07 junho 2008

outros mundos




Descobrir outro mundo não é apenas um facto imaginário. Pode acontecer aos homens. Aos animais também. Por vezes, as fronteiras resvalam ou interpenetram-se: basta estar presente nesse momento. Vi o facto acontecer a um corvo. Esse corvo é meu vizinho: nunca lhe fiz mal algum, mas ele tem o cuidado de se conservar no cimo das árvores, de voar alto e de evitar a humanidade. O seu mundo principia onde a minha vista acaba. Ora, uma manhã, os nossos campos estavam mergulhados num nevoeiro extraordinariamente espesso, e eu dirigia-me as apalpadelas para a estação. Bruscamente, à altura dos meus olhos, surgiram duas asas negras, imensas, precedidas por um bico gigantesco, e tudo isto passou como um raio, soltando um grito de terror tal que eu faço votos para que nunca mais oiça coisa semelhante. Esse grito perseguiu-me durante toda a tarde. Cheguei a consultar o espelho, perguntando a mim próprio o que teria eu de tão revoltante…
Acabei por perceber. A fronteira entre os nossos dois mundos resvalara, devido ao nevoeiro. Aquele corvo, que supunha voar à altitude habitual, vira de súbito um espectáculo espantoso, contrário, para ele, às leis da natureza. Vira um homem caminhar no espaço, mesmo no centro do mundo dos corvos. Deparara com a manifestação de estranheza mais completa que um corvo pode conceber: um homem voador…
Agora, quando me vê, lá do alto, solta pequenos gritos, e reconheço nesses gritos a incerteza de um espírito cujo universo foi abalado. Já não é, nunca mais será como os outros corvos…





loren eiseley
citado por louis pauwels
em o despertar dos mágicos
trad. gina freitas
livraria bertrand
1973



05 junho 2008

monet







Estou a ouvir música.
Debussy usa as espumas do mar a morrer na areia,
refluindo e fluindo.

Bach é matemático.
Mozart é o divino impessoal.
Chopin conta a sua vida mais íntima.
Schoenberg, através de seu eu, atinge o clássico eu de todo o mundo.
Beethoven é a emulsão humana em tempestade
procurando o divino
e só o alcançando na morte.

Quanto a mim,
que não peço música,
só chego ao limiar da palavra nova.
Sem coragem de a expor.

O meu vocabulário é triste
e às vezes wagneriano-polifônico-paranóico.

Escrevo muito simples e muito nu.
Por isso fere.
Sou uma paisagem cinzenta e azul.
Elevo-me na fonte seca e na luz fria.









clarice lispector
um sopro de vida: pulsações
ed. francisco alves
rio de janeiro
1991


02 junho 2008

terrível





Terrível
um cavalo à noite
de pé atrelado sozinho
na rua silenciosa
e relinchando

como se alguém nu montado nele
o tivesse cingido com pernas ardentes
e cantado
uma sílaba
doce estridente esfomeada única









lawrence ferlinghetti
pictures of the gone world
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom Quixote
1972


29 maio 2008

a trégua






Havia uma desarrumação no cabelo, se tinha
Calções eles caíam; puxava-os para cima, não
Me penteava.
Se alguma trégua fiz com a infância foi esta:
Ainda não uso pente, os calções são calças,
mas continuam a cair. Por delicadeza,
Puxo-as para cima.






gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004




28 maio 2008

a morte







A Morte

— a Morte de que eu falo —
não é a que segue logo a tua queda,
mas precede a tua aparição no fio.

Antes de subir é que morres.

O que dança já está morto
— decidido a todas as belezas, capaz de todas elas.

Quando apareces, vai uma palidez

— não, não estou a falar de medo mas do contrário,
de uma invencível audácia —
vai uma palidez cobrir-te de cima a baixo.

Apesar da pintura e das lantejoulas
serás pálido e de alma lívida.

E nessa altura

é que a tua precisão será perfeita.
Sem mais nada que te prenda ao chão,
podes dançar sem cair.

Mas trata de morrer antes de apareceres,

e seja um morto,
já,
a dançar no fio.

(...)








jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984



26 maio 2008

pela tua natureza discorro




Como renasces ao amar. Que corpo te possui? Dimanam (crescem) de ti forças que ignoro ao transtornar-te, ao abateres nesta ondulação envolvente que é o acto de amarmos, uma guilhotina ascendente partindo do corpo para o espaço, contrariando a gravidade e por isso mesmo fixar-se como um olho severo e ciclópico, um sexo assexuado, pénis-vagina, hermafrodita florestal, animal vegetal, a longa experiência dos equinodermes, a solidão dos ciclóstomos, os primitivos placentários de corpo minúsculo.

Mas que imensidão quando emerge nos teus olhos esta recriação do procriar, a grandeza do prazer, a ferocidade da morte-viva, a imitação da vida, o desflorar da atmosfera dos pulmões que nos respiram, o sorvo cataléptico do teu orgasmo plasmado no meu, trevas e luzes que escorrem em denso liquido, um sangue contaminado e bebível no seu jorro ovariano, uma natureza que se contraria pura para te ter, agarrar com dedos enclavinhados os tecidos mais secretos do teu ser, fundir a matéria espermática do que sou e, construção escultórica de mãos, explodir no magma, crestar para enobrecer enobrecido, dissolver os contornos, transcender seus átomos.

Madrid, Janeiro de 1972







carlos eurico da costa
colóquio letras nr. 12
março 1973
fundação calouste gulbenkian
1973




25 maio 2008

cigarro






no dia
em que as luzes se apagaram
tinha um cigarro
na mão

um amigo

que me disse tudo
até à cinza








gil t sousa
falso lugar
2004






22 maio 2008

tristes passos






Tropeçando de volta à cama depois de uma mija
Afasto as grossas cortinas e surpreendo-me
Com as nuvens que correm, com a lua tão limpa.

