21 março 2020

josé gomes ferreira / e se fôssemos imortais?



XXVI

(«Morte e Transfiguração» de Strauss. Deixo
de ouvir, de súbito preocupado com a minha
morte.)



E se fôssemos imortais?
– silêncio complicado com o bafo dos homens nas estrelas.

Se houvesse repartições e escrita,
mangas-de-alpaca nas pedras e nos astros,
livros de Deve e Haver especiais,
carimbos com caveiras,
horas de morte registadas,
fabricação constante de espectros
para entrarem e saírem do Abismo
misturados com as nuvens
dos alçapões do dia?

Ó Strauss sem misticismo
– que burocracia!



josé gomes ferreira
sala de concertos 1951-1952-1953, etc… pelos anos fora
poesia IV
portugália
1971






20 março 2020

nuno júdice / acalmia



O vento sopra no vazio da pele,
quando a abandona o desejo; levanta
as palavras caídas, ergue-as
até às nuvens, onde as vejo misturarem-se
com as aves embranquecidas do ocaso.

O vento deita-se nas equimoses do espírito,
abrandando a dor de quem ama sem
objecto nem eco. Ouço-o por dentro das veias
rápidas de um luxo de emoções, como
se gritasse por um tropel de troncos.

O vento morre nos braços de florestas
petrificadas, saudando um degelo de re-
soluções. Respiro o ar imóvel com um odor
de folhas calcinadas – como se pisasse o teu
corpo, terra lívida do meu abraço.




nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997





19 março 2020

vasco graça moura / do tempo que passa



nós que vivemos graves junto da madeira
velha de nossas casas mastigando
alguns talos de couve mal cozida
e pano de lençol com dentes já usados

nós que transcrevemos as manchas e rasgamos
rascunhos muito antigos e alguns novos projectos
recuperando móveis e faianças
e todas as maçãs onde habitámos

nós que temos cimento ferramentas greves
e um pouco de corelli e um sistema
respiratório e caracteres de imprensa
e um plano geral de arruamentos

e que temos livros e que estamos vivos
podemos construir alguma coisa




vasco graça moura
noite
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007






18 março 2020

emily dickinson / está morta a palavra



Está morta a palavra,
Dizem alguns,
Mal é proferida.

Eu digo que só
Então nesse dia
Ela começa a vida.




emily dickinson
duzentos poemas
trad. ana luísa amaral
relógio d´água
2014








17 março 2020

eugéne guillevic / carnac (fragmentos)



5

SEJAMOS justos: sem ti
De que nos servia o espaço
E as rochas de que serviam?



guillevic
poesias de guillevic
tradução de david mourão-ferreira
editora ulisseia
1965










16 março 2020

ezra pound / soirée


Ao ser informado de que a mãe escrevia versos,
E de que o pai escrevia versos,
E de que o filho mais novo trabalhava numa editora,
E que o amigo da filha segunda estava escrevendo um
                                                                     [romance
O jovem peregrino americano
Exclamou:
                «Éta penca de gente sabida!»



ezra pound
antologia poética
personae
tradução m. faustino
editora ulisseia
1960








15 março 2020

luís vaz de camões / com que voz



Com que voz chorarei meu triste fado,
que em tão dura prisão me sepultou,
que mor não seja a dor que me deixou
o tempo, de meu bem desenganado?

Mas chorar não se estima neste estado,
onde suspirar nunca aproveitou;
triste quero viver, pois se mudou
em tristeza a alegria do passado.

Assi a vida passo descontente,
ao som nesta prisão do grilhão duro
que lastima o pé que o sofre e sente!

De tanto mal a causa é amor puro,
devido a quem de mi tenho ausente
por quem a vida, e bens dela, aventuro.


luís vaz de camões
sonetos






14 março 2020

manuel resende / diário de hannah arendt



A filósofa Hannah Arendt
Está a descascar cebolas na cozinha.
Pergunta: “Sabes dizer-me
O horário dos correios?”

E a amiga:
“Tu estás apaixonada…”


manuel resende
poesia reunida
edições cotovia
2018









13 março 2020

fiama hasse pais brandão / toda a literatura está não lida



Toda a literatura está não lida.
Toda a literatura foi traída.
E, além de sua natureza sempre nula,
no futuro mais será perdida.

Também o papel, que hoje
em belíssimas folhas se folheia,
entre os dedos humanos,
será roído um dia.

Outra matéria nova e, por momentos,
não vã há-de captar as vozes
dos poetas bardos, de ouvidos
mais atentos aos sons sonoros.

Assim os meus versos são o meu pó
na poeira dos livros já delidos.



fiama hasse pais brandão
hífen 8 janeiro 1994
cadernos semestrais de poesia
artes poéticas
1994





12 março 2020

daniel francoy / a lucidez de sancho pança



Ainda hoje, ao encontrar um inimigo
de outrora, abominável assassino,
cumprimentei-o alegremente:
olá, moinho de vento! Reconheço
agora a tua verdadeira natureza
e não te enfrento porque já não carrego
as armas e as loucuras de um velho.
Funciona sempre, amigo, sê
o que verdadeiramente és: moinho
do amanhã, o que transforma a água
em fogo, o que torna leves e aprazíveis
estes nossos ares pestilentos.



daniel francoy
identidade
editora urutau
2016






11 março 2020

rui caeiro / alheios à catástrofe geral



Alheios à catástrofe geral
e ao frio que faz
despimo-nos
colocamos na banca de cabeceira
o relógio a pulseira os brincos
e o mal de viver

Enquanto lá fora pela cidade
os outros (à   sua   maneira   também
alheios)
almoçam riem conversam
nós percorremos devagar as áleas
de um jardim


rui caeiro
o quarto azul e outros poemas
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019






10 março 2020

ana hatherly / 463 tisanas



97

Era uma vez um país onde a morte produzia um som igual ao do vidro que se parte. O céu parecia de papel de embrulho mas os animais eram todos de vidro, especialmente os insectos. Havia mesmo uma grande árvore totalmente habitada por uma espécie de libélulas de vidro azul-escuro. Quando algum animal morria o chão ficava todo cheio de vidros partidos, o que na época dos grandes desastres tornava os caminhos realmente intransitáveis. Os caçadores percorriam os montes munidos de orelhas de prata.


ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006







09 março 2020

mário cláudio / svyatoslav richter



Da infância viera a corrida do alce,
          o ouvido atento ao pólen
          dos lírios.

Por entre os dedos a areia te corria,
          à transparente garganta da
          ampulheta.

Diante da morte ficaste, limpo de
          lodo e de nuvens.



mário cláudio
programa de apresentação da hífen 10
pequeno auditório rivoli teatro municipal
25 de outubro de 1997