05 dezembro 2006
joão de mancelos
mil novecentos e oitenta e cinco
nesse tempo, deus existia ainda
e tudo quanto era frágil respirava
loucamente
no bar da escola,
as bandas tocavam
para os cleptomaníacos do coração
nas traseiras do ginásio,
treinavam-se beijos à serpente
e cigarros orientais
os rapazes cresciam
com olhos prateados
e duros totens de carne
debaixo das saias das raparigas
havia flores rasgadas
e sonhos de cavalos bravos
forever young, só o vento
— e as revoluções do amor
que beijo a beijo atraiçoávamos
joão de mancelos
“oficina de poesia”
nr. 3 junho 2004
coimbra
04 dezembro 2006
ievgueni ievtuchenko
dorme amor
Brilham na vala as gotas salgadas.
A porta está fechada. E o mar,
fervente, erguendo-se e rompendo contra os diques,
absorveu o sol salgado.
Dorme amor...
Não atormentes a minha alma.
Adormecem já as montanhas e a estepe,
e o nosso cão coxo,
de pêlo emaranhado,
deixa-se cair e lambe a corrente salgada.
E o rumor dos ramos,
e o fragor das ondas,
e o cão acorrentado
com toda a sua experiência,
e eu com voz muito branda
e logo num murmúrio
e depois em silêncio
dizemos-te ambos: dorme, amor...
Dorme, amor...
Esquece que nos zangámos.
Imagina por exemplo:
acordamos.
Tudo está fresco.
Caímos sobre o feno.
Temos sono.
Vem um cheiro a leite azedo
lá de baixo,
da cave
convidando a sonhar.
Oh, como poderei fazer-te
imaginar tudo isto,
a ti, tão desconfiada!
Dorme, amor...
Sorri entre sonhos.
Não chores mais!
Corta flores e vai pensando
onde hás-de pô-las,
e compra muitos vestidos bonitos.
Disseste alguma coisa?
É o cansaço do teu sonho inquieto.
Envolve-te no sonho, agasalha-te bem nele.
Podemos ver em sonhos tudo o que queremos,
tudo o que ansiamos
quando estamos acordados.
É absurdo não dormir,
é mesmo um delito:
o que trazemos oculto
grita-nos nas entranhas.
Que difícil para os teus olhos
trazer tanta coisa!
Debaixo das pálpebras
sentirão o alívio do sonho.
Dorme, amor...
Porque estás acordada?
É o bramido do mar?
A súplica das árvores?
Um mau pressentimento?
A sem-vergonha de alguém?
Ou talvez não de alguém,
mas simplesmente a sem-vergonha minha?
Dorme, amor...
Não é possível fazer nada,
mas sabe desde já que não é culpa minha esta culpa.
Perdoa-me - estás a ouvir?
Ama-me - estás a ouvir? -
mesmo que seja só em sonhos,
só em sonhos!
Dorme, amor...
Estamos num mundo
que voa enlouquecido
e ameaça explodir,
e é preciso abraçarmo-nos
para não cairmos dele,
e se tivermos que cair,
vamos cair abraçados.
Dorme, amor...
Não te deixes encher de raiva.
Que o sonho penetre suavemente nos teus olhos
já que é tão difícil dormir neste mundo.
Mas apesar de tudo
- ouves-me, amor? -
dorme...
E o rumor dos ramos,
e o fragor das ondas,
e o cão na corrente
com toda a sua experiência,
e eu com voz muito branda
e logo num murmúrio
e depois em silêncio
dizemos-te ambos: dorme, amor...
ievgueni ievtuchenko
ievtuchenko em lisboa (1967)
dom quixote
1968
02 dezembro 2006
raul brandão (1867-1930)
21 de Novembro
Não me compreendo nem compreendo os outros. Não sei quem sou e vou morrer. Tudo me parece inútil e agarro-me com desespero a um fio de vida, como um náufrago a um pedaço de tábua.
