29 janeiro 2023

david teles pereira / pequena elegia da memória

 


 

Não nego que me sinto vencido
pela tua distância,
uma pedra e um pouco de gelo no sangue
uma violeta na primavera desta morte em flor.
A aflição não passa,
ainda que eu permaneça na defensiva, dia após dia,
na retaguarda
do teu afecto.
 
Tocar-te o músculo, tal como a um livro de biblioteca.
Mas agora, o que se mantém vivo e fresco
No teu estojo de ossos? Assim, dizem,
Se retira aos nossos restos, ainda que dignos,
O nervo e a tentação do teu nome.
 
Não dizer o teu nome, nunca. Não pode dar-se
tesouro eterno assim a mãos que me recusaram.
Quanto mais morres, mais difícil é dizer-te,
 
mais fácil é dizer apenas… corpo.
 
 
 
david teles pereira
resumo
a poesia em 2011
assírio & alvim
2012
 



28 janeiro 2023

josé carlos barros / as páginas dos romances

 




 

Arriscávamos o salto mortal
voando com uma venda nos olhos
dos andaimes para o monte de areia da póvoa.
As obras da escola eram a nossa perdição:
 
as fasquias de alumínio, o ondulado de luzalite
das coberturas, o entulho, o ressalto
exacto do encaixe das tijoleiras, o pó de talco
dos sacos de cimento da cimpor. Nos sábados
 
à tarde erguíamos muros no combarro com tijolo
de quinze, marcávamos com estacas de pinho
o perímetro exterior do pavilhão, ligávamos a betoneira
a olhar em sobressalto os movimentos oscilatórios
 
do balde. Penso que era assim. Às vezes
pergunto o que fica dos livros, o que pertence
e não pertence à literatura, o que acrescentaram
à nossa vida as páginas dos romances.
 
 
 
josé carlos barros
resumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010






27 janeiro 2023

adil jussawalla / o local da bomba

 
 
Como se os corpos quebrados fossem os ombros
Famintos de uma rapariga; como se o cascalho poeirento
Fosse o seu cabelo em estrela-do-mar sobre uma almofada,
Com os meus dedos abriria caminho por entre o saibro.
 
Forçaria a entrada dos meus ossos nos ombros
Ossudos destas casas com cicatrizes, como
Passo por cima dos seus telhados apinhados como sardinhas, escon-
                    didos;
Poderia alcançar, agarrar e limpar a sua lata gordurosa.
 
Mas as crianças atirando pedras, entrincheiradas atrás dos montes de
                    terra,
Gritam e matam e amarrotam-se como envelhecidas folhas de jornal,
Insatisfeitas com imaculados céus de paz,
E eu começo a contar os meus inimigos.
 
A violência é uma cultura descoberta em pátios de recreio.
As cidades caem para que deixem respirar as suas crianças.
 
 
 
adil jussawalla
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
tradução de cecília rego pinheiro
assírio & alvim
2001




 
 

26 janeiro 2023

antónio pedro / devagar

 
 
XIX
O silêncio tem coisas complicadas!
– Ando perdido à roda de mim mesmo
Em horas demoradas…
E os mortos são a esmo
De mãos dadas…
 
Caio dentro de mim como dum poço!
(Enão há nada apenas porque há tudo)
Não adivinho nem ouço,
Somente sinto macio…
 
Que é o silêncio, um vazio
Poço
De veludo.
 
 
 
antónio pedro
devagar 1929
poesia (1926-1929)
edições cosmorama
2016
 




25 janeiro 2023

juan luis panero / autobiografia

 
 
Uma casa vazia, outra demolida,
uma criança morta a quem contam histórias,
fantasmas despedidos que se desvanecem,
cinza e osso, pedras derrotadas.
Quartos alugados, repetidos espaços fugazes,
as marcas dos corpos nos lençóis,
uma pesada ressaca sem destino,
vozes que ninguém escuta, imagens de sonhos.
Desnecessárias páginas, gaivotas na janela,
mar ou deserto, brancos despojos,
sinais e rostos na parede da memória.
Papilas sujas de sol no México, firmes
os olhos redondos da caveira
contemplam passado, presente, futuro,
sombras tenazes, metáforas gastas.
Olho sem ver aquilo que já vi,
informe fumo que se esfuma,
invisível mortalha debaixo de nuvens fugazes.
Fumo na noite e no súbito nada.
 
