17 novembro 2013

endre kukorelly / quem não suspeita




Quem não suspeita do que
existe. Porque apanhei, o que não é costume,
um troleicarro. Um curto sprint. Mas
não desligo logo. Não logo
da satisfação. Contudo
apesar de arquejante ainda
se ouve, façam o favor de sair.
Saiam todos. Disse
o microfone, e os passageiros
do trólei saíram. Eram
nove. Nove ou dez. Então
viram que se partiu,
de facto, o cabo. E viu-se
que de facto sim. Depois todos
ponderavam no que seria
o ideal. O que vão
fazer nesta enrascada.
Também eu fiz o mesmo. A mim
chateia-me mais. Outros serão
mais tolerantes. A mesma
matéria. A mesma e diferente.

  

endre kukorelly
um jardim de plantas medicinais
trad., rev., compl. e apresent. fernando pinto do amaral
poetas em mateus
quetzal
1997



16 novembro 2013

daniel filipe / pátria lugar de exílio



Neste ano de 1962
não como Nazim Hikmet no avião de pedra
mas na minha cidade
livre de ir onde quiser
e no entanto prisioneiro
neste ano de 1962
exactamerite
em Lisboa
Avenida de Roma número noventa e três
às três horas da tarde

Neste ano de 1962
encostado a urna esquina da estação do Rossio
 esperando talvez a carta que não chega
um amor adolescente
meu Paris tão distante
minha África inútil
aqui mesmo

aqui de mãos nos bolsos e o coração cheio de amargura
cumprindo os pequenos ritos quotidianos
cigarro após o almoço
café com pouco açúcar
má-língua e literatura

Aqui mesmo a não sei quantos graus de latitude
e de enjoo crescente
solitário e agreste
invisível aos olhos dos que amo
ignorado por ti pequeno empregado de escritório preocupado
com um erro de contas
incapaz de dizer toda a minha ternura
operária de fábrica com três filhos famintos

Aqui mesmo envolto na placidez burguesa
higienicamente limpo e com os papéis em ordem
vestido de nylon dralon leacril
com acabamentos sanitized
e lugar marcado junto do aparelho de TV
eu
enjoado de tudo e contemporizando com tudo
eu
peça oleada do mecanismo de trituração
eu
incapaz de suicídio descerrando um sorriso-gelosia
eu
apesar de tudo vivo apesar de tudo inquieto
apesar de tudo farto
eu
neste ano de 1 962
exactamente
não ontem mas precisamente às três horas da tarde
pela hora oficial
exilado na pátria



daniel filipe
pátria lugar de exílio





15 novembro 2013

pedro spigolon barbosa / a muralha



               “Construímos muralhas por todos os lados
               para que o olhar não sofresse de imensidão”
               – Tiago Fabris Rendelli


Ergueram uma muralha no horizonte
de nosso coração enraizado.
Por todos os lados
as pedras tapam
a imensidão furtada
de tuas raízes soníferas.
Onde estará a vastidão do mundo
já que tu és tão pequeno?
Tu és tu mesmo quando repousas
o peso da miséria na piedade de terceiros?
Tu és tu mesmo quando
persegues o crepúsculo de tua hora
numa ânsia nem do dia nem da noite?
Quando rodeias em dança
a cabeça do Batista
festejando o esquartejamento
dos santos no século?
Quando te vingas dos pássaros
que escrevem no céu
teu nome conjugado
com a morte?
Quando vais ao mercado
ofertar teu sexo de máquina por
                     Bananas nanicas?
Quando beijas alguém não por paixão
mas para povoar, num desespero,
teu atiçado desejo miserável?
Tu és tu mesmo quando o sono
quebra teu dente
e numa fome de sonâmbulo
te empanturras das fatias lazarentas
de teu espirito moderno?
Tu és tu mesmo
quando te omites de ti?
Quando te afugentas da febre
que amanhece tua alma trancafiada?

