18 novembro 2018

alberto caeiro / quando tornar a vir a primavera





Quando tornar a vir a Primavera
Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
Mas a Primavera nem sequer é uma coisa:
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes.
Há novas flores, novas folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.

7-11-1915




alberto caeiro
poemas inconjuntos
poemas de alberto caeiro, fernando pessoa
àtica
1946








17 novembro 2018

albano martins / desta varanda, o mar




Para ser mastro de navio
precisas, primeiro,
de ser árvore

*

Para ser mástil de navio
necessitas, primeiro,
ser árbol.




albano martins
desta varanda, o mar
tradução para castelhano de
alfredo pérez alencart
edições simplesmente
2014







16 novembro 2018

elio pecora / o limite




Ficar aqui, nas estações que mudam,
é a norma comum: o dom extremo e a saída.
A quem galgou o limiar não é dado voltar:
talvez tão só no sonho digam palavras soltas
demasiado parecidas com estas dos nossos percursos.
E seguimos absortos, às vezes surpresos,
cada espera é um jogo,
cada dúvida o encalhar de uma deriva,
e damos números aos dias,
pés aos desejos,
confins ao vaguear
– desprovidos de mapas, desconhecendo o porto.



elio pecora
poemas escolhidos
novos poemas (inéditos)
tradução de simoneta neto
quasi
2008










15 novembro 2018

manuel bandeira / mar bravo



Mar que ouvi sempre cantar murmúrios
Na doce queixa das elegias,
Como se fosses, nas tardes frias
De tons purpúreos,
A voz de minhas melancolias:

Com que delícia neste infortúnio,
Com que selvagem, profundo gozo,
Hoje te vejo bater raivoso,
Na maré-cheia de novilúnio,
Mar rumoroso!

Com que amargura mordes a areia,
Cuspindo a baba da acre salsugem,
No torvelinho de ondas que rugem
Na maré-cheia,
Mar de sargaços e de amarugem!

As minhas cóleras homicidas,
Meus velhos ódios de iconoclasta,
Quedam-se absortos diante da vasta,
Pérfida vaga que tudo arrasta,
Mar que intimidas!

Em tuas ondas precipitadas,
Onde flamejam lampejos ruivos,
Gemem sereias despedaçadas,
Em longos uivos
Multiplicados pelas quebradas.

Mar que arremetes, mas que não cansas,
Mar de blasfêmias e de vinganças,
Como te invejo! Dentro em meu peito
Eu trago um pântano insatisfeito
De corrompidas desesperanças!…

1913


manuel bandeira
antologia poética
editora nova fronteira
2001







14 novembro 2018

alberto pimenta / chegou o inverno




chegou o inverno

aves que fogem
de que fogem

nas colinas pedregosas

casas que ficam
até quando ficam

abarrotam os celeiros

nuvens que vão
donde vêm

os campos esperam

árvores que crescem
por que não chegam nunca

apressa-se

rio que corre
por que não pára

e isto

que vem nos meus olhos
por que não vem comigo

e aquilo
que vem comigo
por que não vem nos meus olhos




alberto pimenta
poesia do mundo/2
afrontamento
1998








13 novembro 2018

manuel gusmão / o chão da história move-se




3

     o chão da história move-se; repentinamente abre fendas, e então melhor se ouve o motor que trabalha, - é uma espécie de mar.
     as coisas resvalam, a fauna e a flora desse mar rolam pelas suas idades, estremecem, uivam, precipitam-se em frente.
     espera um pouco, - ouve, dentro dos pulmões do mar, alveoladas entre os limos e os peixes mais quietos, as ovas pantanosas destas branquíssimas borboletas que zumbem no teu amor a vertigem e a ameaça.
     até pode ser que a doença cresça e magoe.
     por um momento tu inclinas-te e lavas, nessas águas que ardem, «o focinho lavado em sangue».
     Mas aprendes ou não aprendes que em algum momento no futuro, no futuro!, te agitas na alegria?

(dedicatória)



manuel gusmão
dois sóis, a rosa
a mesa (d)o mar (1979)
caminho
1990






12 novembro 2018

ron padgett / o poeta enquanto pássaro imortal




Um segundo atrás o meu coração deixou de bater
e eu pensei: «Seria uma péssima altura
para ter um ataque cardíaco e morrer,
a meio de um poemas», então reconfortou-me
a ideia de que nunca soube de ninguém
que morresse a meio da escrita de um poema,
assim como os pássaros nunca morrem a meio do voo.
Acho.



ron padgett
poemas escolhidos
trad. rosalina marshall
assírio & alvim
2018









11 novembro 2018

bernardo soares / com um charuto caro e os olhos fechados é ser rico.




Com um charuto caro e os olhos fechados é ser rico.

