1.
O leitor está cego: a luz cai sobre o olhar: as
coisas vão nascendo minuciosas despertas e límpidas, no passado. Na página, as
letras vibravam e uma ausência brilhava como um clarão branco que chegava aos
olhos e os olhos eram uma parede de luz intransponível. Ouviam, tacteavam.
a luz cai… contra o olhar…: como o dia se fazia
abria-se o mundo: tu. A neve espalhava-se no cérebro do leitor, pelas suas
árvores imóveis como uma fotografia. Vê,
dizia. – Isto é um livro; eu sei, pensava ele humildemente; um dia li um livro;
contava uma história: passava-se no México e havia muito calor, a noite ia
caindo sobre a terra, descendo pela colina até à cidade, até às ruínas. Até ao
rio. Como era inverosímil o que tinha acontecido não passara ainda um ano…
O leitor ia virando as páginas que muito lentamente
ondulavam; estava cego e agarrava o livro num esforço paciente. Algures como no
passado, branca sobre a luz branca, uma letra ardia: os contornos hesitantes de
um A antigo, pintado, um quarto do sol, a secção de um disco girando sobre si
mesmo. Um simulacro. Algures, então, como no futuro, o leitor está cego.
manuel gusmão
dois sóis, a rosa
a arquiitectura do mundo
as posições do leitor (1971)
caminho
1990