10 agosto 2019

joão almeida / e o verão passou




não me afasto para dentro de nenhum abrigo
as palavras são estas no nevoeiro

pela estrada plana

paro à porta de alguém provável
e avanço de novo
sem mais ninguém



joão almeida
canto skin
língua morta
2019







09 agosto 2019

agustina bessa-luís / verão



Havia diante de nós três meses compridos, sem praia e sem mudanças. O calor varava a ramada sobre o pátio, e o banco de jardim que lá estava só lhe faltava crepitar e arder. Acho que era por se dar ao respeito, como banco e não madeiro velho, que ele não se punha a fumegar. Vinha da mina uma água fria e saborosa, e ela só alegrava a mesa de Verão; o seu gorgolejar na treva de xisto da mina dava uma impressão de calma e abundância.



agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008








08 agosto 2019

maria gabriela llansol / o raio sobre o lápis





XVIII

porque
todo o lugar é o limiar do mundo, janela de sacada que dá para a obra da paisagem; entre mim e ela há ainda uma mesa redonda – vermelha – , e duas cadeiras de jardim;          o meu universo preferido, Aramis, é a certeza da paisagem para além do limiar, e o mergulho ocular em certas cores trazidas da matéria: o castanho – da madeira; o vermelho – do ferro; o verde – das plantas;
o rosa – de uma emoção forte de suavidade.
São as cores em que a composição me é quase espontânea, juntas à sombra, constituem a                            visão.


       O azul excluído, é a cor única da nossa Comunicação final______________________ já sem caminho.



maria gabriela llansol
julião sarmento
o raio sobre o lápis
livro de artistas
europalia 91
1991







07 agosto 2019

mário-henrique leiria / claridade dada pelo tempo



X

qualquer outra vida
não esta
qualquer outra existência
não a que nos querem dar
que pela força de sermos nela
sabemos errada
o voo das aves
é em si muito mais
do que o que parece
nós próprios estamos aqui
não para o que nos dizem
mas sim     sim
para seguirmos o nosso caminho
caminho que nos foi dado
oferecido
há muitos séculos já
quando ainda sabíamos da vida
quando ainda o nosso corpo
era o nosso corpo
arco vibrante a ligar-nos com
o desconhecido
nós somos da montanha gelada
do lugar esquecido
raiva e maldição
e também amor exaustivo
agora     logo     sempre
a recusa é nossa     só nossa
mas também nosso
é     será sempre
o encontro dos corpos que temos
já antigos     muito belos
um dia

          julho – 1950




mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018






06 agosto 2019

rui diniz / os anos de transição – uma canção de exílio



Em Paris vi as raparigas escuras, por entre
a neve, respirando a solidão,
nas esquinas ásperas das tardes, descendo
nos passeios, procurando talvez os amigos
desaparecidos. Estava sentado nos cafés, a
escrever um romance sobre um grupo de pessoas,
muito jovens, que se reunia nos cafés para
estudar e vadiava e bebia, a maior parte do tempo,
e também às vezes alguém se apaixonava
por alguém de uma maneira terrível e se
preocupava durante dias e às vezes meses seguidos
com isso. Eu próprio, de vez em quando,
parava de escrever e bebia um bocado
de pernod que encomendara.
De certo modo, as minhas recordações eram assim,
com pessoas a amarem-se secretamente, nos cafés,
enquanto conversavam sobre a opressão e os meios
de revolucionar os dias e as tardes, rindo nervosa-
mente, bebendo bagaços ou mesmo «moscas».
E as raparigas que entravam nos cafés e se sentavam
para tomar cafés e começavam a ler um livro
tirando os óculos escuros, eram as mesmas que
eu conhecera e talvez amara em Lisboa, os mesmos
rostos tristes, quase sem palavras, onde uma
alucinação milenária brilhava, em certos instantes, tão
terrivelmente.
Em Paris vi o inverno dilatar-me roxas olheiras
e aumentar-me a fome e não fui capaz de
escrever o romance porque o meu vocabulário
sempre tinha sido muito restrito e afinal eu
nunca soubera escrever na minha vida.
Uma tarde de Dezembro, no café Versailles,
tomei um whiskey com soda e conversei com
o criado sobre o vício em que todos os exilados
como eu ali se afundavam, e vi-o concordar
e várias vezes sorrir-me com uma quase piedade,
e nessa altura paguei, levantei-me, e pensei pelo
caminho muito seriamente se voltaria a
frequentar aquele café.



rui diniz
ossuário
(ou: a vida de james whistler)
& etc
1977







05 agosto 2019

josé gomes ferreira / enterrava-se a noite



                (Skerzo)


