09 outubro 2020

leopoldo maría panero / saída de cena

 
 
Era mais romântico talvez quando
arranhava a pedra
e dizia por exemplo, cantando
da sombra para as sombras,
assombrado pelo meu próprio silêncio,
por exemplo: «há
que arar o Inverno,
e há sulcos, e homens na neve».
Hoje as aranhas fazem-me calorosos sinais desde
os cantos do meu quarto, e a luz titubeia,
e começo a duvidar que seja verdade
a imensa tragédia
da literatura.
 
 
 
leopoldo maría panero
a canção do croupier do mississípi e outros poemas
trad. jorge melícias
antígona
2019




 

08 outubro 2020

egito gonçalves / o poder da literatura

 
Eu tinha acabado de escrever
na folha ocasional
que a poesia era o lugar da ausência.
As mãos tinham partido:
cada uma teria agora a sua solidão
como travesseiro imediato.
Na escrita, o seu rosto afogado
cantava na esferográfica. Eu sonhava
a mão que pousa numa rótula
e nesse gesto hipoteca a morte.
Então abri um livro de Lezama Lima:
ele definia a poesia
como Metáfora da Ressurreição.
O sol desabotoou-se todo. Brilhava
nos recifes, abria-se nos pulmões.
As cidades ganham relevo
em estado de paixão. A voz
do vidraceiro afastava-se. Fiquei
a ouvi-la desaparecer. Nada doía.
Podia continuar a dar notícia.

 
A Coruña, 1993
 
 
 
egito gonçalves
hífen 8 janeiro
cadernos semestrais de poesia
artes poéticas
1994

 



07 outubro 2020

muhammad ‘afifi matar / o visitante nocturno

 
 
eram seus olhos verdes
um sonho que chorava no asfalto da rua
e os versículos da sua inocência
uma sede no homem enterrada
 
desatou o cavalo verde da chuva dos cravos do raio
e deslizou através das nuvens
para visitar o sonho adormecido nas camas das crianças
e alimentá-las, ou dar-lhes de beber, da fonte do verde mel.
 
seus pés bons
e seu corpo trémulo e nu
esfolavam-se nos mastros da noite.
e nos seus dorsos fundiam-se colunas de granito.
foi enterrado sobre os beirados dos tectos e das torres
crucificado, sangrando, mordido nas trevas pelos gatos.
 
o peixe negro salta na corrente do sangue
e escapa:
comboios de gente surda
trombetas que ressoam,
génios que gritam dentro duma garrafa
vozes que chamam na garganta do asfalto
 
quem, no ventre tenebroso, morreu
e quando secará o sangue?
 
 
 
muhammad ‘afifi matar
trad. adalberto alves
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001

 


06 outubro 2020

josé luis garcía martin / o assédio

 
 
Sei que firme e fugaz aguarda sempre
junto do meu coração desabitado;
sei que um mínimo gesto bastaria
para o deixar entrar e não estar só.
 
Mas eu reforço paredes, vidros, portas;
peço ajuda a filósofos antigos:
«O que nada tem nunca perde nada;
tem todas as coisas quem nada deseja.»
 
Ouço os seus passos, seu rondar contínuo;
perto da minha janela canta e ri:
«Abre um momento, abre, quero dar-te
rosas vermelhas embriagadoras.»
 
Estou pronto para resistir, pronto
para longo assédio, fome, desamparo:
«Vai-te embora, amor, deixa-me em paz;
a ventura que me trazes dá-a aos cães.»
 
 
 
josé luís garcia martin
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998



 

05 outubro 2020

ron padgett / palavras da frente

 
 
Não parecemos tão jovens
quanto parecíamos
excepto a meia-luz
especialmente no
calor suave da luz das velas
quando dizemos
com toda a sinceridade
És tão gira
e
És o meu giraço.
Imagina
duas pessoas idosas
a comportarem-se assim.
É suficiente
para te fazer feliz.
 
 
 
 
ron padgett
poemas escolhidos
trad. rosalina marshall
assírio & alvim
2018




 

04 outubro 2020

edmundo de bettencourt / relâmpago

 
 
Um agudo gemido felino
incendeia-lhe os olhos.
E ei-la que de novo se recorta
nua e fosforescente no escuro.
 
Nas trémulas narinas, de prenhez, afilando-se,
zune electricamente
a insatisfação duma semente apenas.
 
Quer mais,
quer outras!
 
