15 setembro 2018

inês lourenço / miramar




Acender um cigarro na praia, proteger
o difícil estertor da pequena chama. Anular
o vento na manga do teu casaco. Reter
preso entre os dedos o princípio breve
dessa efémera combustão.



inês lourenço
o segundo olhar
companhia das ilhas
2015












14 setembro 2018

judite canha fernandes / férias é







perceber que quando o sol se tapa o mar escurece

ter tempo

ver as sombras no tecto, a efervescência das palavras,
as árvores a tentar respirar contra o vento, coitadas
fazer festas aos cucos, namoriscar os pássaros,
ter ideias boas.
fazer testes ao vácuo,
observar a consistência da alegria,
escrever palavras ao acaso.
mergulhar.
processar as dores, a estupefacção com a crueldade e a ganância,
perceber apenas o medo, apenas.

observar calada a tua alegria de flor pelas vitórias inacabadas.

ver filmes a meio do dia com uma manta nas pernas
comer porcarias e chocolates
não sentir culpa nenhuma.

andar.

deixar o mundo andar sem olhar para ele
(ele anda sozinho)

olhar para o que não se vê
não ter raiva do inverno nem da chuva,
saber que a utopia anda às elipses como boa tartaruga.
dar beijos à luta para não esquecer o sabor que ela tem,
dançar.
não usar vendas no cérebro ou no coração,
não dizer “sim, mas…”.

perder-se no meio de um livro para encontrar outro
deixar para amanhã o que se pode fazer hoje.

escrever com as mãos geladas nas esplanadas
não ter medo que as esplanadas voem,
ou de lavar o caderno nas lágrimas.

pensar, escrever cartas, não pensar.

perceber que o vento assobia no pescoço antes de entrar nas
nas orelhas,
que se pode chorar de prazer quando se ri,
qual o tamanho do ecrã na casa.

dizer adeus e ficar dentro das pessoas.
falar com quem se gosta sem ver.
dançar com a música em mute.
deitar-se devagarinho.

férias, meu amor, é bom.




judite canha fernandes
o mais dofícil do capitalismo
é encontrar o sítio onde pôr as bombas
editora urutau
2018






13 setembro 2018

mário-henrique leiria / claridade dada pelo tempo




9

quando ferem alguém
é a mim     só a mim que ferem
é na minha carne
que todos os golpes se encontram
não quero
não posso com este constante sangrar
separem-me dos outros
separem a minha carne
da carne de todos
deixem-me o sangue
a correr
ser só o meu sangue
e nada mais


mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018








12 setembro 2018

maria gabriela llansol / o raio sobre o lápis



V

a conclusão de que não há abismo, e que a infância não pára de desenvolver-se e
e crescer,
é um novo princípio de realidade, de morte, de velhice:
eu não deixo de viver no mundo interior e exterior das metamorfoses flutuantes;
é já dia, mas a noite que conduz a esperança no pensamento, e sobre si própria,
não acabou.
                Não acabou definitivamente;
                onde estará, protegendo-se da luz, o sapo que brilha?
                Eu tenho a intuição, Aramis, de que os monstros
são as tentativas mais puras do Universo.
“Olha-os, e não os mates.”



maria gabriela llansol
o raio sobre o lápis
livro de artistas
europalia 91
1991







11 setembro 2018

agustina bessa-luís / aforismos




*
Na consciência dessa presença alheia, única e permanente mesmo que seja pelo espaço de um momento breve, está o amor.

*
Ninguém se orgulhe de despertar amor. Ele é um efeito de sombras, de entendimentos com o passado de que nem sequer somos testemunhas.

*
O amor não é uma temperatura, é todo o fundamento duma cultura. É uma forma de impertinência sagrada, um repudiar de todas as crenças que envolvem a destruição desse segredo imenso que é o ser humano.





agustina bessa-luís
aforismos
guimarães editores
1988






10 setembro 2018

daniel faria / estranho é o sono que não te devolve





Estranho é o sono que não te devolve.
Como é estrangeiro o sossego
De quem não espera recado.
Essa sombra como é a alma
De quem já só por dentro se ilumina
E surpreende
E por fora é
Apenas peso de ser tarde. Como é
Amargo não poder guardar-te
Em chão mais próximo do coração.



daniel faria
explicação das árvores e de outros animais
fundação manuel leão
1998








09 setembro 2018

fernando echevarría / domingo




Ficou-lhe a paz. Do tempo
em que, movido o olhar à santidade,
parávamos no campo vendo
correr a água e adubar-se o caule
que abrirá sua roda de sustento
à fadiga do homem, que uma coroa de aves
reconhece no ar, de estar aberto
à cálida saúde da passagem.
Depois da missa, pelo domingo adentro,
crescia essa saudade
fresquíssima de estarmos tão atentos
à tarefa que, sem nós, a tarde
cumpre na terra. E mesmo ao pensamento
que amadurece nas árvores,
tocadas de longe, no estremecimento
que se enreda por nós e em nós se abre.
Ficou-lhe a paz. O doce movimento
que nos inclina para a primeira idade.




fernando echevarría 
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001







08 setembro 2018

antónio osório / amo os loucos




Amo os loucos,
crianças tagarelando
que descobrem, instante
a instante, o mundo
e tudo enovelam
à sua translúcida maneira.

