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02 agosto 2021

allen ginsberg / nas traseiras do real

 
 
parque de locomotivas em San Jose
                desconsolado eu deambulava
frente a uma fábrica de tanques
                e sentei-me num banco
junto à baiuca do agulheiro.
 
Uma flor jazia no feno sobre
a estrada asfaltada
– a assombrosa flor do feno
                pensei eu – tinha um
negro caule crestado e uma
                corola de espinhos sujos
amarelados como polegadas
                da coroa de Jesus e um tufo
de algodão seco e manchado
                no meio tal pincel de barba
usado que jazesse soterrado
                há um ano na garagem.
 
Amarela flor, amarela e
                flor da indústria,
dura flor aguçada e feia,
                e ainda assim flor,
com a forma da grande Rosa
                amarelo dentro da cabeça!
É esta a flor do Mundo.
 
 
San Jose, 1954
 
 
 
allen ginsberg
uivo e outros poemas
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2014





15 novembro 2017

allen ginsberg / canção




O peso do mundo
                é amor.
Sob o fardo
                da solidão,
sob o fardo
                do descontentamento


                o peso,
o peso que carregamos
                é amor.


Quem pode negar?
                Toca
em sonhos
                o corpo,
constrói
                em pensamento
um milagre,
                angustia-se
na imaginação
                até nascer
no humano –


espreita pelo coração
                ardendo puramente –
pois o fardo da vida
                é amor,


carregamos porém o fogo
                com fadiga,
temos pois de descansar
nos braços do amor
                enfim,
temos de descansar nos braços
                do amor.


Não há descanso
                sem amor,
  não há sono
                sem sonhos
de amor –
loucos ou indiferentes
que sejamos, obcecados
                com anjos ou máquinas,
o derradeiro desejo
                é amor
– não pode amargar
                não se pode negar,
 não se pode conter
                se negado:


pesa de mais este peso


                – tem de se dar
sem rendimento
                como se dá
o pensamento
                na solidão
na suprema excelência
                do seu excesso.


Os corpos quentes
                brilham juntos
no escuro,
                move-se a mão
para o centro
                da carne,
treme a pele
                de felicidade
e vem-se a alma
                exuberante aos olhos –


sim, sim,
                era isso que eu
queria,
                que eu sempre quis,
eu sempre quis
                regressar
ao corpo
                onde eu nasci.


San Jose, 1954




allen ginsberg
uivo e outros poemas
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2014





07 agosto 2017

allen ginsberg / o meu eu triste




Por vezes quando tenho os olhos vermelhos
subo ao cimo do Edifício RCA
    e contemplo o meu mundo, Manhattan –
        os meus edifícios, as ruas das minhas proezas,
            apartamentos, camas, andares de águas correntes
– a  5.ª avenida em baixo que também recordo
        os seus carros como formigas, pequenos táxis amarelos, homens
            que caminham, do tamanho de bolas de lã –
Panorama das pontes, nascer do sol sobre a máquina de Brooklyn,
        o pôr do sol sobre New Jersey onde nasci
            e Paterson onde brinquei com formigas –
os meus amores tardios na Rua 15,
        os meus maiores amores no Lower East Side,
            as minhas antigas paixões fabulosas no distante
                                                                                       Bronx –
caminhos cruzando-se nestas ruas escondidas,
        a minha história resumida, as minhas ausências
            e êxtases em Harlem –
– o sol a brilhar em tudo o que possuo
num relance até ao horizonte
        na minha última eternidade –
                                                              a matéria é água.
   
Triste,
        apanho o elevador e desço,
            ruminando,
e caminho nos passeios questionando as vidraças humanas, caras,
        perguntando-me quem ama,
e paro, atónito
        em frente da montra de um stand de automóveis
perdido em pensamentos tranquilos,
        o tráfico passando pelo edifício da 5.ª Avenida, atrás de mim
            esperando um momento quando…

São horas de ir para casa e fazer o jantar e ouvir
        na rádio as românticas notícias da guerra
                                                               … todo o movimento se detém
e eu caminho na tristeza intemporal da existência,
        com ternura a escorrer dos prédios,
            com as pontas dos dedos tocando a cara da realidade,
        a minha própria cara riscada por lágrimas no vidro
            de uma janela – no crepúsculo –
                                 em que não desejo –
bombons – ou possuir os vestidos ou os quebra-luzes
                japoneses de compreensão –
Confundido pelo espectáculo à minha volta,
        Um homem pela rua acima lutando
            com pacotes, jornais,
                gravatas, fatos elegantes
            em direcção ao seu desejo
        Homens, mulheres, jorrando pelos passeios
            semáforos marcando o tempo de relógios apressados e
        o movimento na berma –
   
E todas estas ruas que se cruzam,
        buzinando, pausadamente,
            em avenidas
        onde grandes edifícios se erguem ou enquistadas em vielas
            pelo tráfico vacilante
                carros que guincham e máquinas
        tão doloroso para este
            campo, este cemitério
                esta quietude
                    em leito de morte ou montanha
        que visto uma vez
            não se recupera ou deseja
                na memória futura
em que todo o Manhattan que vi irá desaparecer.




