02 agosto 2024

artur do cruzeiro seixas / esta pedra é uma casa

 



 

Esta pedra é uma casa
tão cega
como aquele céu lá no mais alto
que afinal precisa o mar
para se saber azul.
 
Sobre a mesa estrelas e uvas sempre renovadas
e a lisa parede branca        para as sombras
independentes
esquecerem a morte ali
onde sobra sombra sempre.
Onde a sombra assombra
suportando todo o peso do ar.
 
E lembro ainda o luar como uma areia muito fina
argamassa desta espessura que nos separa do poema perdido
subitamente tornado insecto
por intersecção do teu olhar.
 
Áfricas 65
 
 
 
artur do cruzeiro seixas
obra poética vol. I
quasi
2002
 




01 agosto 2024

joaquim pessoa / canção de estar tão vivo

 


 

 

Tivera eu morrido trespassado
e menos me custara do que estar
de pé. E de tão vivo, assassinado.
Que a morte é ter vontade de cantar.
 
Tivera eu partido e não voltasse
às margens quase puras do meu Tejo.
Tivesse eu uma rosa e caminhasse.
Que a morte é dar a vida por um beijo.
 
Pudera eu dizer, amor, de nós
a ternura cobrindo a nossa cama.
Gritar por ti até perder a voz.
Que a morte está mais perto de quem ama.
 
Pudera então ao menos ficar mudo
e nada mais dizer. Nada cantar.
Como se já tivera eu cantado tudo
e a morte acontecesse devagar.
 
 
 
joaquim pessoa
125 poemas
antologia poética
litexa
1982






31 julho 2024

agustina bessa-luís / agustina por agustina

 
 
 
Eu não dou sossego a quem me ouve, não deixo que parem no dia santo, porque ponho pedra firme até na água e projecto na criança de mama, e pingo de azeite na porta perra, e juízo no louco que se faz desentendido e diz: «Isto não é comigo.»
*
Não sou vaidosa. Sou contente, sou feliz e agradecida dos meus dotes de coração, dos meus talentos, da luz dos meus olhos, da saúde física, do vigor moral. Bens momentâneos – bem o sei. Valores falíveis e facilmente dispersos no tempo. mas é nesta alegria, nesta exaltação vital, que está o meu cântico à vida – humano e, contudo, esplêndido, divino e, contudo, humilde.
*
Eu não sou justa, ajuízo as coisas. Eu e a justiça somos pura coincidência; o facto de isto se repetir faz talvez o prodígio, mas não a certeza.
*
Nunca me senti cansada a descrever o humano, precisamente porque participo de tudo o que é humano. Nunca me senti marcada em misteriosa contradição com o comum dos outros, nunca experimentei o sentimento de estar à parte, de estar isolada. Eu consigo participar da despreocupação dos momentos vividos, e posso revelá-los pela palavra, sem que eles de alterem e se intensifiquem pela observação.
*
 Minha obra é portuguesa, constituída por sentimento e gente portuguesa até à medula.
*
Tudo o que eu escrevo se destina a interessar as pessoas na sua própria entidade. Daí, muitas vezes, ela ter um efeito devastador, a obra e a pessoa que a produz. Sobretudo a pessoa, devo dizer. Eu desmarco os outros da rotina, espanto a manada. Depois os efeitos são maravilhosos, combinam com a imortalidade.
*
Se eu não sou poética, apesar de dizerem que sou, cada vez com mais veemência e singular teimosia sei descobrir nas coisas comuns uma directa via que as leva ao coração, que as torna capazes de serem mais doces do que a lírica mais melodiosa.
*
Não quero como assunto nada de extravagante, mesmo com timbre de lírico. Não quero brilhar, nem convencer, coisa que os poetas querem muitas vezes. Quero ser sóbria de palavras, constante de gratidão, verídica de fidelidade para quem confia em mim.
*
Para mim é fácil ser verdadeira quanto à minha insinceridade.
 
 
 
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008




30 julho 2024

irene lisboa / saímos os três da casa de g..

 
 
SAÍMOS os três da casa de G.. E fomos esperar um autocarro. Ele disse-me: há-de vir a nossa casa. E ela ficou calada.
Têm uma casa nova, encantadora, oiço dizer, onde recebem a nata das letras, política e artes, onde deram e darão grandes saraus, etc.. Mas porque havia eu de ir a casa deles, se até aqui nunca de mim se lembraram? Conhecemo-nos há trinta anos, perto ou certo.
E nunca me retribuíram um certo convite, feito e aceite há dezoito, em que lhes ofereci um jantar de galinha… Ou então, ele mo quis pagar ontem: ao que ela ainda se recusou.
Nesse tal dia, ou noite, tão recuados! ela, preciosa, desdenhosa, dizia com aquela graça franca de quem se sente fora do seu ambiente, desnivelada: e eu que detesto canja! tudo o que cheire a galinha…
Uma mulher encantadora, natural, amável, sociável e caprichosa: com isto se diz tudo.
 
 
irene lisboa
1949 a 1957
solidão II
portugália editora
1966





 

29 julho 2024

ana hatherly / 463 tisanas

 
 
222
 
Estamos no campo. Vamos apanhar amoras. Vamos correndo, rindo como crianças. Quando regressamos a casa temos as mãos tingidas e feridas de mugir as silvas. Preparando as amoras para a sobremesa penso: eis o caviar silvestre!
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006
 



28 julho 2024

antónio reis / poemas quotidianos


 
41
 
Partem todos
 
o abandono os leva
um barco
o medo
 
Quando voltam
para nenhum de nós
é um segredo
 
 
antónio reis
poemas quotidianos
tinta da china
2017
 






 

27 julho 2024

eduardo pitta / foi longa e dura…

 
 
 
Foi longa e dura a batalha do silêncio
por mesas de café, improváveis becos,
pátios e terraços.
 