Não possuem maldade,
mas ignorado amor
e incapaz poesia.



antónio osório
o lugar do amor
a boca junta
gota de água
1981









07 setembro 2018

ana hatherly / o regresso




I

O termo que eu temo
Em mim estremece.
Não é o que passa
Nem aquilo que esquece
Que o meu ser receia
É antes
Essa dor contínua
Que de si mesma se torna cadeia.
Se alguma dor existe
Que o termo não atinja,
Não existe porém termo algum
Que a própria dor não finja:
Sentes? Mentes.
Sabes? Não vês.
Quando descobres, passaste
Quando interpretas
Esqueces.


II

A senda que eu sigo
É a meta que atinjo.
Partindo, regresso
E regresso avançando.
Temendo é que eu venço.

Chorando, me alegro
E sofrendo, embeleço
Entendendo a ordem
Oculta e evidente:
Ou amo e morro
Ou vivo e não amo.


III

As lágrimas que dos meus olhos caem
São o teu pranto em mim realizado.
As tuas penas em mim se vivificam
E o teu sofrer em mim encontra forma.
O teu silêncio é a minha voz mais funda,
O teu querer, a minha esperança intensa,
De sorte que não existe morte
Tua que a mim me não pertença.
E a solidão que de alma a alma aumenta
O anseio do encontro antigo,
É a inarmonia que vive
Da diferença que a desunião gera.
Reúne-te comigo no meu chamamento,
Reúne-te comigo ao que nos demora,
E levemos connosco o fim desta espera!



ana hatherly
poesia
1958-1978
moraes editores
1980









06 setembro 2018

jorge luís borges / poema




ANVERSO

Dormias. Eu acordo-te.
A manhã imensa oferece-nos a ilusão de um princípio.
Esqueceras-te de Virgílio. Aqui estão os hexâmetros.
Trago-te muitas coisas.
As quatro raízes dos Gregos: a terra, a água, o fogo, o ar.
Um só nome de mulher.
A amizade da lua.
As claras cores do atlas.
O esquecimento, que purifica.
A memória que escolhe e redescobre.
O hábito, que nos ajuda a sentir que somos imortais.
A esfera e as agulhas que dividem o intangível tempo.
A fragrância do sândalo.
As dúvidas a que chamamos, não sem alguma vaidade, metafísica.
A curva do bastão que a tua mão aguarda.
 O sabor das uvas e do mel.


REVERSO

Recordar quem dorme
é um acto vulgar e quotidiano
que poderia fazer-nos tremer.
Recordar quem dorme
é impor ao outro a interminável
prisão do universo
do seu tempo sem ocaso nem aurora.
É revelar-lhe que é alguém ou algo
que está sujeito a um nome que o expõe
e a um acervo de ontens.
É inquietar a sua eternidade.
É carrega-lo de séculos e estrelas.
É devolver ao tempo um outro Lázaro
carregado de memória.
É desonrar a água do Letes.




jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
a cifra (1981)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998










05 setembro 2018

anna akhmatova / a criação




Acontece deste modo: uma certa languidez;
No ouvido não se calam as pancadas dos relógios;
Ao longe diminui o estrondo do trovão.
E vislumbram-se queixas e gemidos
De aprisionadas vozes que não se reconhecem.
Um certo círculo secreto estreita-se,
Mas nesse abismo de badaladas e murmúrios
Levanta-se um som que tudo venceu.
É tal o silêncio irreparável em seu redor
Que se escuta como no bosque cresce a erva,
Como anda pela terra o mal com um alforge…
Mas as palavras começaram já a ouvir-se
E das rimas leves os tinidos de sinalização,  
É quando eu começo a compreender,
E de modo simples as linhas ditadas
Deitam-se no caderno branco de neve.

5 de Novembro de 1936



anna akhmatova
poemas
trad. joaquim manuel magalhães e
vadim dmitriev
relógio d´água
2003







04 setembro 2018

fiama hasse pais brandão / do mar




Aqueles de um país costeiro, há séculos,
contêm no tórax a grandeza
sonora das marés vivas.
Em simples forma de barco,
as palmas das mãos. Os cabelos são banais
como algas finas. O mar
está em suas vidas de tal modo
que os embebe dos vapores do sal.

Não é fácil amá-los
de um amor igual à
benignidade do mar.




fiama hasse pais brandão
as fábulas (2002)
obra breve
poesia reunida
assírio & alvim
2017






03 setembro 2018

sophia de mello breyner andresen / aquele que partiu




Aquele que partiu
Precedendo os próprios passos como um jovem morto
Deixou-nos a esperança.

Ele não ficou para connosco
Destruir com amargas mãos seu próprio rosto.
Intacta é a sua ausência
Como a estátua de um deus
Poupada pelos invasores de uma cidade em ruínas.
Ele não ficou para assistir
À morte da verdade e à vitória do tempo.

Que ao longe
Na mais longínqua praia
Onde só haja espuma sal e vento
Ele se perca tendo-se cumprido
Segundo a lei do seu próprio pensamento.

E que ninguém repita o seu nome proibido.



sophia de mello breyner andresen
mar novo
obra poética
assírio & alvim
2015