allen ginsberg 
trad. josé alberto oliveira
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001






27 outubro 2013

allen ginsberg / uivo por carl solomon (fragmento)



I

  Eu vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura, esfaimadas
  histéricas despidas,
  arrastando-se através das ruas dos negros ao alvorecer em busca de uma dose
  enfurecida,
  hipsters de cabeça de anjo ardendo pela anciã ligação celestial ao
  dínamo de estrelas na maquinaria da noite,

  (...)

  que morderam detectives no pescoço e guincharam com deleite em carros da polícia
  por terem cometido nenhum crime a não ser a sua própria pederastia falsificada e intoxicação,

  que uivaram de joelhos no metro e foram arrastados para fora do tejadilho
  acenando genitais e manuscritos,

  que se deixaram ser fodidos no rabo por motociclistas santificados, e
  gritaram de prazer,

  que brocharam e foram brochados por aqueles serafins humanos, os marinheiros,
  carícias do Atlântico e amor Caraíbeano,

  que deram cambalhotas de manhã nas tardes em roseirais e na relva
  de jardins públicos e cemitérios disseminando livremente o seu sémen a

  quem quer que viesse que fosse possível,

  que soluçaram sem fim tentando rir sem motivo mas que acabaram com um soluço
  atrás de uma divisória num Banho turco quando o anjo louro & despido veio para os atravessar com uma espada,

  que perderam os seus rapazes de amor para as três velhas víboras do destino a víbora
  zarolha do dólar heterossexual a víbora zarolha que pestaneja para fora
  do útero e a víbora zarolha que não faz nada senão sentar-se no seu
  rabo e cortar os dourados fios intelectuais do tear do artesão,

  que copularam estática e insaciavelmente com uma garrafa de cerveja uma namorada
  um maço de cigarros uma vela e caíram da cama abaixo, e
  continuaram pelo chão fora e através do corredor e terminaram desmaiando na
  parede com uma visão de cona derradeira e vieram-se eludindo a última
  fase de consciência,

  que fizeram transpirar as rachas de um milhão de raparigas estremecendo no
  pôr-do-sol, e que estiveram de olhos avermelhados na manhã mas preparados para fazer transpirar a racha do nascer-do-sol,
  exibindo as nádegas ao abrigo dos celeiros e despidos no interior do lago,

  que se foram prostituindo pelo Colorado numa miríade de carros nocturnos roubados,
  N.C., herói secreto destes poemas, homem-picha e Adónis de Denver--júbilo à
  memória das suas inúmeras raparigas deitadas em parqueamentos vazios & quintais traseiros de restaurantes,
  nas filas de assentos das casas de cinema, nos topos de montanhas em grutas
  ou com empregadas de mesa delgadas de saia levantada na borda solitária da estrada familiar & solipsismos de retretes
  na estação de serviço especialmente secreta, & também becos da cidade berço,

  que se esvaíram em vastos filmes sórdidos, foram alterados em sonhos, despertaram
  numa súbita Manhattan, e se pegaram a si mesmos ao colo para fora da cave
  de ressacas com Tokay implacável e horrores de sonhos de ferro de Third Avenue & tropeçaram para agências de desemprego,

  que caminharam toda a noite com os seus sapatos cheios de sangue na margem
  coberta de neve das docas esperando que uma porta no East River se abrisse para uma sala cheia de vapores quentes e ópio,

  que criaram enormes dramas suicidas no apartamento dos bancos íngremes na
  margem do Hudson debaixo da luz azul diluviana da lua do tempo de guerra
  & as suas cabeças serão coroadas de louro no oblívio,

  que comeram o guisado de cordeiro da imaginação ou digeriram o caranguejo no
  fundo lamacento dos rios da Bowery,

  que choraram perante o romance das ruas com os seus carrinhos de mão cheios de
  cebolas e música de má qualidade,
  (...)


  

  allen ginsberg


26 julho 2013

allen ginsberg / uivo por carl solomon (fragmento)

  I


  Eu vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura, esfaimadas
  histéricas despidas,
  arrastando-se através das ruas dos negros ao alvorecer em busca de uma dose
  enfurecida,
  hipsters de cabeça de anjo ardendo pela anciã ligação celestial ao
  dínamo de estrelas na maquinaria da noite,

