22 maio 2018

luís filipe parrado / a maçã mordida





À primeira dentada,
como um daqueles peixes
escorregadios, raiados de sangue,
derramados sobre o mármore das bancadas,
a maçã foge-me
por entre os dedos e desaba
no chão sujo coberto
de escamas e água negra,
consigo vê-la a cair, a chocar,
depois, num sufoco, a rolar
até embater numa caixa de madeira
cheia de folhas de alface
apodrecidas. E ali fica, perdida,
mordida uma única
vez, longe das minhas mãos,
pardais tombados
no ar com assombro. Descubro que
no mundo não há coisa mais triste
que os olhos castanhos
da minha jovem
mãe.



luís filipe parrado
nervo/1
colectivo de poesia
janeiro/abril 2018










21 maio 2018

rui costa / narciso


  
No rio a tua imagem parece menos tua:
A memória é uma líquida mensagem de aloendros
e o teu opaco ardor apenas o resultado disso:
Um coração já pasmado de algum travo
mordendo uma outra água com vértices ao fundo.
Não te iludas. O que tu vês és mesmo tu:
Restos de um homem às portas de outro homem
e o futuro de olhos baixos, o mar a ver.




rui costa
«se uma estrela me falha, agarro numas nuvens»
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017









20 maio 2018

ricardo reis / sê dono de ti




Sê o dono de ti
Sem fechares os olhos.

 
Na dura mão aperta
Com um tacto encavado
O mundo exterior
Contra a palma sentindo
Outra cousa que a palma.

11-8-1918



poemas de ricardo reis
fernando pessoa
imprensa nacional-casa da moeda
1994






19 maio 2018

marguerite duras / textos secretos




Dizem que o tempo do pleno verão já se anun-
cia, é possível. Não sei. Que as rosas já ali estão,
no fundo do parque. Que às vezes não são vistas
por ninguém durante o tempo da sua vida e que
ficam  assim ali no seu perfume esquartejadas
durante alguns dias e que depois se deixam cair.
Nunca vistas por esta mulher solitária que
esquece. Nunca vistas por mim, morrem.



marguerite duras
textos secretos
o homem atlântico
trad. tereza coelho
quetzal
1999








18 maio 2018

nicolás guillén / dois meninos




DOIS meninos, dois ramos de um mesmo arbusto de miséria,
juntos, na noite quente, sob o mesmo portal,
dois meninos, mendigos cheios de pústulas,
comem de um mesmo prato como cães esfomeados
a comida lançada por preia-mar de banquetes.
Dois meninos: um negro, o outro branco.

Suas cabeças unidas, semeadas de piolhos;
seus pés muito juntos e descalços;
as bocas incansáveis num mesmo frenesim de mandíbulas,
e sobre a comida gordurenta, azeda,
duas mãos: uma negra, outra branca.

Que união tão sincera e tão forte!
Estão ligados pelos estômagos e pelas noites foscas,
e pelas tardes melancólicas nos passeios brilhantes,
e pelas manhãs explosivas,
quando o dia desperta com seus olhos alcoólicos.

Estão unidos como dois bons cães…
Juntos assim como dois bons cães,
um negro, o outro branco,
quando chegar a hora de marchar
irão querer marchar como dois homens bons,
um negro, o outro branco?

Dois meninos, dois ramos de um mesmo arbusto de miséria,
Comem, na noite quente, sob o mesmo portal.


nicolas guillen
antologia poética I
tradução de carlos grifo
editorial presença
1970







17 maio 2018

vladimir maiakóvski / ordem n.º 2 ao exército da arte




É a vós –
barítonos bem alimentados –
que desde Adão
até hoje
comoveis as espeluncas – a que chamam teatros –
com as árias dos Romeus, árias das Julietas.

É a vós –
artistas-pintores,  
gordos como cavalos
ornato relinchante e devorador da Rússia,
acachapados no fundo dos estúdios,
a aperfeiçoar constantemente florinhas e engodos.

É a vós –
escondidos à sombra de místicos folhetos,
arando com mil rugas vossas frontes –
pequenos futuristas,
pequenos imaginistas,
pequenos acmeistas,
embaraçados entre a teia das rimas.

É a vós –
que em mechas hirsutas tendes transformado
vossos cabelos bem penteados,
e o verniz dos sapatos em tamancos
«prolecultistas»
que remendais
o fraque desbotado de Puchkine.


É a vós –
bailarinos, tocadores de trompete,
que vos entregais abertamente,
ou calmamente pescais,
e imaginais o futuro
como uma academia imensa.
É a vós que o digo,
eu…
genial ou não genial,
que abandonei a quinquilharia da arte
e trabalhei na Rosta,
eu vo-lo digo –
antes que vos expulsem à coronhada.
Deixem-se disso!

Deixem-se disso!
esqueçam,
ponham de lado
rimas,
romances,
roseiras em flor,
e todas as outras «melrancolias»
dos arsenais das artes.

