21 fevereiro 2017

r. lino / palavras do imperador hadriano na morte de antínoos



perdi – quando partiste –
o completo sentido das metáforas…
terei adiado para outras tardes
abreviadas conversas
de suspeitos projectos?
– ou arrastado os olhos
para verdes mares
de idênticas cores?!
falo do Império
como do teu;
não mais fustigarei as palavras:
possibilidade inscrita no corpo
pela exaustão do silêncio,
deste
que fala o que digo
– vez de mim para ti,
como se pelo espelho –
enquanto agarro
este e outro
coração nos meus gestos.


r. lino
políptico
companhia das ilhas
2016



20 fevereiro 2017

marin sorescu / quadros



Todos os museus têm medo de mim:
Sempre que fico o dia inteiro
Diante de um quadro
No dia seguinte anunciam
O desaparecimento desse quadro.

Todas as noites me apanham a roubar
Noutras partes do mundo,
Mas eu nem ligo
Às balas que me assobiam ao ouvido,
E aos cães-polícia que já conhecem
O cheiro das minhas pegadas
Melhor do que os namorados
O perfume da amada.

Falo em voz alta com as telas
Que põem em perigo a minha vida,
Penduro-as nas nuvens e nas árvores
E recuo para obter perspectiva.

Com os mestres “italianos” podes facilmente conversar.
Que ruído de cores!
É por isso que sou logo apanhado com eles,
Visto e ouvido de longe,
Como se tivesse papagaios nos braços.

O mais difícil é roubar Rembrandt:
Estendes a mão e encontras a escuridão —
Ficas apavorado, os seus homens não têm corpo,
Apenas olhos fechados em adegas escuras.

As telas de Van Gogh são loucas,
Rolam e dão cambalhotas,
Tens de prendê-las bem
Com ambas as mãos,
Pois são sugadas por uma força lunar.

Não sei porque é que Breugel me faz chorar,
Não era mais velho do que eu,
Mas chamaram-lhe velho,
Porque sabia tudo quando morreu.

Procuro aprender com ele,
Mas não posso conter as lágrimas
Que escorrem nas molduras douradas
Quando fujo com as estações debaixo do braço.

Como vos disse, todas as noites
Roubo um quadro
Com uma perícia invejável.

Sendo o caminho muito longo,
Sou finalmente apanhado,
Chego a casa a altas horas,
Cansado e rasgado pelos cães
Trazendo comigo uma reprodução barata.


marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997




19 fevereiro 2017

luís vaz de camões / todo animal da calma repousava,



Todo animal da calma repousava,
Hilário o ardor dela não sentia,
que o repouso do fogo em que ele ardia
consistia na Ninfa que buscava.

Os montes parecia que abalava
o doce som das mágoas que dizia;
mas nada o duro peito comovia,
que na vontade d''outrem posto estava.

Cansado já de andar pela espessura,
no tronco de uma faia, por lembrança,
escreve estas palavras de tristeza:

«Nunca ponha ninguém sua esperança
em peito feminil, que de Natura
somente em ser mudável tem firmeza».


luís vaz de camões
sonetos


18 fevereiro 2017

álvaro feijó / porque viste chegar


Porque viste chegar
em carros que custaram
quantias fabulosas
ladies loiras,
signoras encantadoras
e os seus inseparáveis cães de luxo,
porque as viste chegar cheias do pó da estrada
e com ar de quem
teve perto de si o sofrimento,
choraste.
Valeu a pena? Não!
Valia a pena chorar por aqueles
que vinham
a pé.

Novembro de 1940



álvaro feijó
os poemas de álvaro feijó
portugália
1961



17 fevereiro 2017

harold pinter / naquele tempo



Bom, não havia problema.
Todas as democracias
(todas as democracias)

estavam connosco.

Por isso tínhamos de matar umas pessoas.
E então?
Os das esquerdas às vezes são mortos.

Era o que costumávamos dizer
Lá naquele tempo:

A tua filha é das esquerdas

Vou meter-lhe este aríete
Por ali acima acima acima
Mesmo por dentro e até lá acima
Mesmo por dentro do seu imundo corpo das esquerdas.

E isso parou os das esquerdas.

Pode ter sido naquele tempo
Mas  digo-te que esse é que foi um bom tempo.

De qualquer forma todas as democracias
(todas as democracias)
Estavam connosco.