Cega do consciente amor que atrai,
tumultuária noite riscada de fulgores,
sonha o inteiro fruto.
 
 
 
 
edmundo bettencourt
poemas surdos 1934-1940
poemas de edmundo de bettencourt
assírio & alvim
1999

 

03 outubro 2020

antonin artaud / renego o coração

 
 
Renego o coração
e também a morte.
 
É sempre por piedade
pelos outros
que nos deixamos meter num esquife,
que nos deixamos enfiar
 
no buraco cavo,
oco de cânfora
e de sangue avermelhado.
 
 
antonin artaud
para acabar de vez com o juízo de deus
e outros textos finais (1946-1948)
trad. pedro eiras
flop
2019




 

02 outubro 2020

luis alberto de cuenca / in illo tempore

 
 
Os teus pais tinham ido não sei onde
e a casa ficara só para nós,
como aquele convento abandonado
do poema de Jaime Gil de Biedma.
Com a música no máximo, fizeste
uma mistura explosiva num jarro
enquanto eu te tirava, docemente,
a roupa da cintura para cima.
Encheste dois copos até ao topo.
Bebemos. Veio aquele riso parvo,
e ficámos com um brilho nos olhos
que sublinhava a nossa juventude,
e então beijámo-nos como nos filmes,
e amámo-nos como nas canções.
 
Quando a realidade era o desejo
e o nosso reino não era deste mundo.
 
 
 
luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018





01 outubro 2020

herberto padilla / às vezes é necessário e obrigatório

 
 
Às vezes é necessário e obrigatório
que um homem morra por um povo,
mas jamais há-de morrer todo um povo
por um só homem.
 
Isto não o escreveu Herberto Padilla, cubano,
mas sim Salvador Espriu, catalão.
O que acontece é que Padilla sabe-o de cor,
gosta de repeti-lo,
juntou-lhe música
e agora cantam-no em coro os seus amigos.
E cantam-no a toda a hora,
tal como Malcolm Lowry toca ukelele.
 
 
 
 
herberto padilla
o universo está pintado à mão
uma antologia fanática
luís filipe parrado
língua morta
2020

 


30 setembro 2020

adam zagajewski / fim de verão

 
O comboio suburbano corria através dos desertos residenciais
como um punhal sedento do coração.
Dos altifalantes chegava a voz dum dos ditadores
e um esquilo saltava de ramo em ramo,
fugindo ao meu olhar.
Fim de Verão, as pesadas pinhas dos cedros.
uma freira num grosso hábito castanho
sorri como alguém que tivesse percebido tudo.
Na oleosa superfície do charco perseguem-se as libélulas,
os barcos navegam de esguelha e afundam-se na púrpura de um sol sonolento,
a canícula toca em cada coisa e em cada pele como um alfandegário.
O carteiro dormita no banco, da carteira em pele
derramam-se as andorinhas das cartas, no relvado derrete-se o gelado,
as toupeiras constroem morros em memória de sombrios heróis,
que ninguém vai conhecer. Árvores escuras erguem-se
sobre nós e, por entre elas, chamas verdes.
Vai-se aproximando Setembro, e a guerra, e a morte.
 
 
 
 
adam zagajewski
sombras de sombras
trad. marco bruno
tinta-da-china
2017



29 setembro 2020

ernesto sampaio / milhares de asas doloridas

 
 
Milhares de asas doloridas
de pequeninos corações a bater
de caudas alisadas por muitos vendavais
onde ainda luzia o sol
de outras latitudes
pairavam no zénite
hesitando se havia ou não
de cair sobre a terra
enquanto nas pessoas
se fundiam os gelos
derrubavam os muros
reconstruíam as quebradas pontes
do idioma e do sorriso
 
Aquele menino perdido na névoa
que ficou a acenar-nos do cais
aponta a giz na lousa:
nada não é a parte
de outra coisa
para encontrar alguém
é preciso partir
 
 
ernesto sampaio
a procura do silêncio
hiena editora
1986







28 setembro 2020

pedro tamen / que quer dizer um ano…

 
 
 
Que quer dizer um ano, ou mês?
Que a minha mão não está no teu cabelo
– nem tê-lo
é ter de vez.
 
 
 
pedro tamen
princípio de sol
circulo de leitores
1982

 







27 setembro 2020

antónio reis / poemas quotidianos

 
42
 
E nós
os conformados
que fazemos
 
compramos livros
gravatas
 
ou separados
morremos
 
 
antónio reis
poemas quotidianos
tinta da china
2017