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06 novembro 2024

julio cortázar / instruções-exemplos sobre a maneira de ter medo

 
 
Numa aldeia da Escócia vendem-se livros com uma página em branco, página perdida num lugar qualquer do volume. Se o leitor der com essa página às três da tarde, morre.
 
Na Praça do Quirinal, em Roma, existe um ponto conhecido dos iniciados até ao séc. XIX e do qual, em noites d elua cheia, lentamente se vê mexer estátuas de Dióscuros que lutam com os seus cavalos encabritados.
 
Em Amalfi, ao findar a zona costeira, há um molho que entra pelo mar e pela noite. Ouve-se um cão a ladrar para lá do último candeeiro.
 
Um homem está a pôr pasta na escova dos dentes. De repente vê uma diminuta imagem de mulher deitada de costas, feita de coral ou talvez de miolo de pão colorido.
 
Ao abrir o armário para tirar uma camisa, um velho almanaque cai, que se desfaz, desfolha, que cobre a roupa branca com milhares de sujas borboletas de papel.
 
E um caixeiro-viajante a quem o pulso esquerdo começou a doer, mesmo debaixo do relógio. Ao tirá-lo, o sangue jorrou: a ferida revelava a marca de uns dentes muito finos. O médico acaba de nos examinar, ficamos descansados. A sua voz grave e cordial antecede os medicamentos cuja receita vai escrevendo, sentado à secretária. De vez em quando levanta a cabeça e sorri para nos animar. Não é nada de grave, numa semana já estaremos bons. Felizes recostamo-nos na poltrona, olhamos à volta, distraidamente. De repente, debaixo da secretária, na penumbra, vemos as pernas do médico. Tem as calças pelo joelho e usa meias de mulher.
 
 
 
júlio cortázar
histórias de cronópios e de famas
manual de instruções
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973




06 dezembro 2023

julio cortázar / manual de instruções

 
 
Ter de ganhar o dia-a-dia todos os dias, esbracejar num mundo pegajoso, ter de acordar todas as manhãs num repugnante cubículo, e satisfeito que nem um cão por tudo estar nos seus lugares: a mesmíssima mulher, os sapatos de sempre, o eterno sabor da eterna pasta dentífrica, a mesma tristeza das casas fronteiras, a suja tabuleta com o letreiro HOTEL DE BELGiQUE.
 
Enfiar a cabeça como um touro vencido pela multidão transparente em cujo centro tomamos o café com leite e folheamos o jornal para saber o que aconteceu num ponto qualquer do globo. Não consentir que o acto delicado de girar o trinco da porta, acto que tudo poderia modificar, se cumpra com a fria eficácia de um reflexo quotidiano. Até logo, querida. Passa bem.
 
Apertar uma colher na mão e sentir o seu gemido de metal, sua advertência suspeita. Dói negar uma colher, negar uma porta, negar tudo o que o hábito seduz com suavidade satisfatória. É tão mais simples aceitar a solicitude fácil da colher, usá-la para mexer o café.
 
E não há nada de mal em que as coisas nos vejam mudar.
 
Que ao nosso lado esteja sempre a mesma mulher, o mesmo relógio e que o livro aberto sobre a mesa de cabeceira recomece a andar na bicicleta dos nossos óculos, porque haveria isso de ser mau? Mas há que baixar a cabeça como um touro triste e empurrar para longe o centro do globo de cristal, até outro tão perto de nós, inacessível como o picador tão perto do touro. Forçar os olhos para o que no céu aceita teimosamente o nome de nuvem, sua réplica catalogada na memória. Não pense que o telefone te irá dará o número que procuras. Por que razão to daria? Somente o que já tens preparado e pronto, o triste reflexo da tua esperança, esse macaco que se coça à mesa e treme de frio, chegará aos teus ouvidos. Escavaca a cabeça a esse macaco, vai contra as paredes, rebenta-as. Alguém que canta no andar de cima! Nesta casa há um andar de cima, com outras pessoas! Um andar de cima onde vivem pessoas que nem imaginam o andar de baixo, e cá estamos todos na bola de cristal. E se de repente uma traça aparece na ponta de um lápis e palpita como um fogo cinzento, olha-a, eu olho-a, sinto esse coração pequeníssimo, oiço-a, a essa traça que vive na bola de cristal frio, nada está perdido. Ao abrira porta, ao chegar à escada, saberei que a rua está já ali em baixo; não o molde imposto, não as casas conhecidas, não o hotel em frente: a rua, floresta viva onde cada instante pode invadir-me como uma magnólia, onde as caras começam quando as olho, quando avanço, quando com os cotovelos, pestanas e unhas me atiro minuciosamente contra a massa da bola de cristal, e arrisco a vida enquanto avanço passo a passo para ir comprar o jornal à esquina.
 
