23 fevereiro 2023

ángél gonzález / aniversário

 
 
Reparo nisto: em como me vou tornando
mais dúbio, mais confuso,
dissolvendo-me num ar
quotidiano, tosco
farrapo de mim, esfiapado
e de punhos esfolados.
 
E compreendo: vivi
mais um ano, e isso é muito duro.
Bater o coração todos os dias
quase cem vezes por minuto!
 
Para viver um ano é preciso
morrer muitas vezes muito.
 
 
 
ángél gonzález
para que eu me chame ángel gonzález
uma antologia
selecção e tradução de miguel filipe mochila
língua morta
2018
 


22 fevereiro 2023

anna akhmatova / no quadragésimo ano

 



4.
 
Era eu a que sabia da insónia
Todos os precipícios e veredas,
Mas esta é um tropel de cavalaria
Ao uivo de clarim que ficou selvagem.
Entro em casas esvaziadas,
No recente aconchego de alguém.
Tudo silencioso, só as brancas sombras
Nos alheios espelhos flutuam.
E lá na neblina o quê – a Dinamarca,
A Normandia ou dantes
Eu própria estive aqui,
E isto – uma reedição
Dos minutos para sempre esquecidos?
 
1940
 
 
anna akhmatova
poemas
trad. joaquim manuel magalhães e
vadim dmitriev
relógio d´água
2003 




21 fevereiro 2023

juan manuel villalba / teoria do caos

 
 
Tudo começou cedo, na cozinha.
O café estava frio
e o sal ocultou-se no açucareiro.
Passou uma noite má, os ruídos não deixaram
dormir a sua mulher e as crianças tinham febre.
Do céu a chuva ameaçava
negar a promessa de um dia bom.
Há mais de um mês que procurava emprego.
Mandou um murro na mesa;
o copo caiu ao chão
e o café manchou-lhe as calças.
Sentada, com as mãos na cara,
a mulher desatou num pranto seco.
Gritou: não posso mais, esta casa é minha
e sou apenas a escrava de um escravo,
vai-te, deixa-me só com a porca da minha vida.
As crianças começaram a chorar no quarto.
Então explodiu, voltou a mesa,
e na mulher deixou as marcas
roxas de uns murros: um resumo sucinto
da simples teoria do fracasso.
Saiu de casa. Entrou na rua.
A chuva atravessava o ar parado.
Apenas pensava como evitar os charcos.
 
 
 
juan manuel villalba
poesia espanhola de agora vol. II
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
 
 


20 fevereiro 2023

juan vicente piqueras / história universal

 



 
Um homem nasce chora cresce ri
sofre e faz sofrer caminha canta
tem sede fome frio medo pressa
perde-se transborda arde sorri.
 
Um homem sozinho no meio da noite
assobia para amansar os monstros que o habitam.
 
Abraça empurra mata beija morre
cansa-se de si mesmo apaixona-se
dá-se à vida sabe que se acaba
que escorre o que é por entre os dedos.
 
Um homem olha o céu as nuvens e diz-se
em silêncio que breve
que bela e fugidia é, foi, a vida.
 
 
 
juan vicente piqueras
instruções para atravessar o deserto
trad.joão duarte rodrigues
e manuel alberto valente
assírio & alvim
2019




19 fevereiro 2023

josé de almada negreiros / itinerário sobre o joelho

 


 

Nascer
vir a este mundo
é acordar legível do sono eterno.
Maravilhoso (e é) que seja acordar
traz mistura pessoal:
preferia não ter nascido.
Fazemos parte de animal perpétuo
que exige o nosso serviço dele.
Mas um é passageiro
tem que inventar optimismo e graça
e permanecer acordado o animal perpétuo.
Nascemos órgão e seremos, afinal, o todo do organismo.
Personalidade não é senão o ímpeto para nos deixarmos de nascidos intactos
é condição primeira do ser vivo eterno que somos.
Nasce segunda vez o que morre a morte primeira.
Nasce-se segunda vez o ser vivo eterno que somos.
Iremos por onde não há adesão possível à segunda vida
porta do eterno.
Depois é o silêncio que fala
a paz que nos esperava.
 
 
 
josé de almada negreiros
poemas
assírio & alvim
2017




18 fevereiro 2023

jorge luís borges / bairro norte

 
 
Esta declaração é um segredo
vedado plo descuido e a inutilidade,
segredo sem mistério ou juramento
que apenas é assim por indiferença:
hábitos de homens e de anoiteceres detêm-no
e preserva-o o esquecimento, que é o modo mais pobre do mistério.
 
Houve um tempo em que o bairro era amizade,
um caso de aversões e afectos, como as outras coisas do amor;
mal persiste essa fé
nuns factos distantes que hão-de morrer:
na milonga que lembra as Cinco Esquinas,
no pátio como firme rosa sob os altos muros,
no letreiro desbotado que ainda diz La Flor del Norte,
nos rapazes de guitarra e baralho de cartas,
na trôpega memória de algum cego.
 