Como quem visita um lugar onde passou a juventude, consigo, com um cigarro barato, regressar inteiro ao lugar da minha vida em que era meu uso fumá-lo. E através do sabor leve do fumo todo o passado revive-me.

Outras vezes será um certo doce. Um simples bombom de chocolate escangalha-me às vezes os nervos com o excesso de recordações que os estremece. A infância! E entre os meus dentes que se cravam na massa escura e macia, trinco e gosto as minhas humildes felicidades de companheiro alegre do soldado de chumbo, de cavaleiro congruente com a cana casual meu cavalo. Sobem-me as lágrimas aos olhos e junto com o sabor do chocolate mistura-se ao meu sabor a minha felicidade passada, a minha infância ida e pertenço voluptuosamente à suavidade da minha dor.

Nem por simples é menos solene este meu ritual do paladar.

Mas é o fumo do cigarro o que mais espiritualmente me reconstrui momentos passados. Ele apenas roça a minha consciência de ter paladar. Por isso mais [...] me evoca as horas que morri, mais longínquas as faz presentes, mais nevoentas quando me envolvem, mais etéreas quando as corporizo. Um cigarro mentolado, um charuto barato toldam de suavidade alguns meus momentos. Com que subtil plausibilidade de sabor-aroma reergo os cenários mortos e empresto outra vez as [...] de um passado, tão século dezoito sempre pelo afastamento malicioso e cansado, tão medievais sempre pelo inevitavelmente perdido.

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982









10 novembro 2018

diogo costa leal / voz alta




*
no quadro vivo desta ideia-viva com o sonho vivo
do teu nome ao centro
há uma criança a dançar space rock com luvas de fogão nos pés
e um pulmão de sol ventilado por árvores
e um beijo terno na testa das cobras
e óculos com hastes de rosas e lentes de fruta
e um baloiço de esponja sentado
por um cérebro que sorri enxaguado
brilhante e empurrado
por dedos de ninho
de um deus-cantado;
isto e
como disse, ao centro
um Lázaro gestual das memórias mais felizes
a abrir o fogão dourado nos relógios das raízes
prestes a servir novo banquete de infância
para a criança que dança, porque dança
num espaço em branco, teu por direito de quanto
e teu por dever de espanto e balança
para que o reconstruas com o corrimão
do teu próprio entretanto de quadro
no interno milagre de esquadro nas pontes do amor
para testemunho das fortunas
de flora fauna e faúlhas
em galáxia de celebração
nos raros arquipélagos
da solidão.



diogo costa leal
voz alta
editora urutau
2018











09 novembro 2018

andré domingues / estudo para um beijo




Era o fim do sonho europeu.
Como um animal preso numa linha férrea
eu queria que a figura da morte fosse dita
que te atravessasse a parte plena das artérias
e que algo amanhecesse ao mesmo tempo
como amanhece um pavor alegremente

dos lábios, da terra, dos espaços em branco
do interdito e da flor insólita das penínsulas
eu queria poder voltar a unir os continentes
neste poema.

E deixar os rios apenas a pairar
no fogo das florestas
como alguns sorrisos para
no momento de existir.



andré domingues
nervo/2
colectivo de poesia
janeiro/abril 2018










08 novembro 2018

henri michaux / nós dois ainda




Música do fogo, tu não soubeste tocar.
Lançaste sobre a minha casa um pano negro. O que é este opaco em toda a parte? É o opaco que tapou o meu céu. O que é este silêncio em toda a parte? É o silêncio que calou o meu canto.



henri michaux 
moriturus e outros textos
tradução de rui caeiro
língua morta
2018












07 novembro 2018

manuel altolaguirre / separação




Levo em mim a solidão,
torre de cegas janelas.

Quando meus braços estendo
abro suas portas de entrada
e dou caminho macio
a quem quiser visitá-la.

Pintou a lembrança os quadros
que enfeitam as suas salas.
Minhas venturas de outrora
com a dor de hoje ali contrastam.

Que juntos os dois estávamos!
Quem o corpo? Quem a alma?
Nossa última despedida,
que morte foi tão amarga!

Dentro de mim levo agora
a solidão alta e delgada




manuel altolaguirre
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985









06 novembro 2018

jorge luís borges / a chuva




Está de súbito o dia clareado
Porque já cai a chuva minuciosa.
Cai ou caiu. A chuva é uma coisa
Que sem dúvida ocorre no passado.

Quem a ouve cair vê recuperado
Esse tempo em que a sorte venturosa
Lhe revelou uma flor chamada rosa
E a curiosa cor do encarnado.

Esta chuva que vai cegando os vidros
Alegrará em arredores perdidos
As uvas de uma parra em certo horto

Ou pátio já esquecido. Esta molhada
Tarde me traz a voz, voz desejada
Do meu pai que regressa e não está morto.



jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o fazedor (1960)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998