31 dezembro 2012

herberto helder / elegia múltipla V




Não posso ouvir cantar tão friamente. Cantam
sobre a minha vida.
Trouxeram a taciturna pureza das grandes noites
do mundo.
Do antigo elemento do silêncio subiu essa canção
devastadora. Ó feroz mundo puro,
ó vida incomparável. Cantam, cantam.
Abro os olhos debaixo das águas silenciosas,
e vejo que minha lembrança é mais remota
que tudo. Cantam friamente.
Não posso ouvir cantar.

Se dissessem: a tua vida é uma roseira. Vê
como bebe no anónimo da estação.
O sangue escorrega por ti, quando é a altura das rosas.
Ouve: não te maravilha
a subtileza de espinhos e folhas pequeníssimas?
─  Se dissessem alguma coisa, eu ficaria rico
de um nome extremo.
Não cantem, não floresçam.
Não posso sentir encher-se assim a vida
com uma canção fria e uma roseira
tão espalhada em mim.

Pode ser que fosse ilesa esta época do ano,
e minha existência de repente se tomasse
por todo esse fervor.
Vejo minha ardente agudeza escoar-se à maturidade
confluente
de um minuto de verão. - Estaria eu
completo para a morte?
Não, não cantem essa lembrança de tudo.
Nem roseira na sangrenta delicadeza
da carne, nem o verão com seus
símbolos de feroz plenitude.

Gostaria de pensar cada um dos meus dedos,
esta cítara descida da obra.
Toda a tristeza como uma vida admirável
enchendo a eternidade.
As frias canções despovoam-me, e as roseiras
tornam desavindas as rosas
recuadas. Ouve: na tristeza do estio enorme
alui-se-me o uno sangue.
Eu próprio poderia cantar um nome masculino,
a minha vida inteira
tão forte e impura, tão preenchida pelo quente silêncio
do que se não sabe.

Não se canta e floresce. Ninguém
amadurece no meio da sua vida.
Toca-se lentamente uma parte suspensa do corpo,
e a alta tristeza purifica os dedos.
Porque um homem não é uma canção fria ou
uma roseira. Não
é um fruto como entre folhas inspiradoras.
Um homem vive uma profunda eternidade que se fecha
sobre ele, mas onde o corpo
arde para além de qualquer símbolo, sem alma e puro
como um sacrifício antigo.

─  Por sobre frias canções e roseiras aterradoras,
minha carne ligada nutre o silêncio maravilhoso
de uma grande vida.

Pode ser que tudo esteja bem no plural
de um mundo intenso. Mas
o amor é outro poder, a carne
vive da sua absorta permanência. Esta vida
de que falo
não se escoa, não alimenta os superlativos
diários. É única
e perene sobre a escondida fluência
dos movimentos.

─  Uma roseira, mesmo
incomparável, cobre tudo com a sua distracção vermelha.
Por detrás da noite de pendidas
rosas, a carne é triste e perfeita
como um livro.



herberto helder
elegia múltipla,poema v
poesia toda
assírio & alvim
1996



30 dezembro 2012

antoni clapés / sozinho frente ao mar




Sozinho frente ao mar. Não numa praia baixa, não, mas sim numa
abrupta e altiva escarpa. Não chegava até mim qualquer ruído: o
vento só me trazia o rumor do vento. Pelo meio-dia, comecei a
caminhar ao longo de um atalho paralelo â costa. Após um certo
tempo, descobri uma espécie de curral irregular, escondido no meio
das silvas. No entanto, nele não havia gado, nem sinais de alguma
vez ter havido. No centro daquele espaço fechado erguia-se um cubo
de pedra negra, com cinco palmos de lado. Ao aproximar-me, ouvi
saírem da minha boca sons que se articulavam em frases de uma
língua estranha; eu ignorava o seu significado, mas pressentia que
recitava textos de uma liturgia pretérita. Se me calava, reconhecia no
silêncio a minha voz, e vice-versa. Correndo como um possesso refiz
o caminho, para trás, para regressar ao lugar onde o meu itinerário se
tinha iniciado, com a pressa de descobrir o segredo daquela fala. Para
lá da névoa que começava a velar o horizonte distinguia-se,
tenuemente, a fina linha do esquecimento.




antoni  clapés
poemas                                      
tradução de egito gonçalves 



29 dezembro 2012

gil t. sousa / carta de alforria



                                      v de veneza


11

já escrevi tantas cartas
de alforria!