[Fresta]

(Que paixões cantam os pássaros
para além desses muros?
De que brincam as crianças
que correm por essa vastidão?
Quais as novas cores
desse céu de aquarela?
Que desenhos rabiscam
as nuvens de lá?)
Ide! Eu sou a Dinamite
A dilacerar teus estreitos limites
A predar a pedra
que edifica tua ninharia
A lançar veredas
que te lavem os olhos.
Se Crer, há de despertar
e levantar quando ouvir:

“— Lázaro, vem para fora”.




pedro spigolon barbosa
euOnça
ano_um_volume_um
editora medita
2013



14 novembro 2013

antónio ramos rosa / telegrama sem classificação especial


                    Ao Egito Gonçalves



Estamos nus e gramamos.

Na grama secular um passarinho verde
canta para um poema lírico, para um poeta lírico,
que se nasceu
é certo que não cantou.

As paisagens continuam a existir.
As paisagens são suaves.
Continuam também a existir
outras coisas
que dão matéria para poemas.
A vida continua.
Felizmente que há ódios, comichões, vaidades.
A estupidez, esta crassa crença intratável, esta confiança
             indestrutível em si mesmo,
é o que felizmente dá uma densidade, uma plenitude a isto.

Num mundo descoroçoante de puras imagens
é bom este banho de resistências, pressões, vontades, atritos,
é bom navegar.
porque este presente é logo saudoso.

Na grama um passarinho canta.
Evidentemente que o poeta suicidou-se.

A vida continua.
Certas coisas que pareciam mortas
estão agora vivas ou, pelo menos, mexem-se.
Ausentes, dominam-nos.
Não é para nós que utilizam as palavras,
que insistem,
não é para nós!
Estes grandes ornamentos, estes sábios discursos
fluem em visões, em ondas, como se não no presente.
Ter-se-á o presente extinguido?
A vida continua tão improvávelmente.

Na grama um passarinho canta.
Canta por cantar, ou não, canta.

Eu poderia, com rigor, agora
cantar:
                      Os anjos exactos
                      que empunham tesouras
                      de encontro aos factos
                      - ó minhas senhoras!

Ou rigorosamente ainda,
com veemente exactidão,
inutilizar o poema,
todos os poemas
porque

Estamos nus e gramamos.

  
4 de Janeiro de 1952




antónio ramos rosa
«árvore» - 4
1953





13 novembro 2013

mário cesariny / discurso ao príncipe de epaminondas, mancebo de grande futuro



Despe-te de verdades
das grandes primeiro que das pequenas
das tuas antes que de quaisquer outras
abre uma cova e enterra-as
a teu lado
primeiro as que te impuseram eras ainda imbele
e não possuías mácula senão a de um nome estranho
depois as que crescendo penosamente vestiste
a verdade do pão      a verdade das lágrimas
pois não és flor nem luto nem acalanto nem estrela
depois as que ganhaste com o teu sémen
onde a manhã ergue um espelho vazio
e uma criança chora entre nuvens e abismos
depois as que hão-de pôr em cima do teu retrato
quando lhes forneceres a grande recordação
que todos esperam tanto porque a esperam de ti
Nada depois, só tu e o teu silêncio
e veias de coral rasgando-nos os pulsos
Então, meu senhor, poderemos passar
pela planície nua
o teu corpo com nuvens pelos ombros
as minhas mãos cheias de barbas brancas
Aí não haverá demora nem abrigo nem chegada
mas um quadrado de fogo sobre as nossas cabeças
e uma estrada de pedra até ao fim das luzes
e um silêncio de morte à nossa passagem



mário cesariny
manual de prestidigitação
assírio & alvim
1981




12 novembro 2013

josé gomes ferreira / todas as noites toca um telefone na lua


LIX

Todas as noites toca um telefone na Lua.
Sou eu, sou eu a marcar o número automático dos poetas de hoje
para gritar cá de baixo em código de astros:
Está lá? Está lá? Aqui Terra, zero, zero, zero, zero, zero.
S. O. S! Fome, ódio de mil patas, tiranos com cutelos de cinzas,
bandeiras de pele humana, olhos furados de cardos,
mortos que só vêem o céu através dos caminhos das raízes
— e as mães a baterem nos filhos
para lhes ensinarem a instrução primária das lágrimas.

Aqui escravos, preguiça, azorragues de chumbo derretido,
exportação de tédio dos palácios dos ricos, carregamentos de bocejos,
suor em latas para discursos de demagogos,
mordaças com restos de bocas de cadáveres,
fúria de túmulos, guerra, raptos, incestos, automóveis imbecis,
saques, mandíbulas nos olhos a roerem o azul
— e os dedos de súbito de ferro-em-brasa nos seios das mulheres,
lodo de sol aparente
que continuam a ser deusas nos jantares  de cerimónia
com os colos luzidios das horas empertigadas.

