05 outubro 2008

laurie anderson / estranhos anjos







Dizem que o Paraíso é como a TV
Um mundo pequeno e perfeito
Que não precisa de nós para nada
E lá tudo é feito de luz
E os dias vão-se sucedendo
Aí vêm eles aí vêm eles
Aí vêm eles.


Foi um daqueles dias
Maiores que a própria vida
Quando os amigos vêm para jantar
E vão ficando a noite toda
Limpam o frigorífico
Comem tudo o que encontram
Vão-se deixando ficar pela sala
A chorar a noite inteira.


Estranhos anjos – cantando só para mim
Histórias velhas que me assombram
Afinal nada é como eu pensava.


Ia eu no meu carro de quatro portas
Com a capota descida
Olhei e ali estavam elas:
Milhões de minúsculas lágrimas
Por ali apenas suspensas
Não sabia se rir ou chorar
E disse para comigo:
E agora, céu imenso, que se segue?


Estranhos anjos – cantando só para mim
Os meus trocos caindo sobre mim
A chuva caindo caindo sobre mim
Toda sobre mim
Estranhos anjos – cantando só para mim
Velhas histórias – que me assombram
Vêm aí grandes mudanças
Aí vêm elas
Aí vêm elas.











laurie anderson
anéis de fumo
poemas
tradução de joão lisboa
assírio & alvim
1997







02 outubro 2008

m. fernanda silva / um ar de qualquer coisa







depois um ar de qualquer coisa
qualquer
um nada de nada
intrincado
uma gota em goteiras de
nervosos rastos de gotas

uma andorinha que desenha guinchos
nos papeis das nuvens por abrir








m.f.s.






30 setembro 2008

else lasker-schüler / despedida







Mas tu nunca vinhas com a noite –
E eu sentada com casaco de estrelas.


… Quando batiam à minha porta
Era o meu próprio coração.


Agora pendurado em todas as ombreiras,
Também na tua porta;


Entre touros rosa-de-fogo a extinguir-se
No castanho da grinalda.


Tingi-te o céu cor de amora
Com o sangue do meu coração.


Mas tu nunca vinhas com a noite
… E eu de pé com sapatos dourados.








else lasker-schüler
a alma e o caos
100 poemas expressionistas
quarta estação: outono, morte, transfiguração
selecção e tradução de joão barrento
relógio d´água
2001






24 setembro 2008

e. e. cummings / nada é mais exactamente terrível






[ ix ]




nada é mais exactamente terrível do que
estar sozinho em casa, com alguém e
com alguma coisa)

Partiste há risos

e o desespero imita uma rua

eu inclino-me à janela, contemplo espectros,
um homem
estreitando uma mulher num parque. Perfeito


e ao de leve (porquê? Ou para não compreendermos)
ao de leve eu estou ouvindo alguém
a vir para cima, cautelosamente
(cautelosamente subindo atapetado lanço após
atapetado lanço. serenamente, subindo
os atapetados degraus do terror)


e continuamente eu estou vendo alguma coisa

inalando suavemente um cigarro (num espelho








e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & alvim
1998


22 setembro 2008

jean-arthur rimbaud / vidas








I

Oh as avenidas imensas da Terra
Santa, os terraços do templo! Que fizeram
do brâmane que me explicava os Provér-
bios? De então, de aí, até as velhas vejo
ainda! Recordo as horas de prata e de
sol em direcção aos rios, a mão da terra
em cima do meu ombro e as nossas carí-
cias trocadas de pé na planície odo-
rante. — Uma revoada de pombos escar-
lates estala em torno do meu pensamento.
— Aqui exilado, tive um palco para repre-
sentar as obras-primas dramáticas de to-
das as literaturas. Ter-vos-ia mostrado
riqueza inaudita. Observo a história dos
vossos tesouros. Vejo a continuação! Para
vós, a minha sabedoria é tão desprezível
como o caos. Que é o meu nada, com-
parado ao horror que vos espera?



II

Sou um inventor muito mais meritório
do que qualquer dos meus predecessores;
um músico que descobriu algo como a
clave do amor. Agora, gentil-homem de
província pobre e céu austero, procuro
enternecer-me com a recordação da infân-
cia mendiga, a aprendizagem ou o regresso
em farrapos, as querelas, as cinco ou as
seis vezes em que fiquei viúvo, e as algu-
mas bodas em que a minha testa de ferro
me não deixou seguir o diapasão dos
camaradas. Não choro o meu velho qui-
nhão de alegria divina: o ar austero desta
terra pouca alimenta muito activamente
o meu atroz cepticismo. Mas como o meu
cepticismo deixou de ser manobrável e
me votei a uma ânsia nova fico à espera
de ser um louco muito perigoso.