 
 
júlio cortázar
histórias de cronópios e de famas
manual de instruções
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973




 

21 abril 2023

julio cortázar / história verídica

 



 
     Um homem deixa cair os óculos que fazem um barulho terrível ao baterem no chão. Baixa-se aflitíssimo o homem, porque as lentes dos óculos são muito caras, mas com assombro descobre que por milagre não se partiram.
     Este homem fica contentíssimo e compreende que o acontecido é uma advertência amistosa, de maneira que vai a um oculista e compra imediatamente um estojo de couro almofadado com dupla protecção, para remediar o mal. Uma hora depois o estojo cai no chão e ao abaixar-se sem preocupações de maior descobre que os óculos se fizeram em fanicos. O homem demora um grande bocado a compreender que os desígnios da Providência são inescrutáveis e que na realidade o milagre ocorreu agora.
 
 
 
júlio cortázar
histórias de cronópios e de famas
material plástico
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973
 


05 agosto 2021

julio cortázar / sábio com buraco na memória

 
 
 
     Sábio eminente, história romana em vinte e três volumes, candidato certo ao prémio Nobel, grande entusiasmo no país. súbita consternação: rato de biblioteca em ‘full-time’ edita grosseiro panfleto denunciando omissão. Caracala. Relativamente pouco importante, de qualquer maneira omissão. Admiradores estupefactos consultam Pax Romana que artista esquece pessoas Vara devolve-me as minhas legiões homem das mulheres e mulher dos homens (atenção aos Idos de Março) o dinheiro não tem cheiro com este sinal vencerás. Ausência incontroversa de Caracala, consternação, telefone desligado, sábio não pode atender rei Gustavo da Suécia mas não é esse o rei que quer chamá-lo mas sim um outro que marca o número baldamente praguejando numa língua morta.
 
 
 
júlio cortázar
histórias de cronópios e de famas
manual de instruções
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973

 




25 dezembro 2020

julio cortázar / preâmbulo às instruções para dar corda ao relógio

 
 
 
     Pensa nisto: quando te oferecem um relógio oferecem-te um pequeno inferno florido, uma prisão de rosas, um calabouço de ar. Não te dão somente o relógio, muitos parabéns, que te dure muitos e bons, é uma óptima marca, suíço com não sei quantos rubis; não te oferecem somente esse pequeno pedreiro que prenderás ao pulso e passearás contigo. Oferecem-te – ignoram-no, é terrível ignorá-lo – um novo bocado frágil e precário de ti mesmo, algo que é teu mas não é o teu corpo, que tens de prender ao teu corpo com uma correia como um bracito desesperado pendente do pulso. Oferecem-te a necessidade de lhe dar corda todos os dias, a obrigação de dar corda para que continue a ser um relógio; oferecem-te a obsessão de ver as horas certas nas montras das joalharias, o sinal horário na rádio, o serviço telefónico. Oferecem-te o medo de o perder, de seres roubado, de que caia no chão e se parta. Oferecem-te uma marca, a convicção que é uma marca superior às outras, oferecem-te a tentação de comparares o teu com os outros relógios. Não te oferecem um relógio, és tu o oferecido, a ti oferecem para o nascimento do relógio.
 
 
 
julio cortázar
histórias de cronópios e de famas
manual de instruções
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973

 



12 julho 2017

julio cortázar / instruções para cantar




Comece por partir os espelhos de casa, deixe cair os braços, olhe vagamente para a parede, esqueça-se.

Cante uma nota só e escute. Se ouvir (o que só acontecerá muito depois) algo como uma paisagem sumida no medo, com fogueiras entre as pedras, com silhuetas seminuas e de cócoras, creio que está no bom caminho, assim como se ouvir um rio onde vogam barcos pintados de amarelo e negro, se ouvir um sabor a pão, um mexer de dedos, uma sombra de cavalo.

Em seguida compre solfejos e um fraque e por favor, não cante pelo nariz, deixe Schumann em paz.



júlio cortázar
histórias de cronópios e de famas
manual de instruções
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973






09 novembro 2016

julio cortázar / instruções para dar corda ao relógio



Lá bem no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, com dois dedos na roda da corda, suavemente faça-a rodar. Um outro tempo começa, perdem as árvores as folhas, os barcos voam, como um leque enche-se o tempo de si mesmo, dele brotam o ar, a brisa da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.

