20 abril 2015

philippe soupault / perdida e reencontrada



Se me dizeis o que penso
e que o tempo foi perdido
creio que vos esqueceis
ou do acaso ou da verdade

Perdida na floresta
de esplendorosas verdades
a lua cala-se
e vós dormis

Os meus sonhos não estão à venda
e deles só dou o reflexo
do que queima e que devora
angústia amor à mistura



philippe soupault
poesia do século xx
(de thomas hardy a c. v. cattaneo)
organiz. e tradução de jorge de sena
editorial inova
1976




19 abril 2015

ezra pound / «a nuvem imóvel» de to-em-mei



«Primavera molhada, » diz To-em-mei,
«Primavera molhada no jardim.»


I
As nuvens acumularam-se e acumularam-se
                   e a chuva a cair e a cair
As oito pregas dos céus
                   dobraram-se num único negrume,
E a estrada longa e plana a prolongar-se.
Detenho-me no meu quarto que dá para leste, calmo, calmo,
Afago o meu novo casco de vinho.
Os meus amigos estão arredados, ou estão lone,
Curvo a cabeça e permaneço quieto.

II
Chuva, chuva, e as nuvens acumularam-se,
As oiti pregas dos céus são um negrume,
A terra plana transformou-se em rio.
                   «Vinho, vinho, aqui há vinho!»
Bebo junto à janela que dá para leste.
Penso em conversar e em alguém,
E nenhum barco, ou carruagem, se aproxima.

III
As árvores no meu jardim voltado a leste
                   rebentam numa explosão de ramos novos,
Tentam atiçar afeição nova,
E os homens dizem que o sol e a lua giram sempre
                   porque não conseguem achar um aconchego.
As aves esvoaçam ao pousar na minha árvore
                   e a mim parece-me que as ouvi dizer,
«Não é que não existam outros homens,
Mas nós gostamos mais é deste sócio,
Mas apesar do nosso anseio em lhe falar
Nada ele pode saber da nossa mágoa.»

T”ao Yuan Ming
365-427 d. C.



ezra pound
catahay
tradução gualter cunha
relógio d´água
1995




18 abril 2015

charles ribeiro / terracota



                    Morri algumas vezes
          Junto à retina     diante do beijo
esparso

─                              ─

Eu morri algumas vezes
          distante


                    gofando

                           ─

sobre Mantegna  o mármore
           Pasolini o nu  ─



querino
terracota
dezembro de 2014
vitória da conquista





17 abril 2015

fiama hasse pais brandão / fim de manicure



A voz destas palavras ondula.
Vejo o plano da página por ilusão
superficial. Um artifício sem
repouso. O fim que ainda espera
uma forma. O ciclorama entre
as páginas da leitura e o vácuo.


fiama hasse pais brandão
três rostos
âmago II (nova natureza) 1985-1987
assírio & alvim
1989



16 abril 2015

henri michaux / imensa voz



Imensa voz
que bebe
que bebe

Imensas vozes que bebem
que bebem
que bebem

Rio-me, rio-me sozinho nas outras
nas outras
nas outras barbas
Rio-me, tenho o canhão que ri
o corpo em forma de canhão
eu, eu tenho, eu sou

noutro lado!
noutro lado!
noutro lado!

Uma brecha, que importa?
uma ratazana, que importa?
uma aranha?

Por ser mau agricultor perdi o meu pai
não, não tragam luz
perdi-o portanto

O comando extinguiu-se
apagou-se a voz. Pelo menos mais abafada
Vinte anos depois, novamente, que ouço eu?

Imensa voz que bebe as nossas vozes
Imenso pai reconstruído gigante
pelo cuidado, pela incúria dos acontecimentos

Imenso Tecto que nos cobre os bosques
as alegrias
que cobre gatos e ratos

Imensa cruz que nos amaldiçoa as jangadas
que nos verga os espíritos
que nos prepara os túmulos

Imensa voz para nada
para o sudário
para nos desabar as colunas

Imenso «deve» «dever»
dever dever dever
Imensa imperiosa rigidez.

Com uma grandeza fingida
imenso acontecimento
que nos gela

Será que nascemos para sermos a ganga?
Será que nascemos, de dedos partidos, para dar
toda uma vida a um falso problema?

a não sei quê para não sei quem
a um não sei quem para um não sei quê
sempre em direcção a mais frio?

