29 janeiro 2015

jorge de sena / os paraísos artificiais



Na minha terra, não há terra, há ruas;
mesmo as colinas são de prédios altos
com renda muito mais alta.

Na minha terra, não há árvores nem flores.
As flores, tão escassas, dos jardins mudam ao mês,
e a Câmara tem máquinas especialíssimas para desenraizar as árvores.

Os cânticos das aves - não há cânticos,
mas só canários de 3º andar e papagaios de 5º.
E a música do vento é frio nos pardieiros.

Na minha terra, porém, não há pardieiros,
que são todos na Pérsia ou na China,
ou em países inefáveis.

A minha terra não é inefável.
A vida da minha terra é que é inefável.
Inefável é o que não pode ser dito.

  

jorge de sena 




28 janeiro 2015

katerina angheláki-rooke / a transcrição do pesadelo



Para que o pesadelo se torne poema
é preciso que o silêncio não tenha rangidos
de alma, de coração ou doutros órgãos
da química inorgânica da existência.
No silêncio permite-se que habitem cores
mas estão proibidos os contrastes gritantes:
negro com carmesim
ou com o tão cantado azul dos olhos.
Talvez um pouco de cor de cobre
terroso de folhas murchas
ou branco com manchas de café na nuca dos cães.
Logo que o pesadelo tenha deitado todo o corpo que tem a deitar
é sujeito a uma série de operações.
Com grande minúcia há que lhe extrair
a suspeita lógica
e depois sem anestesiante
transplantar-lhe algo
da bondade inata dos humanos.
A intervenção mais difícil
consiste em amputá-lo do medo.
Isso consegue-se mergulhando
sem cessar o mau sonho
na santidade da natureza.
E é então que o poema floresce;
folhinha a folhinha
flor a flor
débil a princípio, trémulo,
ergue-se da negra terra que o alimentou
e ousa.

Ousa sonhar
o antídoto da aridez
a palavra.



katerina angheláki-rooke
(grécia, n. 1939)
(de "belo deserto o corpo")
tradução de manuel resende





27 janeiro 2015

abelardo linares / marinha



Alba. Homens do mar
deixavam nas areias
algas e conchas.
E perdiam-se depois,
vacilantes e alegres,
pelas ruas do porto.
Nos ombros os cestos
húmidos da pesca
pareciam oferendas
a um deus desconhecido
e sorridente.

  

abelardo linares
trípticos espanhóis 1º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998





26 janeiro 2015

jorge de sousa braga / portugal



    Portugal
    Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me sentir como se tivesse
    oitocentos
    Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater os infiéis ao norte de
    África
    só porque não podia combater a doença que lhe atacava os órgãos genitais
    e nunca mais voltasse
    Quase chego a pensar que é tudo uma mentira
    que o Infante D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney
    e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente
    Portugal
    Não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino nacional
    (que os meus egrégios avós me perdoem)
    Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo
    Anda na consulta externa do Júlio de Matos
    Deram-lhe uns electro-choques e está a recuperar
    aparte o facto de agora me tentar convencer que nos espera um futuro de
    rosas
    Portugal
    Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos a ver se contraía a febre do
    Império
    mas a única coisa que consegui apanhar foi um resfriado
    Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr uma pérola que fosse
    das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador
    Portugal
    Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém
    Sabes
    Estou loucamente apaixonado por ti
    Pergunto a mim mesmo
    Como me pude apaixonar por um velho decrépito e idiota como tu
    mas que tem o coração doce ainda mais doce que os pastéis de Tentugal
    e o corpo cheio de pontos negros para poder espremer à minha vontade
    Portugal estás a ouvir-me?
    Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete Salazar estava no poder nada
    de ressentimentos
    um dia bebi vinagre nada de ressentimentos
    Portugal
    Sabes de que cor são os meus olhos?
    São castanhos como os da minha mãe
    Portugal
    gostava de te beijar muito apaixonadamente
    na boca



    jorge de sousa braga






25 janeiro 2015

federico garcia lorca / canção cantada


No gris,
o pássaro Griffón
vestia-se de gris.
E a menina KiKiriKi
perdia a sua alvura
e forma ali.

Para entrar no gris
pintei-me de gris.
E como reluzia
no gris!