Nem sei o que é a vida. Chamo vida ao espanto. Chamo vida a esta saudade, a esta dor; chamo vida e morte a este cataclismo. É a imensidade e um nada que me absorve; é uma queda imensa e infinita, onde disponho de um único momento.
Talvez o mundo não exista, talvez tudo no mundo sejam expressões da minha própria alma. Faço parte de uma coisa dolorosa, que totalmente desconheço, e que tem nervos ligados aos meus nervos, dor ligada à minha dor, consciência ligada à minha consciência.
Estou até convencido que nenhum destes seres existe. Este fel é o meu fel, este sonho grotesco o meu sonho. Estou convencido que tudo isto são apenas expressões de dor – e mais nada.
Nós não vemos a vida – vemos um instante da vida. Atrás de nós a vida é infinita, adiante de nós a vida é infinita. A primavera está aqui, mas atrás deste ramo em flor houve camadas de primaveras de oiro, imensas primaveras extasiadas, e flores desmedidas por trás desta flor minúscula. O tempo não existe. O que eu chamo a vida é um elo, e o que aí vem um tropel, um sonho, desmedido que há-de realizar-se. E nenhum grito é inútil, para que o sonho vivo ande pelo seu pé. A alma que vai desesperada à procura de Deus, que erra no universo, ensanguentada e dorida, a cada grito se aproxima de Deus. Lá vamos todos a Deus, os vivos e os mortos.
O mundo é um grito. Onde encontrar a harmonia e a calma neste turbilhão infinito e perpétuo, neste movimento atroz? O mundo é um sonho sem um segundo de paz. A dor gera dor num desespero sem limites.
Eu não sou nada. Sou o minuto e a eternidade. Sou os mortos. Não me desligo disto – nem do crime, nem da pedra, nem da voragem. Sou o espanto aos gritos.
O sonho completo é o universo realizado.
Cada vez fujo mais de olhar para dentro de mim mesmo. Sinto-me nas mãos de uma coisa desconforme. Sinto-me nas mãos de uma coisa imensa e cega – de uma tempestade viva.
Não só a sensibilidade é universal – a inteligência é exterior e universal.
O universo é uma vibração. A vida é uma vibração na vibração.
Toda a teoria mecânica do universo é absurda. Daqui a alguns anos todos os sistemas serão ridículos – até o sistema planetário.
raul brandão
húmus
frenesi
2000
29 novembro 2006
post it / l. maltez
sentires...
acordas junto à sombra dos sentires
perdido no movimento azebre,
fulguras da tristura ocasional
de um tempo passado
sem prazer.
suave na sua mudez,
a terra olha-te em silêncio.
escutas a voz do perigo
entre o bem e o mal,
consegue pousar
do lado da luz
no frio que te dá ordens
do coração saltam feridas
devoradas pelo infinito
já nada sentes
embriagado na música inaudível,
expeles do teu corpo uma seiva amarga,
e imploras para renascer
de um ventre sem rosto
aguardas na praia que a maré vaze,
encontro-te...
dou-te a minha mão!
l.maltez
acordas junto à sombra dos sentires
perdido no movimento azebre,
fulguras da tristura ocasional
de um tempo passado
sem prazer.
suave na sua mudez,
a terra olha-te em silêncio.
escutas a voz do perigo
entre o bem e o mal,
consegue pousar
do lado da luz
no frio que te dá ordens
do coração saltam feridas
devoradas pelo infinito
já nada sentes
embriagado na música inaudível,
expeles do teu corpo uma seiva amarga,
e imploras para renascer
de um ventre sem rosto
aguardas na praia que a maré vaze,
encontro-te...
dou-te a minha mão!
l.maltez
28 novembro 2006
ternura
cruzeiro seixas
Cheguei a casa um pouco mais cedo que de costume. Tirei a ventoinha da cabeça, pus-me à vontade, fui ver se os mamutes estavam a fazer disparates e sentei-me na sala, no velho e confortável sofá que a tia Mizé nos oferecera pelo casamento. Querida tia Mizé! Preparei um gin.