Basta! Aqui não se canta
Não terás a minha voz, grande voz
Não terás a minha voz, grande voz

Passarás sem ela, grande voz
Também tu passarás
Tu passarás, grande voz.



henri michaux
antologia
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
1999




15 abril 2015

ernesto sampaio / para uma cultura fascinante


Uma arte poética, admitida a relação analógica tradicional entre as estruturas do homem e do universo, é sempre uma cosmogonia. As leis que regem os mais íntimos e essenciais fenómenos da criação humana dizem respeito à mesma realidade que criou o homem, dele fez a sua expressão impermanente, mutável como a expressão do próprio homem, mas mais livre, porquanto a humana expressão é reflexo doutra realidade prestigiosa e a expressão dessoutra realidade não é reflexo senão do infinito, cujo conceito e cuja imagem próxima do olhar humano nos espiam por trás de cada objecto, órbitas vazias geradoras da angústia que raspa, imagem após imagem, todas as que não reflectem a Lei, e estas são as que exprimem termos de encontro superficiais e falsos, ou simplesmente menos reais, com o mundo e com a vida, comodamente integrados na consciência humana por tudo o que no homem é criação intelectual mas não é conhecimento.

A análise dos fenómenos da criação humana à luz de uma mítica Consciência universal pode, por alguns, ser considerada demasiado arbitrária, embora, e no plano sensível, sejam muitos os fenómenos que permitam  elaborar uma relação entre o incriado e a sua emanação — o cosmos, e a inconsciência e a sua emanação — a consciência, cosmos e consciência que se organizam similarmente segundo uma sua interna necessidade— a de saírem do caos e revelarem-se, limitando-se num objecto onde a ideia encarna para que a consciência que a criou se conheça. O objecto criado é depois reabsorvido pela noite de onde saiu, regressa ao caos, apagada a Ideia viva que o formou,  extinto o reflexo do arquétipo universal, da Ideia pura que alimenta o homem e os seus esforços para alcançar de si mesmo a Consciência absoluta, Ideia que é ela própria alimentada por esses esforços, sem os quais, admitindo que a consciência humana dela não teria conhecimento se dela não fosse um reflexo, não existiria.

Considerar arbitraria a realidade mítica do mundo que o homem pretende alcançar equivale a negar a possibilidade de o sujeito se poder equivaler ao seu objecto, equivale a negar ao homem a conquista de um estado unificado da consciência, equivale a negar a Poesia. Porque o poeta é o homem que consegue, quando o seu Verbo encarna, alcançar estados de consciência absoluta, de absoluta vidência. O poeta é precisamente o único homem cujo funcionamento espiritual não é arbitrário, é real, o único que consegue mover-se no presente e dele falar. O resto é ignorância.

É claro que este poeta a que me refiro é raro, tão raro como são raros os verdadeiros iniciados, e isto porque o conhecimento pressupõe a anulação individual de quem conhece, depende da capacidade que o eu porventura possua de substituir o seu inconsciente particular pelo inconsciente colectivo, aplicando contra este a sua consciência, diluciidando-o, e assim dilucidando uma primeira realidade mais vasta e concreta que a realidade do eu, condição básica para o conhecimento da Realidade Mítica, o qual é pura descontingenciação, libertação.

Para que o eu prossiga sem falhas o seu esforço pelo conhecimento, precisa de encontrar formas definitivas, reais formas de comunicação com os outros eus. Sem essa comunicação não pode provar, não pode medir absolutamente a veracidade da expressão do real no seu corpo.

A expressão do real é a Poesia.

A expressão do real no meu corpo é o Teatro.

O Teatro é a Poesia concreta.

Ritmos e sons, eis o concreto. Eis o objecto original, a redução ao sensível de todo o conceito, de toda a ideia criadora. O Teatro é a expressão da necessidade demiúrgica da consciência humana: concretizar ritualmente, por transmutação analógica, o primeiro ritmo e o primeiro som. Integrar a consciência no corpo, carregar o corpo dos prestígios criadores que circulam na natureza — eis a função do Teatro. O lugar onde esta operação se efectua é o único onde o homem se pode inserir na sua realidade total, o único onde o poeta-actor pode fazer agir a realidade total sobre a humana inconsciência da sociedade e pode vencê-la, o único onde pode obrigar a sociedade a participar da sua consciência, a ser dela elemento activo e integrante.

Ser absolutamente consciente — eis o primeiro objectivo. Eis a condição especiosa e teatral para ultrapassar a nojenta situação de ser condicionado, fantoche do Bom e do Justo, imundo agente dos sentimentos, dos juízos, da luxúria, do temperamento «humano, demasiado humano». «O homem é uma coisa que deve ser ultrapassada» (suponho que a afirmação é de Nietzsche), esta é a primeira aquisição a purificar a nossa vontade, o primeiro esboço terrivelmente inquieto de um sangue destinado a ser livre ou, pelo menos, a tentar sê-lo até onde o permitir a sua resistência à força da dor.


ernesto sampaio
edoi lelia doura,
antologia das vozes comunicantes da poesia portuguesa
organizada por h. helder
assírio & alvim
1985