Diziam: só não
(só não)
Digam a ninguém que estamos convosco.

Só isso.
Só não digam a ninguém
(só não)
só não digam a ninguém
Que estamos convosco.

Matem-nos só.

Bem, a minha mulher queria paz.
E os meus filhos pequenos também.
Por isso matámos todos os das esquerdas.
Para darmos paz aos nossos filhos pequenos.

De qualquer forma não havia problema.
De qualquer forma estão todos mortos de qualquer forma.

1996


harold pinter
várias vozes
tradução miguel castro caldas
quasi
2006




16 fevereiro 2017

fernando echevarría / as janelas dão sempre para estarmos



As janelas dão sempre para estarmos
a ver por elas o que não se vê
 – o ponto onde o fenómeno é epifania de acto,
a palpitar por trás no tempo só de ser.

E deitam a crescer de forma tal que quando
vêem melhor, crescer
é, sobretudo, emudecer seu quadro
no pulso imperceptível que toda a ausência tem.


fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998




15 fevereiro 2017

sophia de mello breyner andresen / corpo a corpo



Lutaram corpo a corpo com o frio
Das casas onde ninguém passa,
Sós, em quartos imensos de vazio,
Com um poente em chamas na vidraça.



sophia de mello breyner andresen
obra poética I
poesia I
caminho
1999




14 fevereiro 2017

eugénio de andrade / frente a frente



Nada podeis contra o amor.
Contra a cor da folhagem,
contra a carícia da espuma,
contra a luz, nada podeis.

Podeis dar-nos a morte,
a mais vil, isso podeis
– e é tão pouco!



eugénio de andrade
poemas
edit. inova
1971




13 fevereiro 2017

josé gomes ferreira / a morte para nós, a turbamulta


XIII

A morte para nós, a turbamulta,
nada descerra
nem oculta…

É apenas este ritmo entre nós e a Terra.


josé gomes ferreira
café 1945-1946-1947-1948
poesia III
portugália
1971




12 fevereiro 2017

jorge de sena / aviso a cardíacos e outras pessoas atacadas de semelhantes males


Se acaso um dia o raio que te parta
(enfim obedecendo às fervorosas preces
dos teus muitos amigos e inimigos),
baixa de repente gigantesco
e fulminante sobre ti, e mesmo se repete:
e não te quebra todo, e como desasado,
ou quem morto regressa à sobrevida,
tu sobrevives, resistes e persistes,
em estar vivo (ainda que à espera sempre
de novo raio que te parta em cacos) -
- tem cuidado, cuidado! Arma-te bem
não tanto contra o raio mas principalmente
contra tudo e todos. Sobretudo estes,
ou sejam todos quantos pavoneam
o consolo inocente de pensar que a morte
não os tocou nem tocará jamais.

Porque não há ninguém por mais que te ame,
Ou por mais que seja teu amigo (e,
Com o tempo, os amigos, mais que as criaturas
Fiel ou infielmente bem-amadas, gastam-se),
Que te perdoe que tu não tenhas estourado,
No momento em que se soube que estouravas.
É uma "partida"(ou um "regresso" sem piada nenhuma)
Absolutamente e aterradoramente inaceitável,
Humanamente e vitalmente imperdoável.
Pelo que, sobrevivente, pagarás como se diz,
Com língua de palmo. Se és um pobretano,
Solitário, abandonado, entregue aos teus fantasmas,
Que são um palpitar, um estertor, uma opressão no peito,
Uma tontura, um como que silêncio negro,
Podes estar certo e seguro que nem amigo nem amante,
Está livre de ocupações permentes para te acudiar.
Uma que outra vez apenas, para alívio,
dos borborigmas morais dos seus estômagos,
Irão visitar-te carinhosos. Outros
tentarão acudir-te, ajudar-te, como podem,
E quando em desespero tu reclamas.

Não contes com mais nada senão morte,
Se tens família, amando-te sem dúvida,
Inteiramente dedicada a ti que seja ou é,
Não penses que não és constante imagem
Sem desculpa alguma de andar pela casa,
Um pouco vacilante, às vezes suplicando,
Uma pílula, alguma companhia, ou mesmo atrevendo-te,
A fazer referências tidas de mau gosto
À espada que para onde vás segue suspensa
Sobre a tua cabeça. Porque ninguém, ninguém
Até contraditoriamente porque te amam,
Suportam que não sejas quem tu eras,
Mas só a morte adiada, o que é diverso,
Do horror de um cancro que não se sabe
Quando matará mas é criatura de respeito,
Crescendo em ti como se estiveras grávida.
Assim, meu caro, com coração desfeito
Sem metáfora alguma, és apenas uma
Indecorosa e miserável chatice.