não que tivesse sido genial
ou poderoso

mas porque
fui um homem livre

hoje contemplo
a minha grande casa branca

a minha grande casa branca
em ruínas

e sei que valeu a pena
ter resgatado tantos e tanta coisa
ao vazio e á solidão

valeu a pena
porque conquistei o meu direito
a ter medo



gil t. sousa
água forte
2005


28 dezembro 2012

jorge luís borges / o forasteiro




Despachadas as cartas e o telegrama
caminha pelas ruas indefinidas
e nota leves diferenças a que não dá importância
pois pensa em Aberdeen ou em Leyden,
para ele mais vívidas que este labirinto
de linhas rectas, não de complexidade
aonde o leva o tempo de um homem
cuja vida verdadeira está bem longe.
Numa habitação numerada
fará depois a barba ante um espelho
que não voltará a reflecti-lo
e parecer-lhe-á que esse rosto
é mais inescrutável e mais firme
do que a alma que o habita
e que ao longo dos anos o vai lavrando.
Cruzar-se-á contigo em qualquer rua
e tu só notarás que é alto e grisalho
e que olha para as coisas.
Uma mulher indiferente
a tarde lhe dará e o que sucede
do outro lado de umas portas. O homem
pensa que esquecerá a sua cara e irá lembrar
anos depois, perto do mar do Norte,
a persiana ou a lâmpada.
Nessa noite, os seus olhos contemplarão
num rectângulo de formas passageiras,
o cavaleiro e a épica pradaria,
porque o Far West abarca o planeta
e espelha-se nos sonhos dos homens
que jamais o pisaram.
Na intensa penumbra, o desconhecido
crer-se-á na sua cidade
e surpreender-se-á ao sair numa outra
de uma outra linguagem e outro céu.

Antes da agonia
o inferno e a glória nos estão dados:
andam agora por esta cidade, Buenos Aires,
que para o forasteiro do meu sonho
(o forasteiro que fui sob outros astros)
é uma série de imagens imprecisas
feitas para o esquecimento.



jorge luís borges
nueva antologia personal
1968
trad. de nicolau saião


27 dezembro 2012

alberto caeiro / quando eu





Quando eu não te tinha
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo.
Agora amo a Natureza
Como um monge calmo à Virgem Maria,
Religiosamente, a meu modo, como dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e próxima...
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelos campos até à beira dos rios;
Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor —
Tu não me tiraste a Natureza...
Tu mudaste a Natureza...
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as cousas.
Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.



alberto caeiro
o pastor amoroso



26 dezembro 2012

juan miguel lópez / julgamos que a vida nos escapa e na realidade a vida é isso


  

Às vezes fico com a vista parada
─  por exemplo numa parede ─
durante um bom bocado. os olhos
deixam de ver por fora e o corpo
parece que não o sinto. Então
normalmente dou-me conta
(e não mo explico e espanto-me)
desta coisa estranha que é viver,
e faço-me perguntas  que cortam
e o que sou concentra-se num ponto
e a única coisa que sinto é que eu
─  a voz que vive em mim e que me diz
isto e aquilo sem palavras ─ 
também serei menos um. Em breve.
Que tudo o que penso agora,
o que pensei e chegarei a pensar
há muito que não é nada.



juan miguel lópez
poesia espanhola, anos 90
organização e trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




25 dezembro 2012

andréas kálvos / a legião sagrada


  
Quase todos em trevas;
sobre poucos - estrela -
brilha a imortalidade;
o céu fez o homem livre
para escolher.



andréas kálvos
tradução de josé paulo paes



23 dezembro 2012

franco loi / eu era outro e via-me a morrer



Eu era outro e via-me a morrer
como a dormir se vê a sombra.
Põe medo a morte dentro do coração
e foge atrás de um espelho, e lá estou eu.
Vejo a vida e a vontade de morrer:
façam o que quiserem, mas usai-me!
Chamai-me, chamai-me, não me deixes dormir,
pois sinto que esqueço a minha história
e me torno o homem do meu morrer...
Amor que vem a mim da luz da lua,
alegria de água que passa entre os vivos!




franco loi
memória
colecção poetas em mateus
trad. rosa alice branco
quetzal
1993

22 dezembro 2012

fernando pessoa / chuva oblíqua



I

ATRAVESSA esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...

O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...

Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
e vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...

II

Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...

Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,
E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro...

O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes
Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...
Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a água no fato de haver coro...

A missa é um automóvel que passa
Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste...
Súbito vento sacode em esplendor maior
A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe
Com o som de rodas de automóvel...

E apagam-se as luzes da igreja
Na chuva que cessa...

III

A Grande Esfinge do Egito sonha pôr este papel dentro...
Escrevo - e ela aparece-me através da minha mão transparente
E ao canto do papel erguem-se as pirâmides...

Escrevo - perturbo-me de ver o bico da minha pena
Ser o perfil do rei Quéops...
De repente paro...
Escureceu tudo...