 
Nada mais havia para argumentar.
 
 
Decerto haveria gente capaz de supor
que seria fácil
fazer as malas aos sentimentos.
 
 
Os outros continuariam como dantes.
 
 
 
eduardo pitta
olhos calcinados
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011





 

26 julho 2024

andrea cohen / alameda

 



 

Concordou em vivermos
juntos só depois
 
de termos pendurado imagens
de lugares em todas
 
as paredes, de modo que houvesse,
para onde se olhasse,
 
uma ruela ou uma alameda
verde, um ponto de fuga para
 
em direcção a ele nos movermos.
 
 
 
andrea cohen
serenamente sobre as lanternas
trad. francisco josé craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2024




25 julho 2024

alejandra pizarnik / quarto solitário

 
 
               
Se te atreves a surpreender
a verdade desta velha parede;
e as suas fissuras, rasgões,
formando rostos, esfinges,
mãos, clepsidras,
certamente virá
uma presença para a tua sede,
provavelmente partirá
esta ausência que te bebe.
 
 
 
alejandra pizarnick
antologia poética
los trabajos y las noches (1965)
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020
 



24 julho 2024

inger christensen / alfabeto

 
 
 
4
 
as diurnas pombas existem; os sonhadores, as bonecas,
os assassinos existem; as pombas, as pombas;
a neblina, a dioxina e os dias; os dias
existem; os dias e a morte; e os poemas
existem; os poemas, os dias, a morte
 
 
 
inger christensen
alfabeto
trad. ricardo marques
não (edições)
2024
 


23 julho 2024

paul auster / desenterrar

 



 

XV
 
Frágil amanhecer: a fronteira
da tua obscurecida lâmpada: ar
sem palavra: uma pendente
corola de cinza, arredondada em rosa.
Pões água na fervura
do mais pequeno
dos teus sóis: casca
de luz assoreada: a verdadeira semente
no pousio da tua palma, aprofundando-se
em torpor. Para lá desta hora, o olhar
ensinar-te-á. O olhar aprenderá
a desejar.
 
 
 
paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002
 





22 julho 2024

cesare pavese / não sabes das colinas

 
 
Não sabes das colinas
onde se verteu o sangue.
Todos nós fugimos
todos nós abandonámos
a arma e a honra. Uma mulher
olhava-nos enquanto fugíamos.
Só um de entre nós
estacou, de punho cerrado,
olhou para o céu vazio,
inclinou a cabeça e morreu
contra o muro, em silêncio.
É agora um farrapo de sangue
e um nome. Uma mulher
espera por nós nas colinas.
 
                 9 de Novembro de 1945
 
 
 
cesare pavese
a terra e a morte
virá a morte e terá os teus olhos
trad. rui caeiro
edições do saguão
2021
 




21 julho 2024

camilo pessanha / branco e vermelho

 



 

 

A dor, forte e imprevista,
Ferindo-me, imprevista,
De branca e de imprevista
Foi um deslumbramento,
Que me endoidou a vista,
Fez-me perder a vista,
Fez-me fugir a vista,
Num doce esvaimento.
 
Como um deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Fez-se em redor de mim.
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso...
Que delícia sem fim!
 
Na inundação da luz
Banhando os céus a flux,
No êxtase da luz,
Vejo passar, desfila
(Seus pobres corpos nus
Que a distância reduz,
Amesquinha e reduz
No fundo da pupila)
 
Na areia imensa e plana
Ao longe, a caravana
Sem fim, a caravana
Na linha do horizonte,
Da enorme dor humana,
Da insigne dor humana...
A inútil dor humana!
Marcha, curvada a fronte.
 
Até o chão, curvados,
Exaustos e curvados,
Vão um a um, curvados,
Os seus magros perfis;
Escravos condenados,
No poente recortados,
Em negro recortados,
Magros, mesquinhos, vis.
 
A cada golpe tremem
Os que de medo tremem,
E as pálpebras me tremem
Quando o açoite vibra.
Estala! e apenas gemem,
Pavidamente gemem,
A cada golpe gemem,
Que os desequilibra.
 
Sob o açoite caem,
A cada golpe caem,
Erguem-se logo. Caem,
Soergue-os o terror...
Até que enfim desmaiem,
Por uma vez desmaiem!
Ei-los que enfim se esvaem,
Vencida, enfim, a dor...
 
E ali fiquem serenos,
De costas e serenos…
Beije-os a luz, serenos,
Nas amplas frontes calmas,
Ó céus claros e amenos,
Doces jardins amenos,
Onde se sofre menos,
Onde dormem as almas!
 
A dor, deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Foi um deslumbramento.
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso
Num doce esvaimento.
 
Ó Morte, vem depressa,
Acorda, vem depressa,
Acode-me depressa,
Vem-me enxugar o suor,
Que o estertor começa.
É cumprir a promessa.
Já o sonho começa...
Tudo vermelho em flor...
 
               Clepsidra (1920)
 
 
 
camilo pessanha
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes da
poesia moderna portuguesa
organizada por herberto helder
assírio & alvim
1985