  

federico garcia lorca




24 janeiro 2015

konstandinos kavafis / as janelas



Nestas salas escuras, onde vou passando
dias pesados, para cá e para lá ando
à descoberta das janelas ─ Uma janela
quando abrir será uma consolação. ─
Mas as janelas não se descobrem, ou não hei-de conseguir
descobri-las. E é melhor talvez não as descobrir.
Talvez a luz seja uma nova subjugação.
Quem sabe que novas coisas nos mostrará ela.



konstandinos kavafis
poemas e prosas
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
1994




23 janeiro 2015

harold pinter /encontro



Nas horas mortas da noite

Os que há muito estão mortos olham para
Os novos mortos
Que avançam até eles

Há um leve bater do coração
Quando os mortos abraçam
Os que há muito estão mortos
E os que entre os novos mortos
Para eles avançam

Choram e beijam-se
Quando voltam a encontrar-se
Pela primeira e última vez

Agosto 2002



harold pinter
guerra
trad. pedro marques, jorge silva melo e francisco frazão
quasi
2003




22 janeiro 2015

antero de quental / nirvana



Para além do Universo luminoso,
Cheio de formas, de rumor, de lida,
De forças, de desejos e de vida,
Abre-se como um vácuo tenebroso.

A onda desse mar tumultuoso
Vem ali expirar, esmaecida...
Numa imobilidade indefinida
termina ali o ser, inerte, ocioso...

E quando o pensamento, assim absorto,
emerge a custo desse mundo morto
E torna a olhar as coisas naturais,

À bela luz da vida, ampla, infinita,
Só vê com tédio, em tudo quanto fita,
A ilusão e o vazio universais.



antero de quental
sonetos





21 janeiro 2015

abdel karim sabawi / a flor da tinta é negra [extractos]



[…]
A flor da tinta é negra
Mas nos dedos dele toma muitas formas
Uma abelha… uma palmeira… uma rapariga a cavalo
Um planeta regressando de tempos idos
Uma bola de fogo acariciando de entre nós os áridos e os estéreis
Transformando a terra em chamas e estacas de fumo

Oh… como é vasta a nossa visão
… como é grande o nosso anseio
Oh, de uma gota de tinta quando atinge o nosso íntimo.
Magro botão de rosa que não consegue ver
E se enrola em volta do nosso pescoço, num cadafalso

[…]
Quando abri o frasco de tinta
E fitei a tinta
Encontrei um génio adormecido lá dentro
Assustei-me, a tinta manchou-me as pontas dos dedos
Tracei uma linha e outra
Tornaram-se ruas
E mais uma ou duas linhas
Chegaram os invasores
Um grupo de pobres veio em nossa defesa
O meu coração embriagado de orgulho e felicidade
Gaguejei um pouco
Divaguei um pouco
Ajudaram-me ou mataram-me os alfabetos
Queimaram-me a língua com balas
A tinta correu em todas as minhas veias
E o meu sangue correu nas veias dos jornais.



abdel karim sabawi
poesia do mundo /3
tradução de maria josé caelo
afrontamento
2001




20 janeiro 2015

samuel beckett / worstward ho


Em diante. Dizer em diante. Ser dito em diante. Dalgum modo em diante. Até de modo nenhum em diante. Dito de modo nenhum em diante.

Dizer por ser dito. Desdito. De ora em diante dizer por ser desdito.

Dizer um corpo. Onde nenhum. Mente nenhuma. Onde nenhuma. Ao menos isso. Um lugar. Onde nenhum. Para o corpo. Estar lá dentro. Morrer-se lá dentro. E sair. E voltar lá para dentro. Não. Sair nenhum. Voltar nenhum. Só entrar. Ficar lá dentro. Em diante lá dentro. Parado.

Tudo desde sempre. Nunca outra coisa. Nunca ter tentado. Nunca ter falhado. Não importa. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor.



samuel beckett
últimos trabalhos de samuel beckett
tradução de miguel esteves cardoso
o independente / assírio & alvim
1996





19 janeiro 2015

cesare pavese / last blues, to be read some day



Foi só um flirt
e sabias, claro -
alguém foi ferido
há muito tempo.

Mas nada mudou
o tempo passou -
um dia chegaste
um dia morrerás.

Alguém morreu
há muito tempo -
alguém que queria
mas não sabia.