Aqui planeta zero, zero, zero, nada, torres de musgo,
punhais a rasgarem noites em vez de chagas,
países de arame farpado, vulcões de sangue,
batalhas trespassadas do frio dos esqueletos concretos
— e ainda por cima a carne das mulheres só é real um momento,
um momento apenas
e em vão tentamos fixá-la com um sopro de frio
no rasto deste defunto com um caixão às costas
cheio de corações vivos.

S. O. S.! S. O. S.!

Fantasmas de todos os planetas! Fantasmas de todos os planetas!
Saltai em pára-quedas no silêncio que há por dentro do silêncio
e vinde salvar-nos!

Vinde salvar os homens
para aqui abandonados ao pesadelo de si mesmos,
só a serem homens,
homens apenas,
homens sempre,
de manhã até à noite,
semi-homens,
infra-homens,
super-homens,
ex-homens...

E fartos, fartos, fartos, fartos, fartos,
desta desistência
de já nem quererem ser deuses!

Nem de transformarem os cavalos em relâmpagos!



josé gomes ferreira
poesia III
1943-1944-1945
portugália
1971




11 novembro 2013

seamus heaney / o mestre



Ele vivia em si próprio
como um corvo numa torre sem telhado.

Para me aproximar eu tinha de escalar
longas e agrestes muralhas desertas
e não estremecer, nem erguer o olhar
à procura de um olhar vigilante
no canto onde ele tivesse o seu retiro.

Deliberadamente ele abria
o seu livro do segredo
uma página de cada vez
e nada era arcana, só as velhas regras
que todos tínhamos inscrito nas lousas.
Cada carácter estampado no pergaminho, seguro
no seu volume e medida.
A cada máxima dado o seu espaço.

Diz a verdade. Não tenhas medo.
Noções duradouras, obstinadas,
como martelos e cunhas de pedreiros
comprovados pelos rigores do seu uso.
Quais cumeeiras onde se repouse
no refrigério de uma nascente.

Como me senti frágil ao descer
as escadas sem protecção, contra a muralha,
escutando o propósito e a empresa
lá em cima, num golpe de asa.



seamus heaney
tradução de rui carvalho homem



10 novembro 2013

edwin arlington robinson / richard cory



Quando Richard Cory ia à cidade,
As pessoas na calçada se voltavam para ele;
Era, da cabeça aos pés, um cavalheiro,
Os traços nítidos, senhorialmente esbelto.

Sabia vestir-se, mas sem afectação,
Quando falava era sempre muito humano;
Todavia, o coração acelerava-se ao ouvi-lo dizer: “Bom dia!”
E ao andar dir-se-ia que tinha uma auréola.

Era rico, sim, mais rico do que um rei
E admiravelmente destro em todas as artes;
Nós, enfim, não nos cansávamos de supor
Que estar no seu lugar seria mais do que um sonho.

E assim trabalhávamos, aspirando à luz,
A maldizer o pão, vivendo quase à míngua:
E, numa calma noite de estio, Richard Cory
Foi para casa e estourou os miolos.



edwin arlington robinson
(e.u.a., 1869-1935)
tradução de breno silveira



09 novembro 2013

eugénio de andrade / é quando a chuva cai, é quando




É quando a chuva cai, é quando
olhado devagar que brilha o corpo.
Para dizê-lo a boca é muito pouco,
era preciso que também as mãos
vissem esse brilho, dele fizessem
não só a música, mas a casa.
Todas as palavras falam desse lume,
sabem à pele dessa luz molhada.

