07 julho 2018

carlos poças falcão / o vento na varanda




O vento na varanda. Há uma história brusca
em cada verão: surgem as constelações
mais violentas, as cidades arremessam-se para longe.
Por todo o lado: ritmos. Os destinos
emaranham-se nas praças. Passam viaturas
de lugares ocultos, rostos impossíveis. O calor
traz poros venenosos, sopra turvações.
Durante a noite é julho e embate-me no peito
a borboleta escura. Os sinais são abundantes,
agitam-se no céu as luzes dos subúrbios.
Pessoas numa onda de matéria, seus halos
obscuros, o seu pequeno verão que as engana.



carlos poças falcão
sob saturno
arte nenhuma (poesia 1987-2012)
opera omnia
2012







06 julho 2018

virgínia woolf / o passado




(1925)
Quarta, 18 de Março


(…) Neste momento (sete e meia, antes do jantar) apenas posso anotar que o passado é belo porque uma pessoa nunca se apercebe de uma emoção na altura. Expande-se mais tarde e assim não temos emoções completas sobre o presente, apenas sobre o passado. Isto ocorreu-me na gare de Reading ao ver a Nessa e o Quentin darem um beijo, ele aproximando-se timidamente, contudo com uma certa emoção. Isto vou lembrar, e hei-de valorizar, quando estiver separado de toda aquela trapalhada que é atravessar a gare, procurar o autocarro, etc. É por isso que damos importância ao passado, acho eu. (…)


virgínia woolf
diário primeiro volume 1915-1926
trad. maria josé jorge
bertrand editora
1985








05 julho 2018

william carlos williams / a rua solitária




Acabaram as aulas. Está demasiado calor
para passear. Mas elas passeiam
em ligeiras vestes pelas ruas
para matar o tempo.
Cresceram muito. Na mão direita levam
chamas cor-de-rosa.
De branco dos pés à cabeça,
olhando furtivamente ao passar –
de amarelo, roupas soltas,
cinto e meias pretas –
tocando as ávidas bocas
com açúcar rosado num pauzinho –
como um cravo que cada uma leva na mão –
sobem a rua solitária.


william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993







04 julho 2018

josé gomes ferreira / as flores, a lua, o sol, as estrelas, o vento




XXV

                 (Pós-escrito a favor-contra o alfabeto poético.)


As flores, a lua, o sol, as estrelas, o vento
não são palavras apenas
para tecer poemas.

Existem em carne e dor (com caveira).

E iluminam o papel
com que as palavras criam
para além da pele
– a luz verdadeira.


josé gomes ferreira
idílio de recomeço 1961
poesia IV
portugália
1971






03 julho 2018

debasish lahiri / o mito das ilhas









          “Nenhum homem é uma ilha.”
          (Lay Sermons, John Donne)


Cada homem é uma ilha,
Ou, devia ser,
Ou, admite que sim
Demasiado ansioso
Quando os olhos se fecham
E os dias futuros
Se apresentam como memórias,
Como pó
De um trilho desértico
Escurecido pela lua estéril.

O mito dos continentes
É um recurso
Que a poesia usa muitas vezes
Para bem dizer o amor.
Os continentes são ilhas sem lei
Unidas por errantes promessas de amor.

Imagine-se
Que o mar se desvanece.
Imagine-se
Que uma ilha abandonada
Está bordada
Com filamentos de palavras coloridas

A insensibilidade da poesia,
A frieza do amor
Que pode apenas pensar
Nos seus próprios prazeres,
envolve a orla gritante
De uma série de ilhas.

Os continentes dormem indolentes.
As ilhas
Têm serpentes de pedra no seu cabelo fantasma
E olhos de Gorgon
Que se fitam profundamente

Cada homem é uma ilha.
Tapa os olhos, Amor
Quando navegares nestas costas,
Ou, será que não tens medo
Por teres já no coração
A mesma pedra?
Cada homem é uma ilha:
Uma ilha
Esperando
Pelo alívio de ser abandonada.




debasish lahiri
(Índia, trad. de isilda ribeiro a partir da versão inglesa)
nervo/2
colectivo de poesia
janeiro/abril 2018






02 julho 2018

manuel de freitas / sumário




Tão real que até faz pena. Tirou
a dentadura para sorver as últimas pedras
de gin no cibercafé do bairro alto.
Depois descalçou-se e foi outra vez
Estrangeira e loura, como se houvesse morte
para isto. Aquela que haverá, decerto,
e nos encontra mudos ao final da tarde.