  (...)
  que falaram continuamente durante setenta horas do parque para a vereda para o bar
  para Bellevue para o museu para a Ponte de Brooklyn,
  um batalhão perdido de conversadores platónicos saltando para baixo das inclinações
  das saídas de incêndio dos parapeitos das janelas do Empire State fora da lua,
  balbuciando gritando vomitando sussurrando factos e memórias e anedotas e golpes
  no globo ocular e choques de hospitais e cadeias e guerras,
  completos intelectos regurgitados na total revogação de sete dias e sete noites
  com olhos brilhantes, carne para a Sinagoga lançada no pavimento,

  que desapareceram no Zen de nenhures em New Jersey deixando um rasto de
  ambíguos postais ilustrados da Câmara Municipal de Atlantic City,
  sofrendo de suores Orientais e triturações ósseas Tangerianas e enxaquecas da
  China devido à privação de droga no desolado quarto mobilado de Newark,

  que vaguearam em círculos à meia-noite no pátio do caminho-de-ferro
  interrogando-se onde ir, e partiram, sem deixar corações partidos,

  que acenderam cigarros em vagões-jota vagões-jota vagões-jota fazendo algazarra
  através da neve em direcção a quintas solitárias na noite avó,

  que estudaram Plotinus Poe S. João da Cruz telepatia e bop cabala porque o cosmos
  vibrava instintivamente aos seus pés no Kansas,

  que o arrastaram solitário através das ruas de Idaho buscando anjos índios visionários

  que eram anjos índios visionários,

  que pensavam ser apenas loucos quando Baltimore
  cintilava em êxtase sobrenatural,

  que saltaram em limosines com o Chinês de Oklahoma no impulso da
  luz das ruas de chuva da meia-noite invernal de cidades pequenas,

  que deram investidas esfomeados e sós por Huston em busca de jazz ou sexo ou
  "sopa", e seguiram o Espanhol brilhante para conversar acerca da
  América e Eternidade, uma tarefa desesperada, e portanto embarcaram para África,

  que desapareceram adentro dos vulcões do México deixando para trás nada a não ser
  a sombra de estercos e a lava e as cinzas de poesia disseminada
  na lareira Chicago,

  que reapareceram na Costa Oeste investigando o F.B.I. em barbas e
  calções com grandes olhos pacifistas sexys na sua pele bronzeada divulgando
  folhetos incompreensíveis,

  que queimaram buracos com brasas de cigarro nos seus braços protestando contra a
  neblina narcótica de tabaco do Capitalismo,

  que distribuíram panfletos Supercomunistas em Union Square choramingando e
  despindo-se enquanto as sirenes de Los Alamos os derrubavam com lamentos, e com     lamentos derrubavam o Muro,
  e assim o ferry de Staten Island também se lamentava,

  que tiveram um colapso nervoso em pranto nos ginásios brancos nus e tremendo
  perante a maquinaria de outros esqueletos,
  (...)




  allen ginsberg



04 julho 2012

allen ginsberg / uivo por carl solomon (fragmento)





  I


  Eu vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura, esfaimadas
  histéricas despidas,
  arrastando-se através das ruas dos negros ao alvorecer em busca de uma dose
  enfurecida,
  hipsters de cabeça de anjo ardendo pela anciã ligação celestial ao
  dínamo de estrelas na maquinaria da noite,

  que de pobreza esfarrapada e de olhos vazios e mocados se sentaram alto fumando na
  escuridão sobrenatural de apartamentos de água fria flutuando através dos
  topos das cidades contemplando jazz,

  que destaparam os seus cérebros ao Céu debaixo do El e viram anjos Maometanos
  cambaleando nos tectos iluminados das moradas,

  que passaram através das universidades com olhos descontraídos radiantes alucinando
  com a tragédia de Arkansas e a luz de Blake por entre os escolásticos da guerra,

  que foram expulsos das academias por loucura & publicação de odes obscenas na
  janela do crânio,

  que se acobardaram em quartos por barbear em roupa interior, queimando o seu
  dinheiro em cestos de papéis ouvindo o Terror através da parede,

  que foram presos nas suas barbas públicas regressando através de Laredo com
  um saco de marijuana no cinto para Nova Iorque,

  que comeram fogo em hotéis baratos ou beberam terebintina em Paradise Alley,
  morte, ou purgaram os seus torsos noite após noite
  com sonhos, com drogas, com pesadelos ambulantes, álcool e picha e
  tomates sem fim,
  ruas cegas incomparáveis de nuvem estremecendo e relâmpago na mente
  saltando em direcção a postes do Caminho de Ferro de Canada & Paterson, iluminando todo   o mundo imóvel do Tempo entre eles,
  solidificações de paredes de Peiote, árvore verde de quintal traseiro no amanhecer de
  cemitério, embriaguez de vinho sobre os telhados, burgos de montras frontais de passeios ganzados em carros roubados
  no carrossel de néon luz de tráfico cintilante, sol e lua e vibrações de árvore no crepúsculo invernoso rugindo de Brooklyn,
  declarações de cinzeiro e luz da mente de rei generoso,

  que se acorrentaram a carruagens do metropolitano pelo percurso infindo de Battery
  ao Bronx sagrado em benzendrina até que o ruído de rodas e crianças
  os derrubassem estremecendo de bocas escancaradas e aridez desancada de
  cérebro todo drenado de brilho na lúgubre luz do Jardim Zoológico,

  que se afundaram durante toda a noite na luz submarina do restaurante Bickford
  flutuando depois para a saída e sentaram-se fora através da tarde cerveja morta em Fugazzi desolado,
  ouvindo o romper do destino na jukebox de hidrogénio,

  (...)


  

  allen ginsberg