11 de abril de 1950


cesare pavese
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997



18 janeiro 2015

antónio reis / como o sol



como o sol
como a noite

como a vontade de comer
e o sono

como as preocupações
e o amor

e porque saio à rua
e trabalho
diariamente

Aos domingos
aos domingos o golo no estádio
chega até minha casa
e até ao mar

O próprio sol
é uma imagem de couro no espaço

a chuva
é uma imagem de redes batidas

Ah Que fazer
senão esperar pela semana

dormindo

O mesmo pensamento
a mesma ira

Para que serve a mão
Perde o sentido o próprio sofrimento

o coração
a lira

Desde quando amor
este segredo
e me vestir sem luz
sabendo que não dormes

atento a um ruído
mais claro

a um sorriso
e a uma lágrima
parada

Bate coração
no peito que te guarda

lâmpada
suspensa

fruto com cadência

estrela
em rotação pelos telhados

Bate coração

até as sombras se alongarem pelos braços



antónio reis
poemas quotidianos
1967




17 janeiro 2015

herberto helder / as musas cegas


VII

Bate-me à porta, em mim, primeiro devagar.
Sempre devagar, desde o começo, mas ressoando depois,
ressoando violentamente pelos corredores
e paredes e pátios desta própria casa
que eu sou. Que eu serei até não sei quando.
É uma doce pancada à porta, alguma coisa
que desfaz e refaz um homem. Uma pancada
breve, breve -
e eu estremeço como um archote. Eu diria
que cantam, depois de baterem, que a noite
se move um pouco para a frente, para a eternidade.
Eu diria que sangra um ponto secreto
do meu corpo, e a noite estala imperceptivelmente
ou se queima como uma face. Escuta:
que a noite vagarosamente se queima
como a minha face.

Essa criança tem boca, há tantas finas raízes
que sobem do meu sangue. Um novo instrumento,
uma taça situou-se na terra, e há tantas
finas raízes que sobem do meu sangue. E uma candeia,
uma flor, uma pequena lira,
podem erguer-se de um rio de sangue, sobre o mundo -
um novo instrumento rodeado pelas campânulas 
inclinadas, por ligeiras pedras húmidas,
pelos animais que movem no seu calmo halo de fogo
as grandes cabeças sonhadoras.

Essa criança dorme sobre os meus lagos de treva.
Pensei algumas palavras para oferecer-lhe. Esqueço-me
tantas vezes dos mistérios dessa porta.
Porque então é muito estreita com seus espelhos
detrás, com o vestíbulo frio.
Mas é tão belo uma criança ainda enevoada,
uma criança que ascende como uma
grande música
desta rede de ossos, deste espinho do sexo,
da confusa pungência, escuta: da pungente
confusão
de um homem restrito com a sua vida tão lenta.

Essa criança é uma coisa que está nos meus dedos.
Às vezes debruço-me sobre as cisternas, e as vertigens,
e as virilhas em chama.
É a minha vida. Mas essa criança
é tão brusca, tão brusca, ela destrói e aumenta
o meu coração.
No outono eu olhava as águas lentas,
ou as pistas deixadas na neve
de fevereiro, ou a cor feroz,
ou a arcada do céu com um silêncio completo.
Misturava-se o vinho dentro de mim, misturava-se
a ciência na minha carne
atónita. Escuta: cada vez a minha vida
é mais hermética.
Essa criança tem os pés na minha boca
dolorosa.

Se ela um dia adormecer com cerejas junto ao pequeno
respirar, e sonhar
estes imensos arcos que os séculos vão colocando
sob os astros - e se de tudo
a sua cabeça estremecer como numa loucura,
com altos picos em volta, com enormes faróis
acendendo e apagando - escuta: se essa criança
imaginar, e todas as cordas se juntarem tensamente
para que ela invente o seu próprio rio
sem nome -
será ainda que do meu sangue se erguem finas
raízes, e o tenebroso tumulto
das minhas sombras
está no fundo, no fundo da sua ingénua vida,
da sua terrível vida sem remédio.
Se ela morrer, escuta, será que a minha boca
diz lá em baixo
essas majestosas e violentas palavras
dos poemas.

Essa criança que aperta as veias que iluminam
as minha garganta. Ela dorme. Escuta:
a sua vida estala como uma brasa, a sua vida
deslumbrante estala e aumenta.
Se um dia os archotes incendiarem essa boca,
e as faúlhas cercarem
o silêncio tremendo dessa pequena boca, escuta:

a minha boca, lá em baixo, está coberta de fogo.

  

herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996