VIII

Enterrava-se a noite
e às vezes também os astros
na alegria das férias
– para dar destinos azuis
às raízes dos cardos
cheias de estrelas
estéreis.


josé gomes ferreira
poesia V
memória – II 1959
portugália
1973






04 agosto 2019

antónio franco alexandre / corto viaggio sentimentale, capriccio italiano



2

no intervalo tu
lês Gramsci sobre Machiavelli
por pura inactualidade
“pur senza rinunziarci completamente”.
O rosto azul, os ombros luminosos,
as pupilas e mãos de ervas daninhas,
já não desejo a imagem do teu corpo,
já não preciso de perfil.



antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999






03 agosto 2019

luís filipe parrado / uma lição antes de morrer




Na esplanada vazia, para além de mim,
há só uma rapariga de blusa azul
e cabelo tomado pelo sol.
Bebe um sumo de cor vermelha
e lê um livro de capa vincada e escura.
É pouco? Há também esta luz
que não existe, que já passou, que não volta mais.


luís filipe parrado
entre a carne e o osso
língua morta
2019


02 agosto 2019

manuel antónio pina / a ferida




Real, real, porque me abandonaste?
E, no entanto, às vezes bem preciso
de entregar nas tuas mãos o meu espírito
e que, por um momento, baste

que seja feita a tua vontade
para tudo de novo ter sentido,
não digo a vida, mas ao menos o vivido,
nomes e coisas, livre arbítrio, causalidade.

Oh, juntar os pedaços de todos os livros
e desimaginar o mundo, descriá-lo,
amarrado ao mastro mais altivo
do passado! Mas onde encontrar um passado?



manuel antónio pina
os livros (2003)
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012






01 agosto 2019

luís miguel nava / a bem dizer



O céu desembaraça-se do sangue, espalha-nos
agora a solidão ervas nos rostos.

O mar vai pelos ares.
Não há, a bem dizer, forma
nenhuma de o coser com a esperança.


luís miguel nava
como alguém disse
desenhos de manuel cargaleiro
contexto editora
1982










31 julho 2019

wislawa szymborska / regressos




Voltou. Não disse nada.
Mas era claro que tivera algum azar.
Deitou-se vestido.
Pôs a cabeça debaixo do cobertor.
As pernas encolhidas.
Anda pelos quarenta mas não neste momento.
Está mas apenas tanto quanto no ventre da mãe,
para lá de sete peles, na protecção do escuro.
Amanhã dará uma conferência sobre homeostase
na cosmo náutica metagaláctica.
Por agora, enrolou-se, adormeceu.


wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998






30 julho 2019

egito gonçalves / como se mantém



Como se mantém
este deserto?

Praças sem vida,
sombras nos passeios,
estores corridos
nas janelas…

Poderiam só palavras
convencer,
abrir varandas,
pálpebras,
descerrar os dentes?

Existe algum segredo
neste magma
capaz de o erguer à dor
de um coração?


egito gonçalves
o fósforo na palha
1970




29 julho 2019

manuel de castro / paralelo w




Largos largos largos LARGOS HORIZONTES         
– não te recordarei. Há um país fatal,
existe uma zona de aventura, um segredo

O amor possui o tempo – Ignora
que já não há velas nem os capitães
são agora donos de seus barcos.
Tudo nos transporta participa
do nosso imparável movimento.

Ignora

que os ancoradouros são para os navios
mas os navios partem
e por vezes não regressam

Todos os meus amigos são rosas brancas
todo o meu amor é ave lenta

No entanto

prefiro-me veneziano rápido
oferecendo anéis aos mendigos
vestir-me de rubro e negro para ti
ao som dos clarins
fluir viagem de flores súplice de perigo

os navios partem
por vezes não regressam e todavia
eis O SUL – uma palavra, um gesto
um lugar, um anel
– rápido som de clarim
Viagem de Flores
Perigo

este é o tempo em que morrem os Príncipes
ao sol posto num final sereno
e se iniciam os ritos bárbaros
da Grande Velocidade
manchas no céu da noite
quebram e reúnem seus corpos
em cósmicos espelhos
enquanto um mágico aceno de fluor
descreve a partida das nossas frotas
na imensidão azul escura
cristalizando no oculto um sentido
para a vida e a morte
concretizando o movimento dos nossos músculos
– um brilho que cheira a limo e sal.

Sobre os cadáveres assim incorruptíveis
dos velhos príncipes desagregados no mar
passam os navios
e a geração angélica e terrível
talha o seu destino sobre-humano
onde a noite vais expulsar os astros
iniciar-se, e ter um nome diferente.



manuel de castro
paralelo w
1958