 
 
juan luis panero
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997





 

24 janeiro 2023

tahar ben jelloun / cicatrizes do sol

 
 
Tu que não sabes ler
pega nos meus poemas
e nos meus livros
 
Faz deles uma fogueira para aquecer a tua solidão
que cada palavra alimente a tua brasa
que cada sopro se perpetue no céu que se abre
 
Tu que não sabes escrever
que o teu corpo e o teu sangue me contem a história
do país
fala
 
Seria ilusão do arco-íris
ser apenas de ti
deste corpo mutilado
 
Eu lerei os livros ao contrário
para ler melhor um prado de flores sobre o teu rosto
 
Eu falarei a língua do campo e da terra
para entrar na multidão que se rebela
 
Eu desembarcarei nas feridas da tua memória
e habitarei o teu corpo que se cala
Nós anunciaremos juntos a primavera às crianças
dos terrenos baldios.
 
 
 
tahar ben jelloun
um árabe é um árabe/é um árabe, um árabe
breve antologia de poesia árabe
versões e traduções joana santos e andré simões
contracapa
2022
 
 
 

23 janeiro 2023

joan brossa / o tempo

 
 
Este verso é o presente.
 
 
O verso que acabam de ler é já o passado
– ficou para trás depois da leitura –
O resto do poema é o futuro,
que não está ao vosso
alcance.
 
 
As palavras
estão aqui, tanto faz que as leiam
como não. E nenhum poder terrestre
o pode alterar.
 
 
 
joan brossa
transversões
poemas reescritos em português
por zetho cunha gonçalves
contracapa
2021





22 janeiro 2023

pedro homem de mello / rua do paraíso

 
 
De dia
Como seria?
 
Alguém me disse: - Era estreita…
Mas por mim julgo: - Era larga.
 
Tanta saudade hoje a enfeita,
Bela e amarga!
 
Cumpriu-se nela a promessa
Da raiz do coração.
 
Era uma rua de Leça,
Onde os outros nunca vão.
 
– A Rua do Paraíso…
 
E aquele nome foi posto,
No meu peito e no meu rosto,
Com água do teu sorriso.
 
 
 
pedro homem de mello
grande, grande era a cidade… (1955)
poesias escolhidas
imprensa nacional-casa da moeda
1983




21 janeiro 2023

paul éluard / aurora

 



 

Do sol que corre sobre o mundo
Estou tão certo como de ti
O sol deu à luz a terra
 
Um sorriso a raiar as noites
Sobre o rosto despojado
De uma adormecida a sonhar a aurora
 
O grande mistério do prazer
Esse estranho torneio de brumas
Que nos leva a terra e o céu
 
Mas nos deixa um ao outro
Feitos um para o outro eternamente
Ó tu que arranco ao esquecimento
 
Ó tu que eu quis feliz
 
 
 
paul éluard
últimos poemas de amor
roupeiras ligeiras
trad. maria gabriela llansol
relógio d´água
2002





20 janeiro 2023

vergílio ferreira / o nada é impensável

 



326 – Não o perguntes. Basta pensar no que se perdeu não de há muito tempo até hoje. Ídolos das artes e letras, do futebol, da política, do que parecia bem ou mal. Tens razão, agora é diferente. Porque o que se sente no vento, o que se percebe na voz inaudível de um incerto aviso de morte não tem que ver com o mais e o menos, o que sobra do que se eliminou, mas com tudo o que se imaginou de toda a ordem da vida. Um homem novo está a nascer e não traz sinais do nosso sangue, do modo de se ser humano como limite de tudo o que se precisa imaginar. Será possível conceber-se um ser humano que nada tenha a ver com o ser-se homem? Um homem que se reconheça numa ordem de ser pensante e sensível? Hoje já não precisa de saber a tabuada para fazer contas, de saber ler e escrever para existir o livro e a carta, de haver amor ou simples atracção para produzir humanidade, de quaisquer regras para a consciência existir, se saber o que é isso de consciência para haver culpa ou remorso. O que se segue é ininteligível para um modo de haver entendimento das coisas. O que se segue começa no nada e o nada é impensável. Pois. Mas não te faças perguntas sobre um nada a começar. E acaba tu nos limites do que te foi pensar e sentir o justo e o injusto e tudo o mais que te ordenou o seres vivente na ordenação de tudo o que te coube. Porque amanhã nada te existe e o mundo terá portanto acabado. Não te canses a perguntar. E sê inteiro para quando a morte chegar cumprir o seu dever e tu o teu para não chegar em vão.
 