14 abril 2015

antónio gancho / prisão




Tu tinhas uma nascença que era uma prisão
uma certeza de estar concreto e unido
com a matéria de pedra
Que era uma tua sedimentação de vida
uma tua construção de movimentos a sair das grades
Era rico em Sol o teu peito de grades
concreto e unido sedimentavas dias de espera
duma letra que te abrisse os instintos para
falares de nada.
Era uma certeza de tu estares unido como uma raiz de mesa própria
uma certeza de estares virado para um
nascente de inconcretidade material
tinhas uma mão de peça de artilharia
de disparares para fora o conteúdo dos dias com
raiz de mesa própria
Eras um sol a nascer-te no sítio da grade
onde se punham ramos de quinta-feira de campo.
Tinhas uma natureza de estares sentado
Sobre uma cadeira que era a tua
esperança de estares unido com a nascença do movimento.
Tinhas um cantarem-te os cabelos no dia de dentro
um ser-te uma mágica a fusão de
olhar com a dimensão de esperança fora.
Eras-te igual à matéria da tua animação de selva
íntima
igual ao cantar-te seródio o tempo de pendular
na cabeça
Conhecias uma esperança de cortares os cabelos com uma
navalha de vento
mas era tua inspiração de um modo interior de vida.
Criavas um espaço aberto na clareira duma grade
que era um espaço celeste a cobrir de grego o cimento
Tu tinhas uma invenção de disparares saúde de dias
por fora da mão
Tu tinhas uma sensação absoluta de estares aberto com o espaço
duma grade
tinhas um ser-te grave o olhar para fora do dia
inaugurado de verde
Que se te abrisse a letra
era desejo de teres fonemas no nada de uma mão aberta
sem um rogar de branco.
O sol aberto em sentido de alusão a uma palavra de ti
era nada de o poente estar no sentido inverso.


antónio gancho
o ar da manhã
assírio & alvim
1995




13 abril 2015

edmundo de bettencourt / o segredo e o mistério



Mistérios a pouco e pouco vão morrendo,
e extenuados de vigílias os anjos
são afinal as sussurrantes sibilinas vozes
que desvendam adivinham segredos
atrás de sentinelas
cuja ferocidade é uma ironia da ternura…

Na palidez da luz
cercando uma velha cabeça,
a quem um sono de embrião já tolda os olhos,
sorriem enigmáticos os sonhos.


  

edmundo bettencourt
edoi lelia doura,
antologia das vozes comunicantes da poesia portuguesa
organizada por h. helder
assírio & alvim
1985




12 abril 2015

alexandre o'neill / a noite ordinária




Que bela noite ordinária que eu passei!


Foi isso há tempos
num quarto defendido pelas pulgas
e vigiado por um vento carteirista
que morava (disseste)
mesmo ali ao pé.

O problema da luz foi o primeiro
(que resolvemos apagando-a)
depois o das torneiras
depois o do marinheiro
que queria entrar nos nossos problemas
depois o teu
o teu problema já na cama
- na cama com mais paciência que encontrei!

Depois
falaste com as torneiras
e eu gritei

Gritei por calculado amor
por brilhantina
por miséria
gritei até pela vitória
(supremo humor!)
dos que se batem contra a Cara-Alegre
gritei p'ra não parar de gritar
gritei «Chapultepec!» e «Oaxaca!»
(nomes por excelência afrodisíacos)
gritei até descobrir
o sítio em que te «escondias»
e então deixei-te gritar...

Quando a noite resignada
abria a última pálpebra
gritei ainda: «Mas é isto o espelho!»

E o dia levantou-se como um cão
(imagem acessível à família...)
da bela noite ordinária
que passei...



alexandre o'neill




11 abril 2015

ricardo reis / vivem em nós, inúmeros



Vivem em nós, inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem eu sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo.

  

ricardo reis



10 abril 2015

josé ángel cilleruelo / um senhor de azul



e de barba por fazer. Aproveita
a época baixa, o desdém
de algum jovem desiludido
para tentar, uma vez mais, o amor.
Passeia sem ninguém a acompanhá-lo.
Dorme pouco. Não teve nada e agora,
na cidade, basta estender a mão:
os livros estão todos, corpos sempre
aguardam nesse bar conhecido.
Basta passar a porta que o faça feliz.
Por isso ano atrás de ano se veste
de azul, descuida o seu aspecto, fuma,
e regressa na época baixa
ao lugar afastado. Tal como então.




josé ángel cilleruelo
trípticos espanhóis 2º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




09 abril 2015

cecília meireles / é preciso não esquecer nada



É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.

É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.

O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.

O que é preciso esquecer é o dia carregado de actos,
a ideia de recompensa e de glória.

O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos
severos connosco, pois o resto não nos pertence.

  

cecilia meireles





08 abril 2015

gonçalo m. tavares / a cabeça



Esta cabeça que aceita tudo como os pobres,
impossível desligá-la, fazer uma muralha,
fechar o sítio de onde sai o que se pensa.
Mas os acontecimentos exteriores ainda assustam,
ou divertem,
      e não consigo parar.
A carne se fosse metal seria melhor,
              mas não é melhor,
nunca é melhor.

  

gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004