Exibirei a série de cores da minha imaginação como a cauda de um pavão, entregarei a minha alma a um enxame de rimas desconhecidas. Quero ainda ouvir nas colunas dos jornais rezingar aqueles que com o focinho zurzem as raízes do carvalho que os alimenta. vladimir maiakovski 33 poesias trad. adolfo luxúria canibal edições snob 2019
Agora sim preciso mais que nunca de olhar o céu. Já sem fé, sem ninguém, findo este seco meio-dia, levanto os olhos. E é a mesma verdade de antes, embora a testemunha seja outra. Riscos de uma aventura já sem lendas nem anjos, e nem sequer esse azul da minha pátria. Pagaria para sorver o ar, erguer os olhos, ver sem recompensa, aceitar uma graça que não cabendo nos sentidos dá saúde nova, alívio, ocupação. Troco pelo amor o dom, esta beleza que não mereço nem ninguém merece. Preciso hoje do céu mais que nunca. Não para me salvar, para não estar só. claudio rodríguez sem epitáfio trad.miguel filipe mochila língua morta 2019
Se ando com insónias, À noite, antes de me deitar Tomo um atlas histórico Com um pouco de água. Enquanto espero o efeito, Sigo com o dedo O império dos hititas, Mas após um momento Tenho de recomeçar. Porque, de facto, o império dos hititas É o império dos egípcios, Ah, não, o dos assírios… Dos medo-caldeus… Dos persas… Se as coisas são assim, penso, Também eu posso dormir Tranquilo.
marin sorescu simetria tradução colectiva revista, completada e apresentada por egito gonçalves poetas em mateus quetzal 1997
Oh transe dos que amo,
vivido em minha pele: sê benigno comigo. Se está em todo o fim a pegada do início, deixa-me acordada folgar com esta minha história o resto da minha morte. maria victoria atencia antologia poética el coleccionista tradução josé bento assírio & alvim 2000
De repente como uma flor violenta um homem com uma bomba à altura do peito e que chora convulsivamente um homem belo minúsculo como uma estrela cadente e que sangra como uma estátua jacente esmagada sob as asas do crepúsculo um homem com uma bomba como uma rosa na boca negra surpreendente e à espera da festa louca onde o coração lhe rebente um homem de face aguda e uma bomba cega surda muda antónio josé forte uma faca nos dentes parceria a. m. pereira 2003
Todas as coisas revêm a seu termos se mantido o começo o seu (de cada uma) pedúnculo, sinal; fiel a si só quem outrem ladeia no recreio de achá-lo só contíguo ao desejado, o longes, desfeitos assim lios, tramas (ter, ter, só do engano e não da jorna). Que, sob a mesma traça, mão que desenhe o sacro de seu nome praça de si condigna queira e laude como, à ida, e perseguindo a encoberta desavinda vinda, a pele lhe não foi raias de mortal. Onde achar paradouro do ir indo que as mesmas vascas agasalhe e cumpra? O olhar permutado, a líquida juntura não congelada porque bem fugida, o integral dum sim já denegado, o tão de si senhor que em desistir-se tento tenha e embrumado (nunca por nunca certo) vagueie um solidíssimo ficar? Conjugar montaria sem quebreiras no quadrado de cama jugulada, (a terra em trevas); amar redondo (em giração) e a eito; casal que por fendido a casa casta aberta e hoste rotornante pátria dos pés crescentes caminheiros faça. maria velho
da costa desescrita afrontamento 1972
atiras um livro à profundidade da água a incerteza desagua gostava de arrumar tudo os passos que dava um pensamento heróico de absolutos sentado naquele alpendre coberto de orvalho de onde via o mar reúnem-me os livros para quebrar os pecíolos de um quotidiano mas a solidão de um irmão não é igual à ambição de outros lembra a adolescência quando colhíamos açucenas dos naufrágios e descobríamos quando o mar retirava às dunas um navio ferrugento. enquanto guiava pelas montanhas ao lado dava-lhe substantivos. trazer até tão tarde a luz cansa. em breve chega o outono, a dobra dos lençóis, as crianças da escola, a oração dos rostos. sabes, agora, que a vida é um sonho desnecessário. também se vive no campo. os sentimentos de culpa não nos devoram as entranhas nem vão aos funerais os príncipes da igreja.
carlos saraiva pinto escrever foi um engano o correio dos navios 2001
I Neste momento um pássaro qualquer canta, explica as flores perto da margem dum rio. Nunca ouvi esse pássaro cantar nem sei onde o rio corre… Mas todas as noites no meu quarto tento aprender de cor essa melodia que não ouço – sentindo o coração pesado como um pássaro morto. josé gomes ferreira melodia 1932 poesia I portugália 1972
Não há nada aqui no cimo do vale. Céu e manhã, silêncio e o cheiro seco da pesada luz solar na pedra, por toda a parte. Cabras, ocasionalmente, e o som dos galos no vivo calor onde ele vive com a mulher morta e a pureza. Tentando ver se algo vem depois. Perguntando-se se terá estagnado. Talvez, pensa, seja como o Nó: sempre que o guião pede dança, faça
o actor o que fizer é uma dança. Se permanecer quieto, está a dançar. jack gilbert deixem-me ser ambos trad. leonor castro nunes e marcos pereira DeStrauss 2020
Na praia em Malahide o casal jovem num jogo estranho com paus e fitas, andando para a frente e para trás, para trás outra vez – sem bola à vista – está apenas a planear a casa que tenciona construir, as paredes e as entradas marcadas na areia húmida, indo de quarto imaginado para quarto sob o sol a pôr-se, a lua a nascer. pat boran o sussurro da corda trad. francisco josé craveiro de carvalho edições eufeme 2018
Encontrei no bolso do casaco que te fica mal Um lenço com manchas de suor E sangue? Um pensamento para encher a imensidão. … Chegou a chuva Subirá pelo tronco até à nuca E tudo será então absorvido. joão almeida canto skin língua morta 2019
Fins de Outubro. As uvas ainda estão nas ramadas. É preciso perder o rosto mais próximo vencê-lo como se fisgam pássaros novos e ficar preso a esse movimento. Deixar nos campos crescer a flor do aloés. joão miguel fernandes jorge à beira do mar de junho relógio d´água 2019