 
 
vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001




19 janeiro 2023

marianne moore / poesia

 



 
Eu cá também não gosto: há outras coisas importantes além deste
                                                                             desconchavo.
     Quando, porém, a lemos, desdenhando-a por completo.
                                                                   achamos, apesar de
     tudo, nela um lugar genuíno.
          Mãos prestes a agarrar, olhos
          prestes a dilatar, cabelo prestes a eriçar,
               se for o caso, são coisas importantes não por via
 
de uma interpretação sonante que as possa moldar mas por via de
                                                                                       serem
     úteis. Quando se tornam tão derivativas que ficam
                                                                              ininteligíveis,
     o mesmo se aplica a todos nós, que
          não admiramos o que
          não podemos entender; o morcego
               que se sustém de cabeça para baixo ou que procura algo que
 
comer, os elefantes a querer passar, um ginete a rebolar, um lobo
                                                                                        incansável
     debaixo de uma árvore, o crítico impassível a crispar a pele
                                     como um cavalo mordido por pulga, o adepto
     de baseball, o estatístico –
          e não vale
               discriminar contra “documentos empresariais e
 
manuais escolares”; são todos fenómenos importantes. Há que
                                                                                          distinguir
     porém: quando enaltecidos pelos semi-poetas, o resultado não é
                                                                                             poesia;
     será só quando os poetas entre nós puderem ser
          “literalistas da
          imaginação” – sobre
               a insolência e a trivialidade, só quando puderem apresentar,
     a exame, jardins imaginários com sapos de verdade, é que ela será
          nossa. Entretanto, quando se exige, por um lado,
          a matéria-prima da poesia em
               bruto, a cru e,
               por outro, aquilo que é
                    genuíno, então é porque sempre interessa a poesia.
 
 
 
marianne moore
o pangolim e outros poemas
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
2018


18 janeiro 2023

robert rius / um dia renitente chega ao fim

 
 
Um dia renitente chega ao fim
depois de assassinado há uma semana
morre sobre o mesmo telhado
e nesse lugar jaz
enquanto dura a sombra duma agonia
como o corpo duma amante desejada
que o feixe genealógico da árvore ilumina
todas as noites sobrecarregada de mais um braço
pois assim pode prestar-lhe homenagem
através da sua própria história
que o deixa destilar o suspiro da montanha
deitando-se do lado oposto
à memória dum moribundo
 
 
 
robert rius
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021




 
 

17 janeiro 2023

jorge de sousa braga / plano para salvar veneza

 



 
O meu século não chegou a andar de gatas. Com oito anos já se arrastava pelas minas de carvão, pouco tempo depois combatia nas trincheiras. E as únicas lágrimas que lhe vi chorar foram as dos gases lacrimogéneos.
 
Picasso morreu antes que pudesse levar a cabo o seu sonho, um único fresco que ocupasse não a abóbada da Capela Sixtina mas a abóbada celeste.
 
Fernando Pessoa morrera muitos anos antes numa clínica lisboeta completamente ignorado, depois de ter colocado um padrão com a cruz das quinas num dos areais de areia mais fina do universo.
 
Talvez o meu século seja uma comédia banal, embora filmada por homens de talento, onde algumas estrelas se passeiam com tanto à vontade como se fosse na Via Láctea e de que a generalidade dos participantes desconhece o argumento.
 
 
 
jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991