A quem interessa que
«- Ah, pobre criança!
como ele a amava
e como era infeliz…»?
Hoje
necessitamos de mestres
e não cabeludos pregadores.
Oiçam-nas!
As locomotivas gemem,
sopram pelas fendas, pelo chão:
«Dêem-nos o carvão do Don!
Serralheiros,
mecânicos, ao Depósito!»

Em cada embocadura de rio
vemos os barcos deitados,
um buraco no flanco, gritarem nas docas:
«Dêem-nos a nafta de Baku!»

Enquanto nos perdemos em querelas vãs,
buscando não sei que secreto sentido,
atravessa as coisas um enorme soluço:
«Dêem-nos formas novas!»

Já não há imbecis
para, multidão boquiaberta,
esperar que caia dos lábios do «mestre» uma palavra.
Camaradas,
inventai uma arte nova
que arranque
a República da lama.

(1922)



vladimiro maiakowski
autobiografia e poemas
trad. de carlos grifo
presença
1977









16 maio 2018

albert camus / todos traíram…




Todos traíram, aqueles que incitavam à resistência e aqueles que falavam da paz. Eles aí estão, tão dóceis e mais culpados que os outros. E jamais o indivíduo esteve tão só diante da máquina de fabricar mentiras. Ele pode ainda desprezar e lutar contra o seu desprezo. Se não tem o direito de se afastar e de desprezar, conserva o de julgar. Nada pode sair do humano, da multidão. A traição seria crer o contrário. Morre-se só. Todos vão morrer sós. Que ao menos o homem só conserve aqui o poder do seu desprezo e de escolher na pavorosa experiência o que serve para a sua própria grandeza.

Aceitar a experiência e tudo o que ela comporta. Mas jurar apenas cumprir na menos nobre das tarefas o mais nobre dos gestos. E a base da nobreza (a verdadeira, que é a do coração) é o desprezo, a coragem e a profunda indiferença.


albert camus
primeiros cadernos
caderno nr. 3 (abril 1939-fevereiro 1942)
trad. antónio quadros (?)
livros do brasil
1973






15 maio 2018

paul éluard / o cutelo vai cair




O cutelo vai cair
Sobre o pescoço condenado

Um herói privado de armas
Uma mãe morta de cansaço

O sono junta-os a ambos
A manhã mal os desperta

Dissolve-os a fadiga
E a miséria separa-os

Vejo as costas de um casaco cinzento
Numa rua baixa sob a chuva

Vejo pigmeus sem consciência
Saudarem as bandeiras e orarem

Vejo soldados no meio da lama
Saudarem as balas com a cabeça

Vejo as casas demolidas
Como que por prazer para uma festa

Vejo um ventre escancarado
Às moscas ao sol apodrecido



paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977






14 maio 2018

josé de almada negreiros / a conferência improvisada





        Minhas Senhoras e meus Senhores:
                 Mulheres e homens são as duas metades da humanidade – a metade masculina e a metade feminina.
                Há coisas inteiras feitas de duas metades e aonde não se pode cortar ao meio para separar essas duas metades. Exemplo: a humanidade com a metade masculina e a metade feminina. São duas metades que deixam, cada uma, de ser uma metade se não houver a outra metade.
                     A linha que passa por entre estas duas metades é parecidíssima com o ar por dentro de uma esponja do mar, seca.



josé de almada negreiros
andaimes e vésperas
poesia
estampa
1971








13 maio 2018

luís vaz de camões / quem pode livre ser, gentil senhora,




Quem pode livre ser, gentil Senhora,
Vendo-vos com juízo sossegado,
Se o Menino que de olhos é privado
Nas meninas de vossos olhos mora?

Ali manda, ali reina, ali namora,
Ali vive das gentes venerado;
Que o vivo lume e o rosto delicado
Imagens são nas quais o Amor se adora.

Quem vê que em branca neve nascem rosas
Que fios crespos de ouro vão cercando,
Se por entre esta luz a vista passa,

Raios de ouro verá, que as duvidosas
Almas estão no peito trespassando
Assim como um cristal o Sol trespassa.



luís vaz de camões
sonetos





12 maio 2018

jorge de sena / as mãos dadas



Um dia me falaste,
e as árvores morriam galho a galho seco.
Havia flores, recordo.
Havia ruas, ai também recordo.
E escadas
vazias.

Não me falaste, não. Fui eu quem perguntou,
beijando-te tremente, quantos anos tinhas,
e o teu nome.

Não tinhas nome; ou tinhas, mas não teu.
E a tua idade: as tuas mãos nas minhas.


jorge de sena
fidelidade  (1958)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972







11 maio 2018

nuno júdice / voo




Por duas vezes o pássaro atravessou
o horizonte, deixando atrás de si o dia
e a noite, confundidos para quem, no
limite da praia, olhava o seu voo; e
por duas vezes o sol hesitou, antes
de morrer, como se tivesse outra
saída para além do outro lado da terra.



nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997










10 maio 2018

rui knopfli / auto-retrato




De português tenho a nostalgia lírica
de coisas passadistas, de uma infância
amortalhada entre loucos girassóis e folguedos;
a ardência árabe dos olhos, o pendor
para os extremos: da lágrima pronta
à incandescência súbita das palavras contundentes,
do riso claro à angústia mais amarga.