Quer mais alguma coisa? Aperte-o ao pulso, deixe-o correr em liberdade. Imite-o sôfrego. O medo enferruja as rodas, tudo o que se poderia alcançar e foi esquecido vai correr as veias do relógio, grangrenando o frio sangue dos seus pequenos rubis. E lá bem no fundo está a morte se não corrermos e chegarmos antes para compreender que já não interessa nada.



júlio cortázar
histórias de cronópios e de famas
manual de instruções
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973





23 setembro 2016

julio cortázar / plano para poema



Seja em Roma a de Faustina, que o vento aguce as penas de chumbo do escriba sentado, ou em trepadeiras centenárias um dia apareça escrita esta frase convincente: Não há trepadeiras centenárias, a botânica é uma ciência, bolas para os inventores de imagens pedantes. E Marat na banheira.

Também vejo numa bandeja de prata uma perseguição a um grilo, a senhora Délia que suavemente aproxima a mão semelhante a um substantivo (o Faraó que os amaldiçoava da margem enquanto passavam a vau) quando vai apanhá-lo o grilo já se pirou para o sol ou salta para o delicado mecanismo que da flor do trigo extrai a mão seca da torrada. Senhora Délia, deixe esse grilo andar por pratos rasos. Um dia cantará com tal terrível vingança que os relógios de pêndulo se enforcarão nos seus ataúdes parados, ou a criada de quarto dará à luz um monograma vivo que correrá pela casa toda repetindo as suas iniciais como um tocador de tambor. Senhora Délia, as visitas impacientam-se porque está frio. E Marat na banheira.

Que seja por fim Buenos Aires num dia liberto e tremente, com roupas ao sol e todas as telefonias do bairro vomitando ao mesmo tempo a cotização do mercado livre de girassóis. Por um girassol sobrenatural alguém em Liniers pagou oitenta e oito pesos e o girassol teve um comportamento muito mau para o repórter Esso, um bocado por cansaço aquando da contagem das suas sementes, e também porque o seu destino ulterior não figurava no boletim de venda. Ao entardecer haverá uma concentração das forças vivas na Plaza de Mayo. As forças irão por distintas ruas até equilibrar-se na pirâmide, e então ver-se-á que vivem graças a um sistema de reflexos instalado pela municipalidade. Ninguém tem dúvidas de que o acto se cumpriu com o máximo brilhantismo, o que provocou como era de esperar extraordinária expectativa. Venderam-se os camarotes, irá o senhor cardeal, os carneiros, os presos políticos, os ferroviários, os relojoeiros, os donativos, as senhoras anafadas. E Marat na banheira.


júlio cortázar
histórias de cronópios e de famas
ocupações raras
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973



23 agosto 2016

julio cortázar / instruções para chorar



Prescindindo dos motivos, vamos ater-nos à maneira correcta de chorar ou seja, um pranto que não ingresse no escândalo, nem insulte o sorriso com paralela e torpe semelhança. Consiste o pranto médio ou corrente numa contracção geral do rosto e num som espasmódico acompanhado de lágrimas e ranho, este último no final, já que o pranto termina no momento em que uma pessoa se assoa energicamente.

Para chorar, dirija a imaginação para si mesmo, e se isto lhe for impossível por haver contraído o hábito de acreditar no mundo exterior, pense num pato coberto de formigas ou nesses golfos do estreito de Magalhães onde ninguém entra.

Quando o pranto começar, você cobrirá com decoro o rosto usando para tal ambas as mãos com as palmas viradas para dentro. As crianças chorarão com a manga do bibe a tapar a cara, e de preferência a um canto do quarto. Duração média do pranto, três minutos.


júlio cortázar
histórias de cronópios e de famas
manual de instruções
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973



17 maio 2011

julio cortázar / distribuição do tempo

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Cada vez são mais os que crêem menos
Nas coisas que preencheram as nossas vidas,
Os mais altos, os incontestáveis valores de Platão ou Goethe,
O verbo, a pomba sobre a arca da História,
A sobrevivência da obra, a descendência e as heranças.

Nem por isso caem do céu do neófito
Na ciência que expõe máquinas na lua;
Na verdade, tanto faz que o doutor Barnard
Faça transplantes do coração
Era preferível mil vezes que a felicidade de cada um
Fosse o exacto, o necessário reflexo da vida
Até que o coração insubstituível pudesse dizer simplesmente basta.

Cada vez são mais os que crêem menos
Na utilização do humanismo
Para o nirvana estereofónico
De mandarins e estetas.

Sem que isto queira significar
Que quando houver um instante de inspiração
Não se leia Rilke, Verlaine ou Platão,

Ou se escute os nítidos clarins,
Ou se vislumbre os trémulos anjos
De Angélico.





julio cortázar
trad. jorge henrique bastos
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001

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