  
eugénio de andrade




08 novembro 2013

augusto meneghin / boletim meteorológico do amor




nada de ser perfeito,
medir as coisas pela fita métrica
e dizer te amo demais. a maresia,
o ritmo bastam para solucionar
estes desencontros habituais dos lábios.
ninguém precisa amar um estofado
cuja cor nos obriga a alegria.
é insuportável que a louça esteja
sempre limpa e guardada no armário.
pela manhã é bom que a xícara
tenha um café seco em seu fundo
onde se enxerga um mapa-múndi das
brigas desde o início de nossa relação.
sim, viver é insuportável se não houver
ao menos uma chuva que destrua parte
da casa ou deixe uma estrada de barro
pela sala de estar. outra coisa misteriosa
é como gritar sem que ninguém perceba,
sofrer por alguma desconfiança tola
e sorrir escondido quando o destino
nos mostra que a imaginação humana
não passa de um alçapão bem elaborado.
como investigar uma beleza de bruços?
seduzir com algum filtro secreto
estando com um pijama rasgado?
e conciliar a aliança com essa vontade
insaciável de despir outras pessoas?
em algum momento avançado da velhice
talvez os orgãos parem de funcionar
e uma ereção torne—se um evento glorioso,
quem sabe? morrer antes não é má ideia
se colocarmos o abandono como única possibilidade.
nenhum asilo com cerca cor de rosa
conseguiu me convencer que o corpo pode
esperar o fim depois da poesia.
mas não é curioso como o amor
nos conduz envolventemente
por uma linha temporal inventando
imagens de morte,
esquecimento e abandono?
a cor, neste caso, é velocidade.
o botão da camisa, um pretexto,
a gema mole, um desgosto,
o cachorro, um dilema,
o sexo, um hábito.
por que este capítulo de ventos
ainda é surpreendente?
já não basta de poemas, literatura,
psicologia e traição?
por que os olhos ainda brilham depois
de tantos anos secando lentamente
e as roupas no varal sendo molhadas
por deus quem as esqueceu novamente?
vai longe o balão
tocar o teto de uma nuvem.
é sempre assim.

  

augusto meneghin
euOnça
ano_um_volume_um
editora medita
2013




07 novembro 2013

thom gunn / o concerto ao ar livre



Na orla
da compreensão
está o segredo.

Reconheces não
o seu conteúdo, mas
o facto que está
lá para ser reconhecido.

O pó levantado
por vendedores e dançarinos
lança reflexos no ar calmo
onde fica suspenso
como se nunca fosse pousar.

O segredo
é ainda segredo

não é uma proposição:
está em encontrar
o que liga o homem
à música, aos
ouvintes, ao nevoeiro
no topo do eucalipto,
ao pó descoberto no bocal
e, depois, em viver um instante
nessa luminosa intercepção,
difundida no centro
como uma aranha branca de jardim
tão tranquila
que a julgas
ter-se tornado a sua própria teia,

um deus existindo
apenas na sua criação.




thom gunn
a destruição do nada e outros poemas
trad. maria de lurdes guimarães
relógio d´água
1993



06 novembro 2013

gil t. sousa / memória


21

e vinha a luz
e guardava-te

e eu guardava-te
também

em lugares mais seguros
que fotografias
ou poemas


gil t. sousa
água forte
2005



05 novembro 2013

cesare pavese / paisagem VI



Este é o dia em que as brumas do rio saem
para a bela cidade no meio de prados e colinas
e a esfumam como uma recordação. Os vapores confundem
os verdes, mas as mulheres das cores vivas ainda
caminham por ela. Vão na branca penumbra
sorridentes: na rua tudo pode acontecer.
Pode acontecer que o ar embebede.

A manhã
ter-se-á aberto num dilatado silêncio
atenuando as vozes. Até o pedinte,
que não tem cidade nem casa, o terá respirado,
como aspira o copo de aguardente ao desjejum.
Vale a pena ter fome ou ter sido traído
pela boca mais doce, só para sair com aquele céu
e voltar a encontrar no hálito as mais diáfanas recordações.

Cada rua, cada simples esquina
na bruma conserva um antigo tremor:
quem o sente não pode abandonar-se. Não pode abandonar
a sua embriaguês tranquila, feita de coisas
duma vida cheia, descobertas ao acaso
duma casa ou duma árvores, dum súbito pensamento.
Também os grandes cavalos que passarão
entre as brumas de madrugada falarão daquele tempo.

Ou talvez um rapaz fugido de casa
volte precisamente hoje em que a bruma
se eleva sobre o rio e esqueça toda a vida,
a miséria, a fome e as lealdades traídas,
para parar a uma esquina bebendo a manhã.
Vale a pena voltar, mesmo que seja diferente.



cesare pavese
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997