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30 outubro 2022

augusto meneghin / brasil

 
dedicado ao falecido Ginsberg
 

 
                Tudo, nos séculos, transformou-se incessantemente. Só ela,  a
                classe dirigente, permaneceu igual a si mesma, excedendo sua
                                                                       interminável hegemonia.
 
                                                                                       Darcy Ribeiro
 
 


Brasil não sou um pão
Como andam suas novas meias?
Já descobriu o sentido de suas cores e palavras?
Brasil preciso de um colírio que me enjoe
Estou realmente apaixonado pelo Rio São Francisco
Você viu o que fizeram no regime militar?
Brasil eu te dou cem reais e você me devolve uma favela
Ontem mesmo alguém virou um número de balas perdidas
Brasil eu quero chorar mas você só pensa em rir
Será que você se algemou na TV?
Brasil eu não sei o que é justiça
Quando eu era pequeno assisti a copa de 94 e tudo
                                                     parecia mágico
Mas hoje sei que era apenas o sabor daquele misto-quente
Você sabe algum segredo?
Brasil você fabrica religiões
Será que as filas são algum tipo de redenção?
Brasil suas crianças estão fodendo
Meus votos nunca decapitaram ninguém
Queria ver um quadro de Portinari sobre um massacre
                                                               no Senado
Brasil eu não sou um de seus cristãos
Há uma guerra entre os tucanos as estrelas e as forjas
Brasil seu samba não é mais negro
Foi você que comeu minha mãe e deixou meu pai sem
                                                             emprego na
gaveta antidepressiva
& quando acabarem com nossos lagos?
Brasil você precisa transar com alguém
Precisa saber que isso não é uma piada e passar adiante
Brasil eu não sou louco
Sonhei que tinha uma ladeira cheia de poetas mortos
& eu gosto de seu Café
Brasil por que estou insatisfeito se já disseram que tenho
                                                                      tudo que
Muitos não têm?
Brasil eu ainda quero chorar
Nunca li na escola um poeta Assassino ou Gay ou que
                                                              tivesse um
Vício Maldito (eu nunca soube)
Por que Brasil?
Sua porta é um grande arquivo de Secretaria
Eu nunca contei seus estados no mapa
Brasil eu quero seu cu
Não importa o que aconteça será sagrado
D. Pedro é um babaca e seu cavalo branco mentiroso
Brasil Tiradentes não é Jesus
Será que você assombrou a liberdade?
Por que ninguém traduziu o Mahabhárata?
O Redentor combina com sorvete
Brasil você é uma novela das oito sem final escrito
Brasil eu sou angústia
Já me excitei com o amor triunfante de Caravaggio
Brasil é preciso fazer alguma coisa sem chamar os médicos
Meu câncer virá de suas chaminés de diamante
Brasil seu julgamento é uma hipótese
Você ainda não coroou as verdadeiras putas
Brasil você precisa de um conselho
Essa noite eu tive um sonho erótico com suas pradarias
Brasil porque é preciso morrer queimado na Amazónia
Porque eu estava vivo a partir de 87
& porque serafins me visitavam em Sodoma
Brasil eu amo São Paulo
Sou um garoto do interior que beijou Baudelaire e
                                          abandonou as igrejas
O blues de Ray Charles me transformou em Clarividente
Brasil há muita dor
Nas entranhas de Brasília não existem violões
Brasil eu preciso de uísque
Não sou capaz de ser um trabalhador
Amanhã meu alfaiate vai tirar as medidas para meu
                                                              terno de
Defunto
Brasil descobri que sou um Mistério
O que realmente me incomoda é a vastidão dos oceanos
Vou sair para comprar um cigarro & já volto
Brasil suas ampolas são metafísicas
Já cortei o cabelo em um Barbeiro Embriagado
Brasil eu não conheço o sue sexo
Brasil eu queria uma farmácia cheia de floriculturas
Brasil eu queria uma farmácia cheia de poemas
Os pardais não parecem brasileiros
As Academias são manicômios da Igreja
As Igrejas são manicômios da Miséria
Brasil eu desejo um paradoxo
Quero Augusto dos Anjos em versos brancos
& morar na Sombra de sua Melancolia
& ser agarrado pela noite sem sapatos
& me afogar no mar poluído da Separação
& dançar até o Apocalipse
Das crianças mortas
 