III

Num esconso onde me fecharam aos
doze anos conheci o mundo, ilustrei a
comédia humana. Num celeiro aprendi
história. Em qualquer festa nocturna
duma cidade do Norte, encontrei todas
as mulheres dos antigos pintores. Numa
velha arcada de Paris ensinaram-me as
ciências clássicas. Numa incursão magní-
fica, assistido por todo o Oriente, com-
pletei minha obra imensa e fiz a minha
insigne retirada. Fermentei o meu sangue.
Fui-me restituído. Há que deixar de, se-
quer, pensar nisso. Sou realmente de
além-túmulo, e nada de comissões.











jean-arthur rimbaud
iluminações
uma cerveja no inferno

trad. mário cesariny
estúdios cor
1972







18 setembro 2008

mário-henrique leiria / retorno à memória








estar sempre com frio
como o caminhar à noite só sem luz
como a árvore que olha com raiva a tempestade
talvez mesmo como a cama
que conserva apenas as formas já desfeitas
dos corpos que nelas se deitam


depois com o vento
é a saudade das madrugadas doutros tempos
quando o simples descer uma escada
era a mais extraordinária das aventuras
quando a certeza de encontrar uns braços abertos
estava evidente no fundo da escuridão


então tudo era simples muito belo
qualquer palavra tua
era a mais maravilhosa das afirmações
qualquer gesto que fizesses
era o mais belo movimento de amor
caminhar ao acaso
era a grande viagem sempre renovada todos os dias
e à noite
não havia frio como agora
mesmo que o mar nos cobrisse de algas
mesmo que a areia
trouxesse consigo o gelo das mais remotas estrelas


agora amor escuto o teu olhar
através da distância cada vez maior e mais alucinante
que nos separa
escuto-o através da ponte
que formaram os caminhos por nós percorridos um dia
vejo-te como partiste
muito pura flores na testa mãos abertas
igual às madrugadas doutros tempos
igual à grande aventura
de caminhar ao acaso










mário-henrique leiria
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998







15 setembro 2008

casimiro de brito / três fragmentos do livro das quedas





)(

Escrevo pássaros e nada sei
do corpo deles nem das suas
inclinações – nada sei do amor
tão pleno de falsificações. Se canto,
se escrevo assim às escuras da noite
do meu lençol
é porque não sei incorporar
os ruídos, as veredas da casa
nem olhar para o lado
e ver por dentro
o rosto da amada, o sono
da filha – os ritmos da morte
que dão e só eles são
sabor
à passagem do tempo.


)(

Como é triste a carne quando se percorreram
todos os caminhos, quando se leram
todos os poemas_______tenho os olhos queimados
e não os li nem percorri mas,
pobre de mim, é como se o tivesse
feito. Pois a carne vai triste
e cai. Se morrer é isto, esta maneira
de pouco a pouco ir caindo no ar,
não tenho medo, é triste mas não tenho medo nem
dor nem nada que me possa
perturbar. Escrevo
um livro vazio
e já não sei se lá fora existe
outro lugar. Os olhos da minha amiga
vão comigo de regresso à fonte
que não cessa de cantar.






Petrarca


)(

Apodreço devagar e o meu lixo
em húmus resvalando
alimenta silencioso os animais
da terra, o basalto, as framboesas, os
lagartos que se elevam para o sol até caírem
eles também de corpo
em corpo como venho caindo
nas nuvens do chão.