Nós, digamos assim, tínhamos visto tudo.
Só não sei quem chorava mais: tu
ou o ar condicionado da 24 de Julho.
Os semáforos, em vez do coração,
lembravam um pénis no lavatório
à espera de outro poema

e da vida nem por isso.


manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002






01 julho 2018

carlos edmundo ory / o homem dos sórdidos pombais




Aqui está esse homem: vem despido
e vem com os seus sórdidos pombais
vem a pisar ameixoeiras e destroços
acaba de ter espezinhado altares.

Ai suas pombas suas estrumeiras
suas podes colunas de flores de laranjais
suas mãos de alcatrão seus olhos cruéis
os seus remos de cinza pêlos mares!

Que horríveis são seus lábios quando fala!
São horríveis suas pernas! São horríveis
Seus lábios! E suas pernas são seus lábios.

Eis esse homem sozinho numa tábua
Fazendo gestos que ninguém entende
Enchendo Deus de infâmias e agravos.


carlos edmundo ory
antologia da poesia espanhola contemporânea
trad. de josé bento
assírio & alvim
1985







30 junho 2018

miguel curado /ensaio sobre este lado da loucura








não são daqui os desnortes mal escritos,
nem as vezes em que as pessoas se pintam
policromaticamente para comerem invisibilidade,
deste lado da loucura são os monstros que almoçam
água connosco,
e depois não bebem café porque te devoram num
trago...
assumimos todos que o mundo é diferente
da chuva amarela que pinta o chão de ouro,
mas nem saímos em passos arroxeados daqui,
escolhemos o luar desinteressado que nos acompanhará
até ao fim do mundo...


miguel curado
abrir os olhos até ao branco
in-finita
2018






29 junho 2018

antónio ramos rosa / da casa branca




*
Da casa branca
vê-se o mar
o fulvo dorso
da praia
nu

mulher de areia
deitada e panda
na frescura azul

                *
Uma vela branca
de minúcia fresca

dá ao olhar a brisa
dá ao silêncio o mar

                *
A mulher dorme
viva
na espuma
do silêncio



antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985







28 junho 2018

ruy belo / versos que vou escrevendo



Mas como pode ser inverno aqui na praia
perplexa perguntaste-me ó criança ainda vinda
não sei ao certo donde mas decerto não da vida
A praia que no verão tu conheceste
é calma é cor branca é céu azul é asa de ave
é tudo o que me falta agora porque então o tive
e ao ter alguma coisa só a tenho por correr o risco de a perder
Sou pato puro espaço para o sol que me soletra
um sol de inverno visto nalgum pátio das papoas
depois de ter papado algum almoço ao joão miguel
no requintado restaurante nau dos corvos
onde apesar de não haver éramos três
bebido o vinho todo de uma das garrafas
nos deixaram pagar as garrafas vazias que trouxemos
com o rótulo impresso desse caro restaurante
vizinho dessa nau aonde os desprendidos corvos
levantam voo do mais sólido aeroporto assim fazendo
um reclame tremendo desse mesmo restaurante
E cá vou eu escrevendo os meus ligeiros versos só durante
a ida a pé do joão miguel e da maria teresa
ao morro aonde deve ser romântico morrer
Mas eu fico no carro a escrever e a ler o jornal
como o fernandez prida quando o conheci
e convidei a ouvir ingenuamente certos discos
comprados pouco antes em andorra
E já de volta os dois e o jornal por ler
e os versos por escrever que grande porra
Ao longe um barco quase choca co’ a berlenga grande
a ilha onde tu criança do início tu que em vez de laranjeiras
sempre falas das árvores aonde principiam as laranjas
que vês sempre figuras se vês fumo por exemplo algum domingo
e aves nos papéis queimados que levantam voo
tu que dessas berlengas dizes ter gostado
dos barcos e dos goivos e das grutas
e eu rio porque até não querem lá saber as putas aprecio
e só não aprecio nenhum dos seus filhos
e menos aprecio quanto mais o são
eu cá dentro do carro enquanto não
chegam os dois consigo ler que no aniversário
de um certo jornal ao certo não sei qual
mandaram parabéns entre outros vários
nomes por certo muito conhecidos
a escritora agustina e a jornalista albertina
cujo nome termina pêlos mesmos apelidos mas não decerto
uma pessoa só porquanto a lista é bastante vasta
E leio ainda mais pois leio que também consta da lista
um tal Carlos almeida pugilista
útil por certo se um dia qualquer houver
algum problema sério a resolver
entre não sei talvez tipógrafos e administradores
Ao fim da lista vem a casa de repouso da enfermagem portuguesa
e outras profissões auxiliares de medicina
para já não falar está bem de ver desse museu de ovar
Deixo o jornal porque voltou a juventude
e por aqui me fico que mais querem fiz aquilo que pude
diverti-me a valer como naquele então
em que era novo e tinha inspiração e não
faltava como agora no meu céu a ave
mia soave edd’ora addio ó ângelo de lima
criança grande que por grande embora louca ninguém estima





