Era por aí que se devia ter começado: o céu.
janela sem parapeito, sem caixilho, sem vidros.
A abertura e nada para além dela,
de par em par aberta todavia.
Não tenho que esperar uma noite calma
nem de levantar a cabeça
para olhar o céu.
O céu tenho-o à mão,
atrás de mim, nas minhas pálpebras.
Hermeticamente o céu me envolve
e me levanta do chão.
Nem mesmo os mais altos cumes
ficam mais perto do céu
que os vales profundos.
Em lugar algum ele existe mais
que nalgum outro.
E em rigor tão coberta de céu está a nuvem
como o túmulo.
Tão do céu é a toupeira
como a coruja de asas lestas.
E coisa que caia em precipício
cai do céu para o céu.
Soltos, fluidos, rochosos,
coruscantes e etéreos
abas de céu, sobras de céu,
sopros de céu e medas.
O céu é omnipresente
até nas escuridões sob a pele.
Eu como o céu, expulso o céu.
Eu sou armadilha na armadilha,
o habitante habitado,
o possuído da posse,
pergunta em resposta a uma pergunta.
Dividir em terra e céu
não é a maneira certa
de pensar nesta unidade.
Permite-me apenas viver
em morada mais exacta,
mais rápida de encontrar
se eu fosse procurada.
Os meus sinais particulares
são o fascínio e o desespero.
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998