04 fevereiro 2024

bernardo soares / sou um homem para quem o mundo exterior é uma realidade interior.

 
 
L. do D.
 
Sou um homem para quem o mundo exterior é uma realidade interior. Sinto isto não metafisicamente, mas com os sentidos usuais com que colhemos a realidade.
 
Parecerá a muitos que este meu diário, feito para mim, é artificial de mais. Mas é de meu natural ser artificial. Com que hei-de eu entreter-me, depois, senão com escrever cuidadosamente estes apontamentos espirituais! De resto, não cuidadosamente os escrevo. É, mesmo, sem cuidado limador que os agrupo. Penso naturalmente nesta minha linguagem requintada.
 
A nossa frivolidade de ontem é hoje uma saudade (constante) que me rói a vida.
 
Há claustros na hora. Entardeceu nas esquivanças. Nos olhos azuis dos tanques um último desespero reflecte a morte do sol. Nós éramos tanta coisa dos parques antigos; de tão voluptuoso modo estávamos incorporados na presença das estátuas, no talhado inglês das áleas. Os vestidos, os espadins, as perruques, os meneios e os cortejos pertenciam tanto à substância de que o nosso espírito era feito! Nós quem? O repuxo apenas, no jardim deserto, água alada, onda já menos alta no seu acto triste de querer voar.
 
s.d.
 
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982




 

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