03 fevereiro 2024

manuel gusmão / as posições do leitor




1.
 
O leitor está cego: a luz cai sobre o olhar: as coisas vão nascendo minuciosas despertas e límpidas, no passado. Na página, as letras vibravam e uma ausência brilhava como um clarão branco que chegava aos olhos e os olhos eram uma parede de luz intransponível. Ouviam, tacteavam.
 
a luz cai… contra o olhar…: como o dia se fazia abria-se o mundo: tu. A neve espalhava-se no cérebro do leitor, pelas suas árvores imóveis como uma fotografia. , dizia. – Isto é um livro; eu sei, pensava ele humildemente; um dia li um livro; contava uma história: passava-se no México e havia muito calor, a noite ia caindo sobre a terra, descendo pela colina até à cidade, até às ruínas. Até ao rio. Como era inverosímil o que tinha acontecido não passara ainda um ano…
 
O leitor ia virando as páginas que muito lentamente ondulavam; estava cego e agarrava o livro num esforço paciente. Algures como no passado, branca sobre a luz branca, uma letra ardia: os contornos hesitantes de um A antigo, pintado, um quarto do sol, a secção de um disco girando sobre si mesmo. Um simulacro. Algures, então, como no futuro, o leitor está cego.
 
 
 
manuel gusmão
dois sóis, a rosa
a arquiitectura do mundo
as posições do leitor (1971)
caminho
1990






 

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