Quatro da manhã: jardins de sombras oblíquas, jazendo
Sob um céu cavernoso e rasgado pelo vento.
Há nisto uma faceta ridícula,

Na lua a lançar-se através de nuvens fugazes
E soltas como fumo de canhão, para logo se apartar
(A luz pétrea aguçando, cá em baixo, os telhados)

Alta e soberba e separada –
Pastilha de amor! Medalhão de arte!
Ó lobos da memória! Imensidões! É certo,

Há um leve arrepio, quando se olha para o alto.
A dureza e a claridade e o alcance,
A singularidade de tão vasto e fixo olhar

É lembrança da força e da dor
De ser jovem; do que não se pode ter de novo,
Mas que é vivido por outros, em pleno, nalgum lugar.










philip larkin
janelas altas
trad. rui carvalho homem
cotovia
2004





20 maio 2008

andre breton e paul éluard / a vida





Da flor japonesa à coxa da rã galvanizada, vai ser preciso dormir muito para nos apercebermos da transformação. Da porta que é um corpo-a-corpo, à janela que é uma peleja, o soalho é um papagaio, o tecto um corvo que teve medo.

Há ainda a recordar do dia seguinte, a recordação de atrozes aventuras num nevoeiro de enforcado. Sabe que foi denunciado, que um parapeito está dali em diante à sua volta para o impedir de se lançar no relógio inútil que se pôs a indicar as horas. A aurora da tarde filtrada lembra-lhe a carne pura que, na proximidade dos homens, sempre desaparece num ruído de canaviais. Porque ele tocará a carne muito tempo sem a sentir e, quando a sentir, será à maneira daqueles animais encantadores que apenas sonham com a liberdade.
Toda uma rede de caretas e de contorções se opõe a que a jangada da sua idade regresse à secreta fonte do seu coração. A tarde em vão fecha a porta, uma estrada de passos, de sons, de esperança e de fadiga sempre lhe mostra aquelas grandes construções negras em que tudo para ele se compõe.

O vago substitui pouco a pouco o determinado. Em vez do sangue estende-se o mata-borrão, o mata-borrao que se embebe nas suas cartas sempre maniacamente datadas de Creusot. Olhos puros de nuvens pousam sobre ele como a ave na sua sombra. Lâmpadas varrem com a sua saia de pedra a escadaria de prata que vai dar ao grande ar dos países sem janelas. Que procura então este homem que faz uma mancha na terra? Este pobre quebra-luz lá está sobre a lâmpada das estrelas cadentes. Debate-se com a sombra matizada que choca nas suas pregas ovos de galinha-d’água, donde nascerão em hora adiantada o dever, a oportunidade a pequena felicidade e o fracasso. Os poderes do desespero com as suas rosas de sabão, os seus afagos desencontrados, a sua dignidade mal vestida, as suas respostas fugidias a perguntas de granito apoderam-se dele. Levam-no à escola das escórias, depois de o terem trajado com um avental de fogo. Persuadem-no de que o cabo de vassoura das bruxas cai a pique numa eternidade grotesca de retaguardas brilhantemente esclarecidas. Bocejam-lhe na cara sobretudo, e o que tem de mais trágico, bocejam sobre a mulher sem sequer terem o cuidado de pôr a mão sobre a boca, bocejam dos frutos da mulher com aroma de amêndoas amargas, bocejam da beleza, bocejam da duração, bocejam da recusa desta beleza e desta duração.

Uma manhã, ele lá está, a ver respirar uma cabeleira de anémonas. A rua saúda com todas as suas rodas, Entre todos os astros este... entre todos os astros… este que se submete a este astro inesquecível... Está tão perfeitamente só que se exceptua do total. Fita o dorso dos livros que se arqueiam. Escuta a música que brilha nos sapatos. Por vezes, ao meio-dia, sorri doze vezes. Sorri também à noite, quando tem medo. Põe em todas as suas sensações as algemas do sorriso.








andre breton e paul éluarda imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972





avenida maio






gil t. sousa
avenida maio 2008


18 maio 2008

claro







claro que o moço na duna teve de notar
que eu o olhava intensamente.
claro que depois passou por perto de mim
com muitos movimentos dispensáveis
mesmo fazendo como quem diz que não me via.
claro que começou um ballet de primavera
com um miúdo amigo e uma bola,
claro que se fartou, em jeito demasiado à menina,
de passar a mão pelos longuíssimos cabelos
e olhou por cima do ombro ao fazê-lo,
dentes brilhando num rosto escuro.
claro que mais tarde se deitou
mastigando indolente um pé de erva
naquele tocante calção de banho desbotado
sozinho numa quente concavidade da duna.
claro que me afastei sem barulho e despercebido
e claro que passo o dia a arrepender-me disso.







hans warren
uma migalha na saia do universo
antologia da poesia neerlandesa do século vinte
selecção de gerrit komrij
tradução de fernando venâncio
assírio & Alvim
1996


16 maio 2008

morte






Que triângulo ou círculo poderá cercar-te
Para que te detenhas demorada e minha
Para que não desças toda pela escada






sophia de mello b. andresen
dual
(a casa)
caminho
2004





13 maio 2008

que sabes tu da mentira







(…)

Que sabes tu da mentira, que sabes tu das substâncias suportáveis?


Como entrareis na minha paciência? A minha língua é velha em
duas cascas. Amo e não desejo.



Como entrareis na minha paciência? Inclusive tu, se não envelhe-
ceres, como me entregarás a tua juventude?

(…)







antonio gamoneda
descrição da mentira
trad. vasco gato
quasi
2007