13 abril 2014

miguel martins / provavelmente


Provavelmente, a próxima vez que ouvires falar de mim
será quando te disserem que morri
e que morri por minhas próprias mãos
(isso acontece).

Isso acontece do outro lado da ternura,
onde ela é demasiada e coisa rara,
vermelha e branca, ou seja, cor-de-rosa
quase transparente.

São coisas explicáveis e que não carecem de explicação
(já não),
como os incêndios, a fadiga extrema
ou o cheiro agreste da benzina.

São coisas da natureza dos comboios que passam
a alta velocidade
sem se importarem com os ratos e as flores
que nos carris fazem a sua lida.

È a morte,
uma coisa que tudo simplifica.


miguel martins
resumo
a poesia em 2012
documenta
2013







12 abril 2014

maria alberta menéres / queria dizer-te



Queria dizer-te que não sei
que há qualquer coisa
talvez desperdiçada  talvez não
Tu sentiste-a  disseste que era como
qualquer uma outra coisa que
esqueci
A tarde era  talvez já fosse tarde
e a noite não vinha
─  como sempre
Queria dizer-te mas não sei se agora
me saberás ouvir



maria alberta menéres
os mosquitos de suburna
1967




11 abril 2014

maria victoria atencia / ao sul



Ao sul de algum país está a minha casa
com discos de Bob Dylan e Purcell, e facturas,
e pudim de Yorkshire e livros a esperar-me,
e vozes que se cruzam pelos seus aposentos.
Mas o sangue tão frio do jasmim atravessa-me
quando a tarde tomba e escrevo, como agora,
ou pelo meus ausentes me calo no terraço.
Um cão grande acossado ladra no elevador.



maria victoria atencia
antologia poética
paulina o el libro de las aguas
tradução josé bento
assírio & alvim
2000



10 abril 2014

leopoldo maria panero / os imortais


cada consciência procura a morte da outra
hegel


Na luta entre consciências algo caiu ao chão
e o fragor de cristais alegrou a assembleia
Desde então habito entre os imortais
Onde um rei come defronte ao Anjo caído
e semelhantes a flores a morte nos desfolha
e lança no jardim onde crescemos
temendo que nos chegue a recordação dos homens.



leopoldo maria panero
poemas do manicómio de mondragón
trad. de jorge melícias
ed. alma azul
2003




09 abril 2014

maria do rosário pedreira / não partas já



Não partas já. Fica até onde a noite se dobra
para o lado da cama e o silêncio recorta
a margem do tempo. É aí que os livros
começam devagar e as cores nos cegam
e as mãos fazem de norte na viagem. Parte apenas

quando a manhã se ferir nos espelhos do quarto
em estilhaços de luz, e um feixe de poeiras
rasgar as janelas como uma ave desabrida.
Alguém murmurará então o teu nome, vagamente,
Omo a gastar os dedos na derradeira página.

E então, sim, parte, para que outra história se
invente mais tarde, quando os pássaros gritarem
à primeira lua e os gatos se deitarem sobre
o muro, de olhos acesos, fingindo que perguntam.



maria do rosário pedreira
a casa e o cheiro os livros
gótica
2002




08 abril 2014

paul auster / fragmento de frio



Porque cegamos
no dia que sai connosco,
e porque vimos o nosso hálito
embaciar
o espelho do ar,
a nada se abrirá
o olho do ar
senão à palavra
que renunciamos: o inverno
terá sido um espaço
de maturidade.

Nós que nos tornamos nos mortos
de outra vida que não a nossa.


paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002



07 abril 2014

manuel alegre / e alegre se fez triste



Aquela clara madrugada que
viu lágrimas correrem no teu rosto
e alegre se fez triste como se
chovesse de repente em pleno agosto.

Ela só viu meus dedos nos teus dedos
meu nome no teu nome. E demorados
viu nossos olhos juntos nos segredos
que em silêncio dissemos separados.

A clara madrugada em que parti.
Só ela viu teu rosto olhando a estrada
por onde um automóvel se afastava.

E viu que a pátria estava toda em ti.
E ouviu dizer-me adeus: essa palavra
que fez tão triste a clara madrugada.




manuel alegre
o canto e as armas
europa-américa
1979



06 abril 2014

àlex susanna / visões




Da janela oval do avião
levas os olhos à estranha paisagem
onde bem poderias passear,
tens dificuldade em reconhecer
o mais breve caminho que se ofereça,
tornado ruga milenária
ou vazio antediluviano.                             
Tudo parece tão longínquo e disforme
que decides ignorá-lo.
 
Acontece tanto na vida como na poesia:
quando estas se elevam ou afastam demais
daquilo que te é familiar
fazem com que percas o interesse
porque preferes vivê-las de baixo,
do nível zero, esse
onde as coisas são como são:
caminhar exige sempre um mínimo de esforço.


àlex susanna
poemas
tradução de egito gonçalves




05 abril 2014

fernando pessoa / chove



Chove. Que fiz eu da vida?
Fiz o que ela fez de mim...
De pensada, mal vivida...
Triste de quem é assim!

Numa angústia sem remédio
Tenho febre na alma, e, ao ser,
Tenho saudade, entre o tédio,
Só do que nunca quis ter...

Quem eu pudera ter sido,
Que é dele? Entre ódios pequenos
De mim, 'stou de mim partido.
Se ao menos chovesse menos!



fernando pessoa




04 abril 2014

adília lopes / clarice lispector



Clarice Lispector,
a senhora não devia
ter-se esquecido
de dar de comer aos peixes
andar entretida
a escrever um texto
não é desculpa
entre um peixe vivo
e um texto
escolhe-se sempre o peixe
vão-se os textos
fiquem os peixes
como disse Santo António
nos textos



adília lopes
clube da poetisa morta
caras baratas
antologia
relógio d´água
2004




03 abril 2014

josé de almada negreiros / esperança



Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu fi-lo perfeitamente.
Para diante de tudo foi bom
bom de verdade
bem feito de sonho
podia segui-lo como realidade

Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu sei-o de cor.
Até reparo que tenho só esperança
nada mais do que esperança
pura esperança
esperança verdadeira
que engana
e promete
e só promete.
Esperança:
pobre mãe louca
que quer pôr o filho morto de pé?

Esperança
único que eu tenho
não me deixes sem nada
promete
engana
engano que seja
engana
não me deixes sozinho
esperança.



josé de almada negreiros




02 abril 2014

amalia bautista / a dieta



Deitei-me sem jantar, naquela noite
sonhei que te comia o coração.
Suponho que seria pela fome.
Enquanto devorava aquela fruta
─ era doce e amarga ao mesmo tempo ─
tu beijavas-me com os lábios frios,
mais frios e mais pálidos que nunca.
Suponho que seria pela morte.



amalia bautista
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004



01 abril 2014

manuel antónio pina / como desenhar uma casa



Primeiro abre-se a porta
por dentro sobre a tela imatura onde previamente
se escreveram palavras antigas: o cão, o jardim impresente,
a mãe para sempre morta.

Anoiteceu, apagamos a luz e, depois,
como uma foto que se guarda na carteira,
iluminam-se no quintal as flores da macieira
e, no papel de parede, agitam-se as recordações.

Protege-te delas, das recordações,
dos seus ócios, das suas conspirações;
usa cores morosas, tons mais-que-perfeitos:
o rosa para as lágrimas, o azul para os sonhos desfeitos.

Uma casa é as ruínas de uma casa,
uma coisa ameaçadora à espera de uma palavra;
desenha-a como quem embala um remorso,
com algum grau de abstracção e sem um plano rigoroso.



manuel antónio pina
como desenhar uma casa
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012