Cheguei a casa um pouco mais cedo que de costume. Tirei a ventoinha da cabeça, pus-me à vontade, fui ver se os mamutes estavam a fazer disparates e sentei-me na sala, no velho e confortável sofá que a tia Mizé nos oferecera pelo casamento. Querida tia Mizé! Preparei um gin.
Josela ainda não chegara. Estava atrasada, talvez as compras, quem sabe.
Foi quando ouvi abrir a porta. Fui ver. Josela chegava, empurrando o carrinho antigo que servira para o nosso filho agora com dezoito anos como sabem, e com um bom lugar de Viet qualquer coisa, lá não estou bem certo onde; lugar seguro e de futuro, foi o que me disseram. Bom rapaz, o nosso garoto.
Olhei o carrinho. Trazia um bebé dentro. Josela sorria. Vi o preço. Razoável. Do talho do senhor Esteves. Manias da Josela.
Olhei Josela.
Tinha os olhos brilhantes, havia urna ternura inesperada que a envolvia, uma tristeza distante nas mãos.
— Achas que podemos ficar com ele? — perguntou-me, afirmando.
Concordei. Josela manda.
Arrumei o carrinho.
Era um bebé ainda em muito bom estado. Durou cinco dias até apodrecer, calculem!
mário-henrique leiria
“casos de direito galático / o mundo inquietante de josela (fragmentos)”
ilustrações de cruzeiro seixas
editorial república
1975
mário-henrique leiria
“casos de direito galático / o mundo inquietante de josela (fragmentos)”
ilustrações de cruzeiro seixas
editorial república
1975
26 novembro 2006
25 novembro 2006
24 novembro 2006
amalia bautista
A Vida Responsável
Conduzir mas sem ter um acidente,
comprar massas e desodorizantes
e cortar as unhas às minhas filhas.
Madrugar outra vez e ter cuidado
em não dizer inconveniências,
esmerar-me na prosa de umas folhas
e estou-me nas tintas para elas,
retocar de vermelho cada face.
Lembrar-me da consulta ao pediatra,
responder ao correio, estender roupa,
declarar rendimentos, ler uns livros,
fazer umas chamadas telefónicas.
Bem gostaria de me dar ao luxo
de ter o tempo todo que quisesse
para fazer só coisas esquisitas,
coisas desnecessárias, prescindíveis
e, sobretudo, inúteis e patetas.
Por exemplo, amar-te com loucura.
amalia bautista
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004
21 novembro 2006
antonio gamoneda
Na sua canção havia cordas sem esperança: um som
longínquo de mulheres cegas (mães descalças no pre-
sídio transparente do sal).
Soava a morte e a orvalho; depois, tangia canas
negras: era o cantor das feridas. Sua memória ardia
no país do vento, na brancura dos sanatórios aban-
donados.
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999
20 novembro 2006
edgar morin
SABER PENSAR O SEU PENSAMENTO
Saber ver necessita saber pensar o que se vê. Saber ver implica portanto saber pensar, como saber pensar implica saber ver. Saber pensar não é algo que se obtenha por técnica, receita ou método. Saber pensar não é apenas aplicar a lógica e a verificação aos dados da experiência. Isso supõe também saber organizar os dados da experiência. Precisamos portanto de compreender que regras, que princípios comandam o pensamento que nos permite organizar o real, isto é, seleccionar / privilegiar certos dados e eliminar / subalternizar outros. Precisamos de adivinhar a que pulsões obscuras, a que necessidades do nosso ser, a que idiossincrasia do nosso espírito obedece ou responde o que temos por verdade. Numa palavra, saber pensar significa indissociavelmente saber pensar o seu pensamento. Necessitamos de nos pensar pensando, de nos conhecer conhecendo. Essa é a exigência reflexiva fundamental, que não é tão-só a do filósofo profissional, que não deveria estender-se apenas ao cientista, mas que deve ser a de cada um e de todos.
edgar morin
“as grandes questões do nosso tempo”
trad. adelino dos santos rodrigues
editorial notícias
1994
16 novembro 2006
henry deluy
Esquecer tudo, - à tarde
Quando a luz declina.
