07 agosto 2021

j. r. solonche / hoje vesti uma t-shirt

 
 
Hoje vesti uma T-shirt
com o focinho de um lobo.
Se a reencarnação existe mesmo,
eu gostaria de regressar
como um lobo. Um lobo
cinzento, um lobo vermelho ou
qualquer um da lista de
raças em perigo. Se
voltasse na minha próxima vida
como um lobo à beira da
extinção, podia fazer coisas
tais, podia fazer coisas
tais, digo-te, podia
fazer coisas tão maravilhosamente
horríveis que não consigo dizer-te.
 
 
 
j. r. solonche
afagando a face de lorca
uma antologia
trad. francisco josé craveiro de carvalho
companhia das ilhas
2020





 
 

06 agosto 2021

josé carlos barros / o vaso de plástico

 


 

trago para dentro de casa o vaso de plástico não
vá passar adriano entre as sombras da noite e
roubá-lo com a erva da fortuna para os
jardins da sua vila em
tivoli
 
 
 
 
josé carlos barros
estação
on y va
2020





 


05 agosto 2021

julio cortázar / sábio com buraco na memória

 
 
 
     Sábio eminente, história romana em vinte e três volumes, candidato certo ao prémio Nobel, grande entusiasmo no país. súbita consternação: rato de biblioteca em ‘full-time’ edita grosseiro panfleto denunciando omissão. Caracala. Relativamente pouco importante, de qualquer maneira omissão. Admiradores estupefactos consultam Pax Romana que artista esquece pessoas Vara devolve-me as minhas legiões homem das mulheres e mulher dos homens (atenção aos Idos de Março) o dinheiro não tem cheiro com este sinal vencerás. Ausência incontroversa de Caracala, consternação, telefone desligado, sábio não pode atender rei Gustavo da Suécia mas não é esse o rei que quer chamá-lo mas sim um outro que marca o número baldamente praguejando numa língua morta.
 
 
 
júlio cortázar
histórias de cronópios e de famas
manual de instruções
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973

 




04 agosto 2021

louis aragon / ar do tempo

 
 
Nuvem
Ergue-se um cavalo branco
E é madrugada na estalagem onde despertará o
                                       rimeiro que aparecer
Vais andar a vadiar no meio da gente a vida inteira
Semi-morto
Semi-adormecido
Não estás farto dos lugares comuns
As pessoas olham-te sem se rirem
Têm olhos de vidro
E tu passas
Perdes o teu tempo
Passas
Contas até cem e fazes batota para matar mais dez segundos
Estendes bruscamente o braço para morrer
Não tenhas medo
Mais tarde ou mais cedo
Só haverá mais um dia e a seguir um dia
E depois pronto
Nunca mais será preciso ver os homens nem esses abençoados
                         bichinhos que eles afagam de quando em vez
Nunca mais será preciso falar sozinho durante a noite
                          para não ouvir o lamento da lareira
Nunca mais será preciso abrir as minhas pálpebras
Nem lançar o meu sangue como um disco
Nem respirar sem ter vontade disso
Contudo não desejo morrer
O sino do meu coração canta em voz baixa uma
                            uma esperança muito antiga
Esta música
Bem sei
Mas a letra da canção
Que dizia a letra ao certo
Imbecil
 
 
 
louis aragon
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021
 





03 agosto 2021

charles bukowski / está qualquer coisa a bater à porta

 
 
uma grande luz branca amanhece sobre o
continente
enquanto adulamos as nossas tradições falhadas,
muitas vezes matamos para as preservar
ou às vezes matamos só por matar.
parece não ter importância: as respostas balouçam
fora do alcance,
fora de mão, fora da mente.
 
os líderes do passado eram insuficientes,
os líderes do presente não estão preparados.
enroscamo-nos nas nossas camas à noite e esperamos.
é uma espera sem esperança, uma
oração pedindo graças imerecidas.
 
tudo se parece cada vez mais com o mesmo velho
filme.
os actores são diferentes mas o enredo é o mesmo:
absurdo.
 
devíamos ter aprendido ao observar os nossos pais.
devíamos ter aprendido ao observar as nossas mães.
eles não sabiam, eles próprios não estavam
                                               preparados
para ensinar.
éramos demasiado ingénuos para ignorar os seus
conselhos
e agora adoptámos a sua
ignorância como
nossa.
somos eles, multiplicados.
somos as suas vidas não saldadas.
estamos falidos
de dinheiro e
de espírito.
 
há algumas excepções, claro,
mas estas oscilam
sobre o precipício
e a qualquer momento
cairão para se juntar
a nós,
os delirantes, os derrotados, os cegos e os tristemente
corruptos.
 
uma grande luz branca amanhece sobre o
continente.
as flores abrem-se cegamente no vento fétido,
enquanto o nosso século XXI,
grotesco e em última instância
inabitável,
se esforça por
nascer.
 
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018





 

02 agosto 2021

allen ginsberg / nas traseiras do real

 
 
parque de locomotivas em San Jose
                desconsolado eu deambulava
frente a uma fábrica de tanques
                e sentei-me num banco
junto à baiuca do agulheiro.
 
Uma flor jazia no feno sobre
a estrada asfaltada
– a assombrosa flor do feno
                pensei eu – tinha um
negro caule crestado e uma
                corola de espinhos sujos
amarelados como polegadas
                da coroa de Jesus e um tufo
de algodão seco e manchado
                no meio tal pincel de barba
usado que jazesse soterrado
                há um ano na garagem.
 
Amarela flor, amarela e
                flor da indústria,
dura flor aguçada e feia,
                e ainda assim flor,
com a forma da grande Rosa
                amarelo dentro da cabeça!
É esta a flor do Mundo.
 