Caio por um abismo feito de tempo...
Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro
E todo o Egito me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena...

Ouço a Esfinge rir por dentro
O som da minha pena a correr no papel...
Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme,
Varre tudo para o canto do teto que fica por detrás de mim,
E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve
Jaz o cadáver do rei Queóps, olhando-me com olhos muito abertos,
E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo
E uma alegria de barcos embandeirados erra
Numa diagonal difusa
Entre mim e o que eu penso...

Funerais do rei Queóps em ouro velho e Mim!...

IV

Que pandeiretas o silêncio deste quarto!...
As paredes estão na Andaluzia...
Há danças sensuais no brilho fixo da luz...

De repente todo o espaço pára...,
Pára, escorrega, desembrulha-se...,
E num canto do teto, muito mais longe do que ele está,
Abrem mãos brancas janelas secretas
E há ramos de violetas caindo
De haver uma noite de Primavera lá fora
Sobre o eu estar de olhos fechados...

V

Lá fora vai um redemoinho de sol os cavalos do carroussel...
Árvores, pedras, montes, bailam parados dentro de mim...
Noite absoluta na feira iluminada, luar no dia de sol lá fora,
E as luzes todas da feira fazem ruídos dos muros do quintal...
Ranchos de raparigas de bilha à cabeça
Que passam lá fora, cheias de estar sob o sol,
Cruzam-se com grandes grupos peganhentos de gente que anda na feira,
Gente toda misturada com as luzes das barracas, com a noite e com o luar,

E os dois grupos encontram-se e penetram-se
Até formarem só um que é os dois...
A feira e as luzes das feiras e a gente que anda na feira,
E a noite que pega na feira e a levanta no ar,
Andam por cima das copas das árvores cheias de sol,
Andam visivelmente por baixo dos penedos que luzem ao sol,
Aparecem do outro lado das bilhas que as raparigas levam à cabeça,
E toda esta paisagem de primavera é a lua sobre a feira,
E toda a feira com ruídos e luzes é o chão deste dia de sol...

De repente alguém sacode esta hora dupla como numa peneira
E, misturado, o pó das duas realidades cai
Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de portos
Com grandes naus que se vão e não pensam em voltar...
Pó de oiro branco e negro sobre os meus dedos...
As minhas mãos são os passos daquela rapariga que abandona a feira,
Sozinha e contente como o dia de hoje..

VI

O maestro sacode a batuta,
E lânguida e triste a música rompe... Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé de um muro de quintal
Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo...

Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...

Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares, e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão tornando-se jockey amarelo...
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)

Atiro-a de encontro à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal... E a música atira com bolas
À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos...

Todo o teatro é um muro branco de música
Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...

E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,
Donde há arvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loja onde comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...

E a música cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...

[8-3-1914]



fernando  pessoa


21 dezembro 2012

adrienne rich / despertar nas trevas




5.

Toda a noite sonhando com um corpo
que o espaço verga de outro modo que o meu
Fazemos amor na rua
o trânsito corre para longe de nós
arrepiando como um lençol
o asfalto agita-se com ternura
não há qualquer apreensão
movemo-nos em conjunto como plantas subaquáticas

Uma e outra vez, começando a despertar
Mergulho de costas para te descobrir
sussurrando ainda, toca-me, continuamos
fluindo através desse lento
oceano da floresta de luzes da cidade
agitando a capilosidade do corpo.

Mas isto é o que se diz em sonhos
despertando
gostaria que houvesse um espaço
real em que nos pudéssemos situar
passando-nos os binóculos
olhando para a terra, a lenha
onde começou a racha.




adrienne rich
diving into the wreck, 1973
tradução de margarida vale de gato




Melancholia Prologue / Richard Wagner "Tristan und Isolde" Overture

20 dezembro 2012

kenneth koch / o circo


1

Teremos de partir, disseram as raparigas do circo,
E nunca mais voltaremos. Não há público bastante
Nesta cidadezinha. À espera contra o céu negro e azul,
Os grandes carros do circo levaram-nas para as suas entradas.
A luz esmoreceu sobre as colinas onde a caravana do circo desapareceu.
Por baixo dos vestidos as raparigas do circo transpiravam,
Mas então, com a malha cor de laranja cingida ao corpo, uma delas
Falou com olhos azuis, era jovem e linda, loira
De olhos brilhantes, falou com a boca aberta ao espirrar
Levemente contra as costas das outras raparigas que esperavam em fila,
Para rodarem a corda, ou descerem rodopiando presas pelos dentes,
E disse que o circo poderia partir - havia cartazes vermelhos
Colados ao exterior da caravana, estava a começar a
Chover - disse que poderia partir mas nunca o seu coração partiria,
Não daquela cidade, mas mesmo de qualquer outra onde tivessem estado, arriscando a
vida,
E cada um desses lugares onde estiveram devia ser festejado pelo azul rosmaninho
Num canteiro da cidade. Mas elas riram, raparigas do circo agarradas
Umas às outras enquanto a caravana se lançava pela noite.




