Rui Knopfli,
fotografia de João Vilhena, Revista LER
Toda a poesia é a consumação em escrita de emoções limadas pelo sentimento, pela imaginação e pela experiência que se resolvem numa imagem, ou em imagens, e a que chamamos poema. Imagem é o que apresenta instantaneamente um complexo intelectual e emocional (1) e pode ser obscura ou enigmática, não porque o poeta se pretenda inacessível, mas porque o mundo poético é gerador de absolutos de que ele apenas é o comentador.
A poesia de Knopfli é dramática, encena vezes sem conta o mundo, o tempo, o amor e a morte. Vive de raízes largadas (indestrutíveis) na terra africana, excelência de mistérios e de apelos a uma liberdade que vem do mais profundo da nossa memória e que grita insistentemente o seu direito a ser consentida nos outros lugares e nas outras pessoas.
Liberdade absurda, como a luz, que o autor reinterpreta num ritual de melancolia, dividido na incompreensão do sentimento de perda, de que é feita a vida, e no sofrimento/prazer que a memória provoca ao trazer para a luz aquilo que já é escuridão. Passado e presente em fragmentos que estilhaçam a alma até uma tristeza profunda, que apenas se resolve pela evocação, que só se exorciza quando as palavras, muito mais fortes que a memória, ficam no lugar dos rios, no lugar dos sonhos, muito mais eternas, muito mais vastas que qualquer espaço de desejo ou de amor.
Mesmo quando se trata de “palavras encardidas e magoadas” (2) de que se serve de igual modo para dar visibilidade (contar) ao seu sonho duma História heróica e épica, de síntese portuguesa, vivida desde há cinco séculos pelas gentes, presentes ao encontro que o Tempo havia, desde o princípio de tudo, marcado com Portugal.
Rui Knopfli nasceu em 10 de Agosto de 1932 em Inhambane, Moçambique, onde viveu até Março de 1975, fixando—se posteriormente em Londres. A sua obra denota múltiplas raízes europeias, clássicas e modernas, apesar da componente especificamente moçambicana.
Escreveu “O País dos Outros”, 1959; “Reino Submarino 1962; “Máquina de Areia”, 1964; “Mangas Verdes com Sal”, 1969; "A Ilha de Próspero”, 1972 e “O Escriba Acocorado”, 1978; "Memória Consentida", 1982 e "O Corpo de Atena" de 1984.
O seu discurso caracteriza—se por um cinzentismo de imagens que é o pano de fundo de toda a sua poesia. Descrente, longe dos arrebatamentos que transformam a “praga da vida” em explosões de luz, escreve—nos sempre sob um espaço pleno de vazio, notas pardas exalando apenas tons de agonia crepuscular (3) . Colhendo influências significativas em T.S.Elliot, quer temáticas, quer estilísticas, a sua “metáfora é elegante e mortífera de uma decomposição lenta e agónica” (4). Longe do consenso da crítica (5), não se pode, no entanto, deixar de considerar a sua obra de relevante no contexto das várias literaturas de língua portuguesa.
gil t. sousa
Maio de 1995
Notas:
(1) Ezra Pound, in Poetry, Março de 1913
(2) in Mangas Verdes com Sal, Lourenço Marques, 1969, 2 edição, Minerva Central, 1972, pág. 21
(3) cf. Reino Submarino, pág.94
(4) Eugénio Lisboa,in “A Voz Ciciada (Ensaio de leitura da poesia de Rui Knopfil Lx. Agosto 1977
(5) Ver Alfredo Margarido, Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa, Col. “ensaios, Regra do Jogo, 1980, pp.479—5l0
Três poemas de “Memória Consentida” (1982)
Gritarás o meu nome
Gritarás o meu nome em ruas
desertas e a tua voz será
como a do vento sobre a areia:
um som inútil de encontro ao silêncio.
Não responderei ao teu apelo,
embora ardentemente o deseje.
O lugar onde moro é um obscuro
lugar de pedra e mudez:
não há palavras que o alcancem.
gelam-lhe os gritos por fora.
Serei como as areias que escutam
o vento e apenas estremecem.
Gritarás o meu nome em ruas
desertas e a tua voz ouvirá
o próprio som sem entender,
como o vento, o beijo da areia.
Teu grito encontrará somente
a angústia do grito ampliado,
vento e areia. Gritarás o meu
nome em ruas desertas.
Sem nada de meu
Dei-me inteiro. Os outros
fazem o mundo (ou crêem
que fazem). Eu sento-me
na cancela, sem nada
de meu e tenho um sorriso
triste e uma gota
de ternura branda no olhar.
Dei-me inteiro. Sobram-me
coração, vísceras e um corpo.
Com isso vou vivendo.
Mania do suicídio
Às vezes tenho desejos
de me aproximar serenamente
da linha dos eléctricos
e me estender sobre o asfalto
com a garganta pousada no carril polido.
Estamos cansados
e inquietam-nos trinta e um
problemas desencontrados.
Não tenho coragem de pedir emprestados
os duzentos escudos
e suportar o peso de todas as outras cangas.
Também não quero morrer
definitivamente.
Só queria estar morto até que isto tudo
passasse.
Morrer periodicamente.
Acabarei por pedir os duzentos escudos
e suportar todas as cangas.
De resto, na minha terra
não há eléctricos.