De português, a costela macabra, a alma
enquistada de fado, resistente a todas
as ablações de ordem cultural e o saber
que o tinto, melhor que o branco,
há-de atestar a taça na ortodoxia
de certas vitualhas de consistência e paladar telúrico.

De português, o olhinho malandro, concupiscente
e plurirracial, lesto na mirada do seio
entrevisto, à nesga de perna, à fímbria de nádega;
a resposta certeira e lépida a dardejar nos lábios,
o prazer saboroso e enternecido da má-língua.

De suíço tenho, herdados de meu bisavô,
um relógio de bolso antigo e um vago, estranho nome.



rui knopfli
o dente do siso
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional-casa da moeda
1982







09 maio 2018

josé ángel cilleruelo / bairro alto




2
Uma revista rasgada na armação
da cama vazia. Além o colchão
no piso de mármore, junto de restos
de pequena fogueira. Nas paredes,
mensagens de amor reles e obsceno.
Beatas, lixo, plásticos, migalhas
por todo o lado. Um preservativo
recente junta um sinal ao abandono.

Não sei se neste quarto estive só,
numa tarde de chuva, masturbando-me
devagar. Ou neste quarto será onde
desabotoou a saia e disse
deita-te! e o fio me beijou
os olhos. Ou talvez que na janela
de um quarto como o que descrevo agora,
numa manhã de setembro aziaga,
tremi ao ver que corria pela avenida.

Camiões e gruas e operários
destruirão o velho hotel em poucas
horas. O pó cobrirá a figueira
e os fetos do pátio antigo.
grandes rodas esmagarão a erva
onde me deitei um dia com um livro
nas mãos. Levantei os olhos
e estava junto da piscina,
prestes a rir-se do meu sotaque
de estrangeiro. Este quarto. Estas ruínas.



josé ángel cilleruelo
salobre
antologia
trad. joaquim manuel magalhães
averno
2004







08 maio 2018

alberto lins caldas / a tempestade





● por muitos anos ●
● esperei a tempestade e a destruição ●
● ficava na cama na janela na porta olhando ●
● longe ela a tempestade se preparar os anos ●
● passaram a tempestade grasnando veio ●
● veio caminhando e eu velho envelhecia ●
● perdi as forças olhando pela janela ●

● a tempestade bem próxima de casa ●
● as cidades os campos já se foram devorados ●
● dentro da fome da tempestade engolidos ●
● sinto a casa tremer as telhas ladrarem ●
● sendo arrancadas como pedaços de carne ●
● de vísceras enquanto tudo diminui e some ●
● meu mundo se tornou minúsculo um grão ●

● minha cama meus travesseiros o lençol ●
● a tempestade não brinca nem arrefece ●
● agora a treva do céu aparece e roda roda ●
● gigante que tritura a terra as gentes o mar ●
● só a cama meus três travesseiros o lençol ●
● que agora se foi logo os travesseiros a cama ●
● se partem se espalham se retorcem e eu rio ●

● talvez não seja pelo elefante cor de rosa ●
● azul que se equilibra sobre o cão sarnento ●
● como um palhaço num picadeiro pobre ●
● olhando um elefante cor de rosa azul ●
● que se equilibra sobre um cão sarnento ●
● com as pernas finas cor de rosa azul ●
● pernas finas rosa azul e eu fico rindo ●

● das hienas desse circo que gira gira ●
● das focas gordas das baleias amestradas ●
● das equilibristas bêbadas sobre cavalos ●
● dos banqueiros domadores de ratos ●
● contando litros de sangue suor e olhos ●
● em conserva línguas roxas e inchadas ●
● mas talvez não seja por nada disso e eu ●

● só ria pelo elefante cor de rosa azul ●
● que se equilibra sobre o cão sarnento ●
● com suas pernas finas rosas e azul azul ●
● ou porque rodopiam sobre o resto de mim ●
● toneladas de cebolas que me faziam chorar ●
● tomates como sois como estrelas do mar ●
● talvez seja por isso que gargalho e danço ●

● ou até mesmo por não restar nada de mim ●
● só o riso com dentes quebrados e podres ●
● no centro ridículo dessa tempestade nua ●
● sim é essa dentadura partida e cor de rosa ●
● sem lábios sem língua rosa azul sem rosto ●
● o que me faz rir faz no melhor dos mundos ●
● como se as tempestades não existissem ●




alberto lins caldas








07 maio 2018

júlio pomar / TRATAdoDITOeFEITO




XXX

                                               Terceira


                                               Todo o canteiro conta
que ouve a pedra. Eu ouço
a palavra, tiro-lhe o vulto, tomo o seu peso
lembrado do que nela entronca ou do que dela se desprende.
Ao descascar a polpa túrgida
de mil sentidos, provado ou não ainda o fruto apetecido, nascem
memórias, ecoam madrugadas, sucedem-se
lembranças cuja carga declarada
não corresponde ou só em parte ao que vinha
à vista.



júlio pomar
poema TRATAdoDITOeFEITO
dom quixote
2004