18 janeiro 2009

alexandre o´neill / agora escrevo







Que queriam fazer de mim?


Uma palavra, um gemido obsceno,
Uma noite sem nenhuma saída,
Um coração que mal pudesse
Defender-se da morte,
Uma vírgula trémula de medo
Num requerimento azul, azul,
Uma noite passada num bordel
Parecido com a vida, resumindo
Brutalmente a vida!

A chave dos sonhos, o segredo
Da felicidade, as mil e uma
Noites de solidão e medo,
A batata cozida do dia-a-dia,
O muscular fim de semana,
As sardinhas dormindo,
Decapitadas, no azeite,
O amor feito e desfeito
Como uma cama
E ao fundo – o mar…
Mas defendi-me e agora escrevo
Furiosamente, agora escrevo
Para alguém:

Lembras-te, meu amor, dos passeios que demos
Pela cidade? Dos dias que passámos
Nos braços da cidade?
Coleccionámos gente, rostos simples, frases
De nenhum valor para além do mistério
Também simples do nosso amor,
Inventámos destinos, cruzámos vidas
Feitas de compacta vontade,
De dura necessidade, rostos frios
Possuídos por uma ausência atroz,
Corpos extenuados mas sem nenhum sono para dormir,
Olhos já sem angústia, sem esperança, sem qualquer
Pobre resto de vida!
Seguimos a alegria das crianças, agressiva
Como o carvão riscando uma parede,
Aprendemos a rir (oh que vergonha!...)
Com a gente «ordinária», e calados
Descemos até ao rio – e ali ficámos
A ver!

O amor continua muito alto,
Muito acima, muito fora
Da vida, muito raro
E difícil: maravilhoso
Quando devia ser fiel,
Fiel em cada dia,
Paciente e natural em cada dia,
Profundo e ao mesmo tempo aéreo,
Verde e simples,
Como uma árvore!

Ganhámos juntos o que perdemos separados:
A luz incomparável, esta luz quase louca
Da primavera, esta gaivota
Caída dos ombros da luz,
E a leve, saborosa tristeza do entardecer,
Como uma carta por abrir,
Uma palavra por dizer…


Ganhámos juntos o que vamos perdendo
Separados:
A alegria – inocente
Cidade,
Coração aberto pela manhã,
Pequeno barco subindo
Nitidamente o rio,
Fumegando, fumando
Com o seu ar importante de homenzinho…
E a ternura – beijo sobrevoando
O teu rosto fiel,
Fogo intensamente verde sobre a terra,
Intensamente verde nos teus olhos,
Pequeno «nariz ordinário»
Que entre os meus dedos protesta
E se debate…


Duas árvores de avanço,
Uma corrida louca…
… E o teu coração na minha boca!


E o amor,
Não o que destrói, o que não é amor,
Não a fúria dos corpos quando trocam
Desespero por desespero,
Não a suprema tristeza de existir,
A obscena arte de viver,
A ciência de não dar e receber,
Mas o amor que se traduz
Pela bondade, a confiança,
A pureza, a fraternidade,
A força de viver, de triunfar da morte,
De triunfar da sorte,
A vertigem de conhecer
Necessidade e liberdade!


Ganhámos juntos o que perdemos separados.


Flechas velocíssimas,
Nossos sonhos voavam
Em direcção à vida,
E era na vida que queriam acertar,
Era na vida que queriam morder,
Era à vida que nos queriam ligar!


Nos nossos sonhos entrava gente viva,
Entravam cartas, poemas, versos
Tão cheios de sentido como ruas
E ruas plenas de ritmo e sentido,
Como os melhores versos,
Entravam amigos, desejos, lutas
E esperanças comuns.
Recordações, amores antigos
Como navios perdidos muito ao longe
Ou já imóveis sob anos e anos de silêncio,
Leituras discutidas, evocadas: sonhos
E destinos próximos, tristezas e alegrias semelhantes,
Vidas exemplares,
Vidas fulgurantes de vida!


Michaux, o que dizia
A cada passo: «Et comment!»
Para exprimir o seu apago à vida,
A sua indomável alegria!
E N-2 e Berta,
Um ao outro presos
Como fantasmas,
Mas vivendo e ajudando a viver!
E Éluard, os seus poemas
Simples como gestos de alegria,
Directos como palavras
De justa cólera,
Irreprimíveis como beijos
Quentes de ternura,
Completos como pássaros
Rápidos no azul!
E muitos outros ainda,
Muitas outras vidas,
Reais ou inventadas
Exemplarmente do real!


Nos nossos dias entravam dúvidas e erros,
A terrível solidão de certas horas
Sem um ombro amigo,
O coração abandonado, flutuando
Como um peixe morto, um resto
De calor dentro do frio.
Dúvidas, erros,
E a tentação de levantar andaimes,
De entrar «em obras», de instalar
Em cada dia um «problema»
E de dourar
O «problema» de cada dia…


Mas não só a dúvida e o erro,
O coração entornado, a cabeça perdida
Entravam nos nossos dias.
Porém
Tratava-se de realizar.


«Realizar»: fazer passar
Para a realidade,
Pôr em prática sonhos,
Ideias, teorias.
Por exemplo: a indústria,
A agricultura realizam
Certas teorias
Químicas, físicas,
Biológicas.
Por exemplo: hoje
Estão a ser realizados
Os mais velhos
Sonhos do homem.
Por exemplo – mais pessoal
Mas não menos importante:
Em ti
Via realizados os meus sonhos!










alexandre o´neill
surrealismo / abjeccionismo
antologia organizada por
mário cesariny de vasconcelos
minotauro
1963








2 comentários:

vieira calado disse...

Não conhecia o blog.
Mostra-nos o que melhor de escreve.

Cumprmentos

Anónimo disse...

Olá! Muito bom seu espaço! Aproveito pra sugeri-lo o meu
www.semtidogozado.blogspot.com
Parabéns!