*
Depois dizer a verdade.
henry deluyprimeiras sequências
trad. colectiva Mateus, set. out. de 2000
quetzal editores
2002
15 novembro 2006
pictures at an exibition / egon schiele
Egon Schiele (1890-1918)
Four Trees
1917, oil on canvas, Osterriche Galerie, Vienna
Self Portrait With Black Vase
1911, oil on wood, Historiches Museum der Stadt, Wien/Vienna
Agony
1912, Neue Pinakothek, Munich
Self Portrait
1913, pencil, National Museum Stockholm
Death and Girl (Self-portrait with Walli)
1915; Osterreichisches Galerie Wien, Vienna
Sitting Woman With Legs Drawn Up
1917; Narodni Galerie, Prague
13 novembro 2006
um poema de: sylvia plath
a lua e o teixo
Esta é a luz da razão, fria e planetária.
As árvores da razão são negras. A luz é azul.
As ervas descarregam as suas mágoas nos meus pés como se
[eu fosse Deus,
Picando os meus tornozelos e murmurando a sua humildade.
Esfumadas, inebriantes neblinas habitam este lugar
Separado da minha casa por uma fileira de lápides.
Só não consigo ver para onde se vai.
A lua não é nenhuma porta. É um rosto em seu pleno direito,
Branco como os nós dos dedos e terrivelmente transtornado.
Arrasta o mar atrás de si como um delito obscuro; silenciosa
Com a boca em O num esgar de total desespero. Vivo aqui.
Duas vezes aos domingos, os sinos assustam o céu -
Oito línguas enormes a afirmar a Ressurreição.
No final, fazem soar os seus nomes sobriamente.
O teixo aponta para o alto. Tem forma gótica.
Os olhos seguem-no e encontram a lua.
A lua é a minha mãe. Ela não é doce como Maria.
As suas roupas azuis libertam pequenos morcegos e corujas.
Como eu gostaria de acreditar na ternura -
O rosto da efígie, dulcificado pelas velas,
A desviar para mim, em particular, os seus olhos ternos.
Caí muito longe. As nuvens a florescer
Azuis e místicas sobre a face das estrelas.
Dentro da igreja, os santos vão ficar todos azuis,
A pairar com seus pés delicados sobre os bancos frios,
De mãos e rostos rígidos pela santidade.
A lua não vê nada disto. É calva e selvagem.
E a mensagem do teixo é a escuridão - escuridão e silêncio.
sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996
Esta é a luz da razão, fria e planetária.
As árvores da razão são negras. A luz é azul.
As ervas descarregam as suas mágoas nos meus pés como se
[eu fosse Deus,
Picando os meus tornozelos e murmurando a sua humildade.
Esfumadas, inebriantes neblinas habitam este lugar
Separado da minha casa por uma fileira de lápides.
Só não consigo ver para onde se vai.
A lua não é nenhuma porta. É um rosto em seu pleno direito,
Branco como os nós dos dedos e terrivelmente transtornado.
Arrasta o mar atrás de si como um delito obscuro; silenciosa
Com a boca em O num esgar de total desespero. Vivo aqui.
Duas vezes aos domingos, os sinos assustam o céu -
Oito línguas enormes a afirmar a Ressurreição.
No final, fazem soar os seus nomes sobriamente.
O teixo aponta para o alto. Tem forma gótica.
Os olhos seguem-no e encontram a lua.
A lua é a minha mãe. Ela não é doce como Maria.
As suas roupas azuis libertam pequenos morcegos e corujas.
Como eu gostaria de acreditar na ternura -
O rosto da efígie, dulcificado pelas velas,
A desviar para mim, em particular, os seus olhos ternos.
Caí muito longe. As nuvens a florescer
Azuis e místicas sobre a face das estrelas.
Dentro da igreja, os santos vão ficar todos azuis,
A pairar com seus pés delicados sobre os bancos frios,
De mãos e rostos rígidos pela santidade.
A lua não vê nada disto. É calva e selvagem.
E a mensagem do teixo é a escuridão - escuridão e silêncio.
sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996
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