24 fevereiro 2021

arthur rimbaud / a minha boémia

 (Devaneio)
 
 
Assim ia eu, com os punhos nos bolsos rotos;
E o meu casaco que também se tornara ideal;
A cabeça descoberta, Musa!, e a ti sempre fiel;
Ah! Com que esplêndidos amores não sonhei!
 
As minhas únicas calças tinham um enorme buraco.
– Polegarzinho sonhador, pelos caminhos desfiava
As minhas rimas. O meu albergue era a Ursa Maior.
– As minhas estrelas faziam no céu um suave frufru.
 
Ficava a ouvi-las, sentado à beira dos caminhos,
Nessas belas noites de Setembro em que sentia no rosto
Como um vinho retemperante, as gotas do orvalho;
 
Quando, rimando no meio das sombras fantásticas,
Como as cordas de uma lira, puxava os atacadores
Dos meus sapatos feridos, um pé junto do coração!
 
 
 
jean-arthur rimbaud
poesia
obra completa
trad. miguel serras pereira e joão moita
relógio d´água
2018





 

23 fevereiro 2021

paul celan / nas estrias

 
 
NAS ESTRIAS
de moeda celeste pela fenda da porta,
forças tu a palavra
fora da qual rolei,
quando meus punhos trémulos
o tecto sobre nós
quebravam – ardósia por ardósia,
sílaba a sílaba – pelo amor
de um brilho
cobre, no prato do mendigo,
la em cima.
 
 
 
 
paul celan
trad. antónio magalhães
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990






22 fevereiro 2021

konstantinos kaváfis / a mesa do lado

 
 
Terá apenas vinte anos.
E, no entanto, estou certo de que, quase os mesmos
anos antes, gozei desse mesmo corpo.
 
Não é de modo algum excitação erótica.
Há pouco tempo que entrei neste casino:
nem sequer tive tempo de beber demais.
Esse mesmo corpo gozei-o eu.
 
Se não recordo onde – não importa o ter esquecido.
 
Ah, e agora, ei-lo que está sentado na mesa do lado,
reconheço cada gesto seu – e sob a roupa
volto a ver os amados membros nus.
 
1918
 
 
 
konstantinos kaváfis
kosntantinos kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017





21 fevereiro 2021

antónio maria lisboa / rêve oublié

 
 
Neste meu hábito surpreendente de te trazer de costas
neste meu desejo irreflectido de te possuir num trampolim
nesta minha mania de te dar o que tu gostas
e depois esquecer-me irremediavelmente de ti
 
Agora na superfície da luz a procurar a sombra
agora encostado ao vidro a sonhar a terra
agora a oferecer-te um elefante com uma linda tromba
e depois matar-te e dar-te vida eterna
 
Continuar a dar tiros e modificar a posição dos astros
continuar a viver até cristalizar entre neve
continuar a contar a lenda duma princesa sueca
e depois fechar a porta para tremermos de medo
 
Contar a vida pelos dedos e perdê-los
contar um a um os teus cabelos e seguir a estrada
contar as ondas do mar e descobrir-lhes o brilho
e depois contar um a um os teus dedos de fada
 
Abrir-se a janela para entrarem estrelas
abrir-se a luz para entrarem olhos
abrir-se o tecto para cair um garfo no centro da sala
e depois ruidosa uma dentadura velha
E no CIMO disto tudo uma montanha de ouro
 
E no FIM disto tudo um Azul-de-Prata.
 
 
 
antónio maria lisboa
ossóptico e outros poemas
poesia
assírio & alvim
1995
 




20 fevereiro 2021

josé tolentino mendonça / a estrada branca

 
 
Atravessei contigo a minuciosa tarde
deste-me a tua mão, a vida parecia
difícil de estabelecer
acima do muro alto
 
folhas tremiam
ao invisível peso mais forte
 
Podia morrer por uma só dessas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas:
astros cruzam-se numa velocidade que apavora
inamovíveis glaciares por fim se deslocam
e na única forma que tem de acompanhar-te
o meu coração bate
 
 
 
 
josé tolentino mendonça
a estrada branca
assírio & alvim
2005

 





19 fevereiro 2021

manuel antónio pina / a quarta porta

 
 
É a solidão
o que o coração procura,
como poderei não
saber o que não sei?
 
Estou cada vez mais longe de qualquer coisa,
regressarei alguma vez
a tudo o que há-de vir?
O que está atrás de ti
 
é a tua imagem
que o Futuro persegue.
Este é um lado de tudo
e o outro é o mesmo e o outro.
 
 
 
 
manuel antónio pina
o que está atrás de ti
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012

 





18 fevereiro 2021

ruy belo / o portugal futuro

 
 
0 portugal  futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro
 
 
ruy belo
país possível
todos os poemas II
assírio & alvim
2004





17 fevereiro 2021

albano martins / compromisso

 
 
Pertence-te
ser homem, afirmar
todos os dias que tens
um compromisso: ser claro
e brando como a luz
e, como ela,
necessário. E não deixar
crescer à tua porta
ervas daninhas.
 
 
albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999






 

16 fevereiro 2021

amalia bautista / ondas

  
Sei que me estou a afogar, mas ao menos
consigo manter de fora a cabeça.
De modo que, por favor,
não venhas tu fazer ondas.
 
 
 
amalia bautista
estou ausente
tradução de inês dias
averno
2013







15 fevereiro 2021

claudio rodríguez / nunca será meu amigo

 
 
Nunca será meu amigo quem na Primavera
vai para o campo e esquece entre os azuis festejos
os homens que ama, e não vê o couro velho
por sob a nova pelagem, mas tu, verdadeira
 
amizade, pão celeste, tu, que no Inverno
na clara alvorada sais de casa e começas
a andar, e no nosso frio achas refúgio eterno
e na nossa seca profunda a voz das safras.
 
 
 
claudio rodríguez
sem epitáfio
trad.miguel filipe mochila
língua morta
2019





 

14 fevereiro 2021

jorge de sena / baptismo

 
 
Os mais difíceis poemas onde falo de amor
são aqueles em que o amor contempla.
 
O amor esquece ao contemplar,
esquece que não existe e encantado olha
um raio anónimo sob o vento mais leve.
 
Contempla, amor, contempla.
 
E vai criando o nome que darás ao raio.
 
 
jorge de sena
coroa da terra  (1946)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972




13 fevereiro 2021

reinaldo ferreira / que estranha, a nossa verdade!

 
 
Que estranha, a nossa verdade!
Às vezes, partida a meio,
Minha ilusória unidade,
Pensando, sinto, pensei-o.
 
Mas quando penso que o penso
Estou-o pensando também.
Na vertigem, não me venço
E recuo e vou além
 
Daquilo p’ra que há defesa.
Feliz quem pode parar
Onde a certeza é certeza
E pensar é só pensar!
 
 
reinaldo ferreira
um voo cego a nada (Livro I)
poemas
vega
1998





 

12 fevereiro 2021

paul éluard / eu falo em sonho

 
 
Nos veios da nossa cidade
Estendiam-se os homens pobres diabos
Um rosário de amores infantis
E bem comportados como cristais
 
Sobre todos os caminhos dos nossos olhos
Pavoneavam-se mulheres sagradas
Como véus de mulheres casadas
Intactos ou remendados pesados ou luzidios
 
Estou a falar em sonho e transmito
O curto instante do grande repouso
O momento em que nada é impossível
Um pouco mais de carne e mel a mais
Estar enlevado é uma forma de realidade.
 
 
 
paul éluard
últimos poemas de amor
corpo memorável 1948
trad. maria gabriela llansol
relógio d´água
2002