ruy belo
nau dos corvos
todos os poemas II
assírio & alvim
2004







27 junho 2018

maria gabriela llansol / séculos a fio de chuva




198

_______________ séculos a fio de chuva
Ininterrupta, de pântanos e de frio criavam
No garoto um corpo tiritante dotado de uma
Agudíssima faculdade de observar. Se o coberto
Nunca secava, razão por que na sua língua não
Existia nem frio nem seco, e nada podia ser
Seguido por peugadas, onde pousara o inimigo
Seus sinais de passagem? Se ali vivesse um
Contador de histórias fulgurante, diria que
Ele estava banhado em lágrimas, em lágrimas
Totais. Mas eu _ o dom de escrevente que o
Seguia __ textuava, e textuava, um modo
De trazê-lo seco para um mundo de vida.
Apesar de mundo ser palavra supremamente
Ambígua, por constantemente se esbater
Se apagar.



maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003







26 junho 2018

henri michaux / morte de um pássaro




Tinha cores magníficas: era um carpinteiro.
Alvejei-o.
Ele pareceu hesitar, depois tombou sobre uma grande
                                                     folha de palmeira.
Agarrei-o. Era assim: ouro, negro, vermelho.
Apalpei-o, estendi-lhe as asa, examinei-o longa e minu-
                                          ciosamente. Estava intacto.
Deve ter morrido de comoção.



henri michaux
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & alvim
1997


25 junho 2018

mário cesariny / poema




Os pássaros de Londres
cantam todo o inverno
como se o frio fosse
o maior aconchego
nos parques arrancados
ao trânsito automóvel
nas ruas da neve negra
sob um céu sempre duro
os pássaros de Londres
falam de esplendor
com que se ergue o estio
e a lua se derrama
por praças tão sem cor
que parecem de pano
em jardins germinando
sob mantos de gelo
como se gelo fora
o linho mais bordado
ou em casas como aquela
onde Rimbaud comeu
e dormiu e estendeu
a vida desesperada
estreita faixa amarela
espécie de paralela
entre o tudo e o nada
os pássaros de Londres
quando termina o dia
e o sol consegue um pouco
abraçar a cidade
à luz razante e forte
que dura dois minutos
nas árvores que surgem
subitamente imensas
no ouro verde e negro
que é sua densidade
ou nos muros sem fim
dos bairros deserdados
onde não sabes não
se vida rogo amor
algum dia erguerão
do pavimento cínzeo
algum claro limite
os pássaros de Londres
cumprem o seu dever
de cidadãos britânicos
que nunca nunca viram
os céus mediterrânicos


mário cesariny
poemas de londres
pena capital
assírio & alvim
1999