kenneth koch
a magia dos números e outros poemas
trad. antónio franco alexandre
quetzal
1992



19 dezembro 2012

marc granell / entardecer festivo



 
Aqui sentado.
Enquanto o sol pestaneja nos charcos que ontem
quebraram a eterna simetria do pátio
onde todos os dias ao entardecer
fazíamos ginástica uniformizados,
azul e branco, entre quarenta
meninos sufocados nos seus gritos,
nos seus anseios para cada um ser
o mais hábil, mais veloz, mais forte,
para ser o mais inutilmente livre.
Aqui sentado.
Enquanto sofrias a chuva
por não ser bastante para inundar as caves
e arrastar consigo
o cavalo de arções, as barras, as paralelas
que nunca puderam sustentar-me
e apagar a sua memória, que ninguém
soubesse alguma vez que existiam
tais artefactos de tortura inocente.
Aqui sentado.
Enquanto rezavas – sem saber a quem.
Tu já não acreditavas, mas sim, era necessário
acreditar no inferno – e sentias
galopes de formigas correr pelo teu ventre
e rias, sem qualquer vontade, das piadas de algum companheiro
e esperavas.
Aqui sentado.
Enquanto observas a gente que passa
o sol pestaneja nos charcos
e já não importa. É festa
neste entardecer.



marc granell
quinze poetas catalães
tradução de egito gonçalves
ed. limiar, porto
1994


18 dezembro 2012

vitor matos e sá / companhia violenta




É preciso que saibam: este rosto
não está à venda. Há quarenta
e cinco anos que o trago apenas
para dar e receber o espanto
do amor e do tempo, do eco e da rosa
e a violenta companhia
insubstituível do mundo.

Os amigos mortos e sepultados
sob este sorriso, também não estão
à venda - é com eles que entro
na força dos versos em que falo
de nós todos. Estes olhos
já leram Platão (entre outros)
já viram chegar a noite
nas grandes cidades, corpos proibidos
homens e mulheres sem paixão
moribundos face a face com o absurdo
de um tempo já maior de quanto há neles

e casais cumpridores que não gastaram nunca
um tostão de amor a mais.

Já todos dormimos em má companhia
(mesmo se nos limitamos a dormir
inteiramente sós - e até por isso)

Meus prósperos e
devotos irmãos atarefados, deixai-me
em paz. Ou então dêem-me um pouco
de tabaco ou mandem-me
de férias um postal (mesmo
que morra). Um póstumo
postal. E sem remorso.
Já que não se morre apenas
de falta de correspondência...




vitor matos e sá
companhia violenta
centelha
1980




17 dezembro 2012

eugenio montale / traz-me um girassol




Traz-me um girassol para que o transplante
no meu árido terreno
e mostre todo o dia
ao espelho azul do céu
a ansiedade do teu rosto
amarelento

Tendem à claridade as coisas obscuras
esgotam-se os corpos num fluir
de tintas ou de músicas. Desaparecer
é então a dita das ditas

Traz-me tu a planta que conduz
aonde crescem loiras transparências
e se evapora a vida como essência
Traz-me o girassol de enlouquecidas luzes.




eugenio montale
a religião do girassol: uma antologia
tradução de jorge sousa braga
assírio & alvim
2000



16 dezembro 2012

mário henrique leiria / origem dos sonhos esquecidos




Entre a bicicleta e a laranja
vai a distância de uma camisa branca

Entre o pássaro e a bandeira
vai a distância dum relógio solar

Entre a janela e o canto do lobo
vai a distância dum lago desesperado

Entre mim e a bola de bilhar
vai a distância dum sexo fulgurante

Qualquer pedaço de floresta ou tempestade
pode ser a distância
entre os teus braços fechados em si mesmos
e a noite encontrada para além do grito das panteras

Qualquer grito de pantera
pode ser a distância
entre os teus passos
e o caminho em que eles se desfazem lentamente

Qualquer caminho
pode ser a distância
entre tu e eu

Qualquer distância
entre ti e eu
é a única e magnífica existência
do nosso amor que se devora sorrindo.

(1949)



Publicado, inédito, por Mário Cesariny na revista "MELE - International Poetry Letter", revista de Honolulu dirigida por Stefan Baciu cujo número de Março de 81 foi integralmente dedicado aos poetas surrealistas portugueses.