04 novembro 2018

álvaro de campos / eu cantarei,





                I

Eu cantarei,
Quando a manhã abrir as portas do meu esforço,
Eu cantarei,
Quando o alto-dia me fizer fechar os olhos,
Eu cantarei,
Quando o crepúsculo limar as arestas,
Eu cantarei,
Quando a noite entrar como a Imperatriz vencida
Eu cantarei a Tua Glória e o meu desígnio.
Eu cantarei
E nas estradas ladeadas por abetos,
Nas áleas dos jardins emaranhados,
Nas esquinas das ruas, nos pátios
Das casas-de-guarda,
A Tua Vitória entrará como um som de clarim
E o meu Desígnio espera-la-á sem segundo pensamento.


                II

Perto da minha porta
Onde brincam as crianças dos outros,
Rompe um canto infantil, disciplinado e cómodo,
E eu sou a quinta criança ali, se houver só quatro,
E ninguém me abandonar embora eu não esteja lá
Canto também, dormindo transparente e calado.


s.d.


álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993







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