 
San Jose, 1954
 
 
 
allen ginsberg
uivo e outros poemas
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2014





01 agosto 2021

josé de almada negreiros / de 1 a 65

 


                                «N’adhéres jamais»
                                       Georges Braque
 
 

Nasci d’asas
com asas
cortaram-me as guias
de pé no chão
vieram os filhos
cortaram-me os pés
cresceram as asas
sei só voar
sem pé em terra
sem pá no mar
tenho pé no ar
filho d’asas
abe voar
 
 
 
josé de almada negreiros
poemas
assírio & alvim
2017





31 julho 2021

cristovam pavia / poesia

 
 
O lírico segredo
Por ninguém desvendado
Na manhã de neblina
Deixá-lo ir assim…
Eu fico livre e calmo,
Sem amor, sem saudade…
O peso das palavras
Evolou-se… Neblina…
E a poesia nasce
Como se fosse música…
 
 
 
cristovam pavia
poesia
dom quixote
2010





 

30 julho 2021

fátima maldonado / signo dos peixes

 



7

Um prédio em construção,
quantas vezes nos fizemos amor
sentindo misturar a cal no cimento.
O baque da massa granulosa
tinia-me por dentro como polegar em sino,
coice da mão contra jarro de vidro.
Tu continuavas vaivindo sobre mim
lembrando-me o engenho
de açúcar no repouso
a nora em alcatruzes
o moído do grão.
Ouvia o tossir de um pedreiro mais idoso
quando enfim descansavas.
O teu peito deitado
atrás das minhas costas
soava na lata do prato
ou no metal do copo
os arranjos tardios da lancheira manchada
por pingos que a unha
já não pode arrancar.
Rápidos subíamos até à varanda,
juntos nos sentávamos,
colunas partidas juncavam o chão.
Vendo à frente o mar de repente baço,
povoado e lento
esvaindo-se em barcos, sereias, guindastes,
chaminés listradas, gaivotas à volta,
o olhar cansado, sentindo-me húmida,
ouvia nos dentes pulsar o teu sangue.
O cheiro que ressumas fazia por cima
de nós um dossel,
a tarde azulada caía de manso.
Ao fundo a igreja e seus minaretes,
a lua espreitava por trás do zimbório,
caía a poalha de um império desfeito
sobre Lisboa enfim pacificada.
 
 
 
fátima maldonado
sem rasto
signo dos peixes
averno
2021

 





29 julho 2021

antónio josé forte / os meus aviadores

 
 
No ano primeiro do fim da melancolia
enquanto os dias e as noites se devoram
é por mim que escrevem os aviadores
com a minha letra solitária
sobre a multidão no deserto
 
podem ler quando eu passo
despido de trevas
 
á a caligrafia da serpente
das praias do tempo da minha infância
onde amanhece
quando faço o gesto de matar
 
posso mandar os meus aviadores escrever
quando passarem sobre os Pirenéus
ao lado da fome da multidão no deserto
 
no avião mais alto      que vai explodir
voa a minha angústia
 
podem ver
na linha do horizonte
uma asa de sangue contra o rosto
a minha máscara de amante
de bruços sobre a terra
 
sou eu à espera dos meus aviadores
 
 
 
antónio josé forte
uma faca nos dentes
caligrafia ardente
parceria a. m . pereira
2003





28 julho 2021

maria teresa horta / os silêncios

 
 
Não entendo os silêncios
que tu fazes
nem aquilo que espreitas
só comigo
 
Se escondes a imagem
e a palavra
e adivinhas aquilo que não
digo
 
Se te calas
eu oiço e eu invento
Se tu foges
eu sei, não te persigo
 
Estendo-te as mãos
dou-te a minha alma
e continuo a querer
ficar contigo
 
 
 
maria teresa horta
poesia reunida
só de amor
dom quixote
2009

 





27 julho 2021

agustina bessa-luís / criar

 
 
 
     «Os judeus pedem milagres, os gregos pretendem a sabedoria.» Nada melhor do que estas palavras de São Paulo, palavras evidentemente dum romano, ainda que transfigurado pela pressão do seu caso, o seu espinho, como lhe chamou. Sem este espinho, a vontade criadora, continuaremos a pedir milagres e encher-nos de sabedoria. O espírito que cria uma obra ou que a projecta, é um espinho na carne; é um combate formidável que só muito palidamente nos é sugerido nos grandes teatros da turbulência humana. Criar é, ao mesmo tempo, obediência e revolta. Tem dois sexos, a aparência e as condições. É austero prazer e alegria corajosa; é uma arte curativa e é uma lei dinâmica.
 
 
 
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008





26 julho 2021

inês dias / travessa da praia

            


                                 Tudo é margem. Eterno chama o mar.
                                                                        Gottfried Benn
 
 


Foi antes de qualquer poema.
O rio, ao fundo, não era
o da minha aldeia,
mas dividíamos o mundo
sem saber ainda de Tratados,
de um lado a nossa soleira,
do outro a da menina que parecia
um anjo e, garantiam as vizinhas,
estava de morte marcada.
 
Jurávamos não travar, não negar
a recompensa ao vencedor,
e descíamos depois pelos carris,
com a bicicleta testando
uma vocação precoce para a queda
de que nos protegia o olhar
das avós – ao menino e ao borracho…
Um dia disse em voz alta
as saudades da praia e
murmuraram-me ao ouvido,
como se fosse um búzio malicioso
pousado na calçada. Devolvi um sim:
ele abriu o fecho das calças para
urinar atenciosamente na areia
das obras, onde escrevemos castelos
até à hora de jantar, anunciada
pelo passeio manso da Melita,
a cadela do Sr. João.
 
 
inês dias
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015