Portanto, irmãos humanos, se estourais,
Estourai, por uma vez aliviando
Quem vos quer ou não quer por uma vez.


jorge de sena
40 anos de servidão
moraes
1979



11 fevereiro 2017

herberto helder / o poema



     VI

     Fecundo mês da oferta onde a invenção ilumina
     a harpa e a loucura desperta a pura espada
     em pleno sangue. Ó vasto,
     amargo e límpido mês interior onde a graça
     se toca do fogo e o corpo se torna o cândido
     e longo varão de música. Escada de seiva
     entre arbustos de estrelas
     e cubos de sal perpetuamente ardendo.
     — Por ti, mês feliz de confusão e génio,
     eu levanto minha húmida boca
     até ao ar e ao vinho, levanto
     minha obscura pedra por vias de tormento
     e instinto até
     ao barro vermelho do céu, ao espasmo
     violento e sagrado das palavras.

     Mês por onde subo fundamente agitado
     em meu coração de argila, em minhas veias
     de pequena infância espantada e grata.
     E subindo me incendeio e consumo.
     Mês das mãos purificadas.
     Delicado mês para uma corola
     de nuvem, um vivo transporte
     entre coxas e mamas.
     Em lama e areia se descobre
     o pensamento, se perde a memória, se possui
     uma estreita palavra virgem
     e extrema.

     Arde, mesa. Arde, instrumento de profunda
     música. Arde, vinho. Carne,
     ave, grande mar, grande estátua fria,
     grande sorriso desfeito na face da solidão.
     Mês de onde nascem os bichos ébrios e a voz
     das catedrais de resina e o flanco
     terrível e doce das montanhas
     e o amor irmão da morte e da alegria.
     Mês do poema, substância de Deus servida
     como ceia e primeira pedra no espaço
     da minha angústia,
     do meu encanto.
     Mês da aliança, tempo
     tremendo da inocência onde a lua desce
     suas raízes ferozes
     e a morte anuncia seus primeiros sinais
     de glória.

     — E eu dormia. O sangue atravessava a noite
     como cantando baixo.
     Tecedeiras deixavam mãos sobre a atenção, flores começavam
     no linho com o tremor comprido das veias.
     Mês, mês. Um beijo pensava-se em palavra, recolhia-se, renascia,
     vibrava na testa como o beijo da loucura.
     — Pela terra adiante aumentava o trigo insensato do canto,
     o perdão nascia das formas,
     e por todas as coisas corria o sopro alucinado
     e redentor
     de um primeiro minuto de entre as mãos e a obra.




     herberto helder
     poesia toda
     assírio & alvim
     1996



10 fevereiro 2017

josé tolentino mendonça / os amigos




Esses estranhos que nós amamos
e nos amam
olhamos para eles e são sempre
adolescentes, assustados e sós
sem nenhum sentido prático
sem grande noção da ameaça ou da renúncia
que sobre a luz incide
descuidados e intensos no seu exagero
de temporalidade pura


Um dia acordamos tristes da sua tristeza
pois o fortuito significado dos campos
explica por outras palavras
aquilo que tornava os olhos incomparáveis

Mas a impressão maior é a da alegria
de uma maneira que nem se consegue
e por isso ténue, misteriosa:
talvez seja assim todo o amor



josé tolentino mendonça
de igual para igual
assírio & alvim
2001




09 fevereiro 2017

pedro tamen / tu que fumas



Adiro ao grande segredo da pedra, ao
prumo inteiro da sua própria sombra.
Brando, revejo a solar rotunda dos teus ombros
e (repito) há pedra sobre pedra, inicialmente.
És tu, portanto. Tu que dizes. Tu
que sopras as coisas, tu que fumas.

A todos direi que já sabia, mas é sempre
a remodelar lembrança a dar-me sangue.
Só que nem sempre, é isto, de algo serve:
pois que veias, mais do que intenção?
e que largura imensa só nos olhos?
Fumo sem fogo, amor? Sinais?


pedro tamen
princípio de sol
circulo de leitores
1982