casimiro de brito
oficina de poesia
revista da palavra e da imagem
trianual, nº 1 – série II
junho 2002
coimbra







mário cesariny / poema podendo servir de posfácio







ruas onde o perigo é evidente
braços verdes de práticas ocultas
cadáveres à tona da água
girassóis
e um corpo
um corpo para cortar as lâmpadas do dia
um corpo para descer uma paisagem de aves
para ir de manhã cedo e voltar muito tarde
rodeado de anões e de campos de lilases
um corpo para cobrir a tua ausência
como uma colcha
um talher
um perfume


isto ou o seu contrário, mas de certa maneira hiante
e com muita gente à volta a ver o que é
isto ou uma população de sessenta mil almas
devorando almofadas escarlates a caminho
do mar
e que chegam
ao crepúsculo
encostados aos submarinos
isto ou um torso desalojado de um verso
e cuja morte é o orgulho de todos
ó pálida cidade construída
como uma febre entre dois patamares!
vamos distribuir ao domicílio
terra para encher candelabros
leitos de fumo para amantes erectos
tabuinhas com palavras interditas
- uma mulher para este que está quase a perder
o gosto à vida - tome lá -
dois netos para essa velha aí no fim da fila -
não temos mais -
saquear o museu dar um diadema ao mundo e depois
obrigar a repor no mesmo sítio
e para ti e para mim, assentes num espaço útil,
veneno para entornar nos olhos do gigante

isto ou um rosto um rosto solitário como barco em
demanda d eventos calmo para a noite
se nós somos areia que se filtre
a um vento débil entre arbustos pintados
se um propósito deve atingir a sua margem como
as correntes da terra náufragos e tempestade
se o homem das pensões e das hospedarias levanta
a sua fronte de cratera molhada
se na rua o sol brilha como nunca
se por um minuto
vale a pena
esperar
isto ou a alegria igual à simples forma de um pulso
aceso entre a folhagem das mais altas lâmpadas
isto ou a alegria dita o avião de cartas
entrada pela janela saída pelo telhado


ah mas então a pirâmide existe?
ah mas então a pirâmide diz coisas?
então a pirâmide é o segredo de cada um com
o mundo?


sim meu amor a pirâmide existe
a pirâmide diz muitíssimas coisas
a pirâmide é a arte de bailar em silêncio


e em todo o caso



há praças onde esculpir um lírio
zonas subtis de propagação do azul
gestos sem dono barcos sob as flores
uma canção para ouvir-te chegar










mário cesariny
manual de prestidigitação
assírio & alvim
1981





12 setembro 2008

vasant abaji dahake / tarde






Esta é uma tarde completa:
mil cacos de solidão.
Eu conto
eu comparo
eu formo
eu junto.
Estas são as minhas mãos nuas
numa mesa nua e triste.
Tento fixar este instante,
este fragmento de tempo, dissecá-lo completamente.
Tenho os olhos bem abertos.
Sinto o áspero e louco toque
da solidão.
Um sol branco, solitário e enlouquecido
está suspenso
no céu branco.






vasant abaji dahake
(índia, n. 1942)
tradução de pedro amaral
em quartzo, feldspato & mica





10 setembro 2008

gil t. sousa / falso lugar




1/


solta-te
como se ainda fosses
um peixe a fugir da morte
e houvesse
por entre os dedos da noite
uma escada
de sereno veneno
por onde pudesses
mentir ao medo
e acordar numa hora
possível de dizer sim
um luminoso sim
e as marés
te olhassem nervosas
como se a palavra
ou o segundo
que tudo pode secar
te roesse a mão nua
e esse fosse
o instante da dor
ou o momento
de partir


deixa
que te durmam nos lábios
os velhos tambores
que te queimem os pés
as nuvens gastas
e que um outro lugar
rompa a areia do tempo
e rasgue o coração
como o céu do deserto
um lugar
que fosse como o ventre
dos sinos
e soasse almas sem lama
olhos sem raiva
que poisassem no mundo
sem o cegar









gil t. sousa
falso lugar
2004




09 setembro 2008

andre breton e paul éluard / as possessões







Os autores têm o escrúpulo de garantir a lealdade absoluta da iniciativa que para eles consiste em submeter, tanto aos especialistas como aos profanos, as cinco seguintes tentativas, nas quais a menor possibilidade de empréstimo dos textos clínicos ou de imitação mais ou menos hábil desses mesmos textos bastaria evidentemente para fazer perder toda a razão de ser, para as privar de toda a eficácia.