Este disperso amor é o nosso desanimado segredo.
 
Uma coisa invisível faz perecer o mundo,
um amor não mais amplo que uma música.
O bairro afasta-se de nós,
as baixas varandinhas de mármore não enfrentam o céu.
O nosso carinho acobarda-se em tédios,
e é outra a estrela de ar das Cinco Esquinas.
 
Mas sem ruído e sempre,
em coisas mudas e perdidas, como estão sempre as coisas,
no comerciante de borracha, com o seu listrado céu de sombra,
na taça que recolhe o primeiro e o último sol,
perdura este facto amistoso e prestável,
a lealdade obscura que os versos declaram:
o bairro.
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1923-1949 vol. I
caderno san martín  (1929)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




17 fevereiro 2023

roberto juarroz / também traímos a água

 



 
Também traímos a água.
 
A chuva não se reparte para isso,
o rio não corre para isso,
o charco não se detém para isso,
o mar não é presença para isso.
 
Novamente perdemos a mensagem,
as vogais abertas
da linguagem da água,
a sua inaudita transparência palpável.
 
Nem sequer soubemos
beber a transparência.
Beber algo é aprendê-lo.
E aprender a transparência é começar
a aprender o invisível.
 
 
 
roberto juarroz
a árvore derrubada pelos frutos
trad. rui caeiro, duarte pereira e diogo vaz pinto
língua morta
2018




16 fevereiro 2023

oscar wilde / a minha voz

 



 
Neste veloz mundo moderno, inquieto,
Tivemos tudo o que quisemos – eu e tu
E o nosso barco tem agora mastros nus,
E provisões já não nos restam.
 
E, de chorar, minha alegria me abandona,
A minha face empalidece prematura,
A minha boca rubra é curva de amargura,
E a Ruína é o dossel da minha cama.
 
Mas para ti toda esta vida tão repleta
Foi lira só, ou alaúde, ou leve encanto
De violas, ou como quando canta o mar
Que dorme numa concha, e o eco se repete.
 
 
 
oscar wilde
poemas
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
2005




15 fevereiro 2023

yorgos seferis / eurípedes, ateniense

 



 
Envelheceu entre o fogo de Troia
e as pedreiras da Sicília.
 
Gostava das cavernas no areal e dos desenhos
          do mar.
Viu as veias dos homens
como rede dos deuses, onde nos apanham como às alimárias;
tentou rompê-la.
Era sibilino, seus amigos poucos;
veio o tempo em que os cães o devoraram.
 
 
 
yorgos seferis
caderno de exercícios
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993
 




14 fevereiro 2023

fernando guimarães / uma planta nasce

 



 

 
Uma planta nasce dividida num vaso. Metade das suas folhas
pertence-me; a outra é de alguém que desconheço. Ambos
estamos ali a ver o mesmo? É no meio que principia a erguer-se
um caule inexistente. Seremos os dois um só? E olhamos
para o que fica dividido até sabermos onde está completa a planta.
 
 
 
fernando guimarães
relâmpago
revista de poesia 15
fundação luís miguel nava
outubro 2004





13 fevereiro 2023

manuel francisco t. / fevereiro, 9



 

Visitam capelas no nevoeiro
a manhã assim os aconselha na
margem de rios gelados os santos a eles
se assemelham recolhidos restos na talha.
 
O calção do menino, a espia doce
que cais conhecem a biografia do
sonho: três poemas, um dia
de chuva nevoeiro pedras sob a pele
 
Visitam túmulos quando acordam.
Os anjos assim os resguardam os círios
a toalha e uma nudez de fra angelico
 
quando já homem à terra se dispôs
a cair para conhecer o lento
carvão da alma, dias de fevereiro
 
 
 
manuel francisco t.
colóquio letras 113-114
fundação calouste gulbenkian
1990


 


12 fevereiro 2023

pedro tamen / annie besant

 
 
Os falsos deuses sentaram-se em redor
Tal como nas mesas de pé-de-galo
foi preciso chegar aos últimos extremos
foi preciso que o ar ardesse de murmúrios
para que o lápis começasse a mover-se
Não há morte dizia
de um lado e outro do papel
não há morte dizia
de um lado e outro do papel
são as mesmas vozes o trovão
é o mesmo atroando os ouvidos pois
de um lado e outro do papel dizia
não há morte
Morte há porém no papel onde o lápis
soprado se moveu
Só no papel
só no papel mortalha
 
 
 
pedro tamen
relâmpago nº. 13 10-2003
revista de poesia
fundação luís miguel nava
2003
 



11 fevereiro 2023

ruy belo / metamorfose

 



 
Ó homem que passas tranquilo na rua
atrás de qualquer próximo perfume
e chegas a casa sem incidentes
ó homem que tens à espera de ti
virada a esquina da rua e do tempo o teu próprio rosto
não tenhas pena de quem morre
de árvore para árvore
e é diferente no princípio e no fim da rua
 
 
 
ruy belo
todos os poemas I
aquele grande rio eufrates
assírio & alvim
2004