Mostrar mensagens com a etiqueta iosif brodskii. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta iosif brodskii. Mostrar todas as mensagens

30 janeiro 2024

iosif brodskii / diálogo

 
 
«Está ali, no declive deitado:
à roda atarefam-se os ventos.
Em cada copa de carvalho
crocitam os corvos aos centos,»
«Onde? É que não oiço nada,
o vento sussurra nas folhagens.
O que disseste do telhado,
que não distingo as palavras?»
 
«Nas copas, digo-te, nas copas
gritam pássaros pardacentos.
Os netos dele picam voo
dos tronos celestes aos centos.»
«Então ele foi algum corvo:
no escuro, o vento às risadas.
O que disseste tu das copas,
que não te entendo as palavras?»
 
«Escondem, escondem os esforços
no escuro da noite cega.
Uma só coisa ele compôs:
as asas duma ave negra.»
«O vento estorva, o vento,
meu deus acalma este vento.
O que fez ele então na vida,
já que estava entre a gente?»
 
«As folhas cismam, balbuciam,
Ali jaz ele e não respira.
Vês uma nuvem lá no céu?
– A alma dele na subida.»
«Sim, agora já te entendo:
foi-se para a noite a voar.
Agora ali jaz e abraça
as raízes do carvalhal.»
 
«O telhado, faço o telhado
da copa de carvalho espessa.
Fica mais calmo que um lago,
mais rasteiro do que a erva.
Vou coroá-lo com a bruma.
Fica-lhe bem uma coroa.»
«Fica então debaixo da terra?»
«Não pode levantar-se, assim.
Está lá deitado com a coroa,
está lá esquecido por mim.»
«Era um corvo na tempestade?»
«Era uma ave, ele foi uma ave.»
 
 
 
iosif brodskii
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
tradução de nina guerra e filipe guerra
assírio & alvim
2001
 




24 fevereiro 2022

iosif brodskii / um postal de lisboa

 
 
Monumentos a eventos que nunca se deram:
 
 
Às guerras sangrentas nunca travadas.
Às grandes tiradas engolidas ao soar
a voz de prisão. À consagrada união
do corpo nu com o pinheiro anão
que deu o São Sebastião.
Aos aviadores que subiram às nuvens
num piano alado. Ao inventor do motor
que usa como carburante
o lixo das recordações. À esposa do navegante
ensimesmado sobre um solitário ovo em omeleta.
Às Constituições desnudadas. Às independên
cias de opulento seio. Aos cometas
que à Terra passaram tangentes
(perseguindo um infinito, cujos sinais
são em parte os das nossas paisagens).
Ao coito interrompido, nas barbas do preso,
Entre a ideia de autoridade
e a vegetação. Ao achamento
da Infártica, bairro ignoto
do outro mundo. Ao cubista doidivanas
que captava nos telhados o soprano
do telégrafo. Ao suicídio do Tirano
por amor não correspondido.
Ao terramoto – sublinha um contemporâneo –
com deleite pelo povo recebido.
À mão que nunca pegou em dinheiro,
para não falar em membro viril.
Ao total de folhas verdes com direito
inato a desprezar a sua diversidade.
À felicidade. Aos sonhos que impuseram à realidade,
à custa das pessoas, a sua própria arbitrariedade.
 
 
 
iosif brodskii
paisagem com inundação
trad. de carlos leite
livros cotovia
2001




 

22 outubro 2020

iosif brodskii / centauros I

 
 
Metade beleza deslumbrante, metade sofá – em demótico, Sófa –
depois duma tarde a encher a rua cujas janelas parecem caras
com o estrépito dos seus seis saltos altos (no fundo, uma catás
trofe é coisa cujas consequências não é difícil alterar),
corre para um encontro. O amor compõe-se de tule,
cabelo, sangue, colchão de molas, cabeleireiro, felicidade, partos.
Dois terços homem, um terço carro de corrida – Múlia –
saúda-a com indolência e alguns rosnados apartes,
e condu-la a um teatro. Qualquer coxa, desde a idade das fraldas,
mostra uma tendência do músculo para móveis, mognos
trabalhados, armários de espelhos que,
por sua vez, pedem poses a três-quartos, de frente,
e uma bofetada. Condu-la a um teatro, em cujas trevas
– trepando um sobre o outro, amassando os bancos –
gozam o panorama dum drama sobre a vida das bonecas,
 
que é o que, francamente, éramos, no nosso tempo.
 
 
 
 
iosif brodskii
paisagem com inundação
trad. de carlos leite
livros cotovia
2001

 



12 outubro 2018

iosif brodskii / ab ovo




No limite, devia haver uma língua
em que a palavra “ovo” se reduzisse ao O
apenas. O italiano é a que mais se aproxima,
naturalmente, com a sua “uova”. Por isso o Alighieri achava
que o alimento mais saudável era o ovo, comungando
dessa predilecção com sopranos e tenores, cujos torsos
em forma de pêra, em última análise, dão corpo à “ópera”.
O mesmo é válido para os verdadeiros românticos, ou seja,
os poetas alemães, em que praticamente todos os versos
começam com o que comeram ao pequeno almoço,
ou para os igualmente emproados matemáticos,
aninhados em cima da boa poedeira da sua infinidade,
cujos imaculados zeros jamais chocarão.

1996




iosif brodskii
paisagem com inundação
trad. de carlos leite
livros cotovia
2001