Longe de sacrificar por gosto ao pitoresco ao adoptar sucessivamente, com confiança, as várias linguagens usadas, com ou sem razão, pelas mais inadequadas ao seu objecto, sem mesmo se satisfazerem em conseguir um real efeito de curiosidade, esperam, por um lado, provar que o espírito, erigido poeticamente no homem normal, é capaz de reproduzir nos seus grandes traços as manifestações verbais mais paradoxais, mais excêntricas, que está no poder deste espírito submeter-se pela sua vontade às principais ideias delirantes sem que nele exista uma perturbação durável, sem que isso em nada seja susceptível de comprometer a sua faculdade de equilíbrio. De resto, não se trata de maneira alguma de conjecturar acerca da perfeita verosimilhança destes falsos estados mentais, sendo o essencial fazer pensar que com alguma preparação se poderiam tornar perfeitamente verosímeis. Que se faria então das categorias orgulhosas nas quais se divertem a fazer entrar os homens que tiveram as suas contas a ajustar com a razão humana, esta mesmo razão que quotidianamente nos nega o direito de nos exprimirmos pelos meios que nos são instintivos. Se posso sucessivamente fazer falar pela minha própria boca o ser mais rico e o ser mais pobre do mundo, o cego e o alucinado, o ser mais receoso e o ser mais ameaçador, como iria eu admitir que esta voz, que, em definitivo, é unicamente a minha, me venha de pontos mesmo provisoriamente condenados, de pontos onde, com o comum dos mortais, tenho de desesperar de ter acesso.

Não nos ofendemos por permitir por outro lado, a confrontação destas cerca de trinta páginas, na elaboração das quais presidiram certas intenções confusíonais, com os outras páginas deste livro e as páginas doutros livros definidos como surrealistas. Tendo o conceito de simulação em medicina mental o seu curso quase só em tempo de guerra e cedendo o lugar, de outra forma, ao de «sobre-simulação» esperamos impacientemente saber em que base mórbida os juízes competentes na matéria estarão de acordo em dizer que operámos.

Enfim declaramos ter-nos agradado muito especialmente, este novo exercício do nosso pensamento. Por ele, em nós, ganhámos consciência de recursos até então insuspeitados. Sem prejuízo das conquistas que anuncia em relação à mais elevada liberdade, consideramo-lo, dentro do ponto de vista da poética moderna, como um notável critério. Basta dizer que proporíamos como de toda a vantagem a sua generalização e que, a nossos olhos, a «tentativa de simulação» de doenças que encerra substituiria vantajosamente a balada, o soneto, a epopeia, o poema sem pés nem cabeça e outros géneros caducos.










andre breton e paul éluarda imaculada concepçãotradução franco de sousa
estúdios cor
1972


07 setembro 2008

john ashbery / eco tardio







sós com a nossa loucura e a flor preferida,
vemos que não há mais nada sobre que escrever.
ou antes, é preciso escrever sobre as mesmas coisas de sempre,
do mesmo modo, repetindo vezes sem conta as mesmas coisas,
para que o amor continue e a pouco e pouco vá mudando.

colmeias e formigas têm de ser eternamente reexaminadas
e a cor do dia aplicada
centenas de vezes e variada do verão para o inverno
para que o seu ritmo desça ao de uma autêntica
sarabanda e ela aí se feche sobre si mesma, viva e em paz.

só nessa altura a crónica desatenção
das nossas vidas nos poderá envolver, conciliadora
e com um olho posto naquelas longas opulentas sombras amareladas
que falam tão fundo para o nosso mal preparado conhecimento
de nós próprios, máquinas falantes dos nossos dias.








john ashbery
uma onda e outros poemas
tradução colectiva / joão barrento
poetas em mateus
quetzal editores
1992.







03 setembro 2008

konstandinos kavafis / deus abandona antónio

Quando bruscamente, nas trevas da noite,
Ouvires passar o tropel invisível das vozes puras,
O coro celeste das sublimes harmonias,
Abandonado definitivamente pela fortuna,
Desfeitas em pó as últimas esperanças,
Esvaída em fumo uma vida de desejo.
Ah! não sucumbas lastimando um passado
Que te traiu, mas como um homem
Que se prepara há muito tempo,
Despede-te corajosa mente
De Alexandria que te abandona.
Não te deixes iludir e não digas
Que foi sonho ou um logro dos teus sentidos,
Deixa as súplicas e os lamentos para os poltrões,
Abandona vãs esperanças.
E como um homem que se prepara há muito tempo,
Resignado, altivo, como te compete
E a uma cidade como esta,
Abre a janela e olha para a rua
E bebe a taça inteira da amargura
E a derradeira embriaguez da multidão mística
E despede-te de Alexandria que te abandona.







konstandinos kavafis
justine, lawrence durrell
tradução daniel gonçalves
ulisseia
2007