o seu vestido em farrapos
com que agasalha os montes
deixando-lhe os ossos de fora.
mas o inverno é sonho.
só agora o compreendo.
é sonho concentrado:
sob esta casca ressequida
está uma primavera intacta.
esta voz clamorosa é a voz dos mortos.
uma pausa,
a prostração da tempestade,
e depois redobra o clamor...
andam aqui as suas lágrimas...
na sufocação
reconheço esta voz que me chama.
e depois a tempestade,
novos gritos,
a escuridão profunda...

lá andaremos todos não tarda!
lá andaremos todos não tarda!

"que frio o outro mundo!
que impassibilidade a do outro mundo

saudade, saudade de tudo, até do fel,
saudade de te não sentir ao pé de mim.
tenho saudade da vida.
só poder aquecer-me ao lume,
só sentir o lume neste inverno sem limites,
neste frio de morte - sem outra primavera!


o que a vulgaridade sabe bem! o que a matéria sabe bem!

não vejo. ceguei.

disperso-me, e por mais esforços que faça,
sinto-me desagregar:
perco pouco e pouco a consciência de mim mesma.
sou ainda ternura e pouco mais.
já não tenho lágrimas.

quem me dera a desgraça!

e uma pena da vida! uma saudade da vida!
uma tristeza de não poder misturar-me à vida!
a vida - e um cantinho do lume,
a vida banal, a vida comezinha...
tenho saudades do muro a que costumava queixar-me.

vive devagarinho.
aquece-te à réstea do sol
como quem nunca mais tornará a aquecer-se;
perde todas as horas a trespassar-te da vida.

deixa que sobre ti caia o pó de oiro. vive-a.

tu és a nuvem, tu és a árvore.
enche a consciência de todas estas coisas,
porque não tardarás a perdê-la.

vive - não tornas a viver.
põe de acordo a tua alma com a pedra,
extrai encanto do céu e da miséria.
pudesse eu gritar! pudesse eu ter fome!

só agora dou pelo sabor das lágrimas.

sorri, esquece, dorme, sonha..."







raul brandão
húmus
(grafia adaptada)
frenesi
2000