Com um charuto caro e os olhos fechados é ser rico.
Como quem visita um lugar onde passou a juventude,
consigo, com um cigarro barato, regressar inteiro ao lugar da minha vida em que
era meu uso fumá-lo. E através do sabor leve do fumo todo o passado revive-me.
Outras vezes será um certo doce. Um simples bombom
de chocolate escangalha-me às vezes os nervos com o excesso de recordações que
os estremece. A infância! E entre os meus dentes que se cravam na massa escura
e macia, trinco e gosto as minhas humildes felicidades de companheiro alegre do
soldado de chumbo, de cavaleiro congruente com a cana casual meu cavalo.
Sobem-me as lágrimas aos olhos e junto com o sabor do chocolate mistura-se ao
meu sabor a minha felicidade passada, a minha infância ida e pertenço
voluptuosamente à suavidade da minha dor.
Nem por simples é menos solene este meu ritual do
paladar.
Mas é o fumo do cigarro o que mais espiritualmente
me reconstrui momentos passados. Ele apenas roça a minha consciência de ter
paladar. Por isso mais [...] me evoca as horas que morri, mais longínquas as
faz presentes, mais nevoentas quando me envolvem, mais etéreas quando as
corporizo. Um cigarro mentolado, um charuto barato toldam de suavidade alguns
meus momentos. Com que subtil plausibilidade de sabor-aroma reergo os cenários
mortos e empresto outra vez as [...] de um passado, tão século dezoito sempre
pelo afastamento malicioso e cansado, tão medievais sempre pelo inevitavelmente
perdido.
s.d.
fernando
pessoa
livro do
desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982
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