L. do D.
Sou um homem para quem o mundo exterior é uma
realidade interior. Sinto isto não metafisicamente, mas com os sentidos usuais
com que colhemos a realidade.
Parecerá a muitos que este meu diário, feito para
mim, é artificial de mais. Mas é de meu natural ser artificial. Com que hei-de
eu entreter-me, depois, senão com escrever cuidadosamente estes apontamentos
espirituais! De resto, não cuidadosamente os escrevo. É, mesmo, sem cuidado
limador que os agrupo. Penso naturalmente nesta minha linguagem requintada.
A nossa frivolidade de ontem é hoje uma saudade
(constante) que me rói a vida.
Há claustros na hora. Entardeceu nas esquivanças.
Nos olhos azuis dos tanques um último desespero reflecte a morte do sol. Nós
éramos tanta coisa dos parques antigos; de tão voluptuoso modo estávamos
incorporados na presença das estátuas, no talhado inglês das áleas. Os
vestidos, os espadins, as perruques, os meneios e os cortejos pertenciam tanto
à substância de que o nosso espírito era feito! Nós quem? O repuxo apenas, no
jardim deserto, água alada, onda já menos alta no seu acto triste de querer
voar.
s.d.
fernando
pessoa
livro do
desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982
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