 
 
augusto meneghin
um brasil ainda em chamas
antologia de poesia brasileira contemporânea
organiz. wilson alves-beserra & jefferson dias
contracapa
2022




16 novembro 2019

augusto meneghin / aurora consurgens







veja bem    como poderemos
desafogar o mercúrio    Antonio
se tudo o que temos
são apenas trapos fervidos?
e este vinho
fermentado em plena sexta-feira
poderá por acaso
extrair de nossa loucura
uma lucidez estóica?
os ciganos se vão    Antonio
    as caravanas
o amargo da nectarina velha
até mesmo aquele velho romance
que relemos tantas vezes
por não termos mais que um livro
e um vidro de azeitonas.

o calendário na porta
uma mandrágora seca
para espantar os espíritos
e impedir que as crianças
morram todas
de uma disenteria industrial.
    aqui neva
mas nunca tivemos gelo
ou sequer um recinto
com os mantimentos que duram
    você fuma demais
e bebe exageradamente
:
deve ser por isso que neva
mas nunca tivemos gelo

foi algum conquistador
que esqueceu seu canhão
no deserto em que moramos
e agora as crianças brincam
enfurecendo o espírito ruivo
de um bucaneiro qualquer
    veja como pulam sobre a boca
e testam o eco
sem medo de serem mutiladas
    quando eu crescer serei como elas
só que mais velha
e sem canhão
serei mais negra também
guardando em cada bolso
uma esperança e uma estrela
(não importa a ordem)

parece um sonho    Antonio
este lugar que moramos
e você fazendo amor
:
o vento que abre
tanto as pernas
quanto os demônios que você me ensinou
    agora tenho mais demônios
do que quando casamos.
    naquela época eu apenas sabia
que a primeira vez iria doer
o resto aprendi tudo sozinha
por isso neva
e nunca tivemos gelo
apenas o barulho das crianças
e o canhão enferrujado

veja lá
se encontram um tabuleiro de xadrez
    meu bisavô dizia
que o jogo de xadrez
explicaria a vida
se ele soubesse jogar
por isso o enterrou bem longe
na esperança que seu segredo
não fosse achado por ninguém
    morreu sabendo apenas
que o peão andava para frente
e era peça
pouco importante

o sol é longe        Antonio?
pensam que somos pobres
porque somos ignorantes
    eles não sabem
que você é alquimista
e que faremos ouro
com o parafuso da fábrica

já está noite.
não quero fazer amor



augusto meneghin
o mar sem nós
editora urutau
2019






08 novembro 2013

augusto meneghin / boletim meteorológico do amor




nada de ser perfeito,
medir as coisas pela fita métrica
e dizer te amo demais. a maresia,
o ritmo bastam para solucionar
estes desencontros habituais dos lábios.
ninguém precisa amar um estofado
cuja cor nos obriga a alegria.
é insuportável que a louça esteja
sempre limpa e guardada no armário.
pela manhã é bom que a xícara
tenha um café seco em seu fundo
onde se enxerga um mapa-múndi das
brigas desde o início de nossa relação.
sim, viver é insuportável se não houver
ao menos uma chuva que destrua parte
da casa ou deixe uma estrada de barro
pela sala de estar. outra coisa misteriosa
é como gritar sem que ninguém perceba,
sofrer por alguma desconfiança tola
e sorrir escondido quando o destino
nos mostra que a imaginação humana
não passa de um alçapão bem elaborado.
como investigar uma beleza de bruços?
seduzir com algum filtro secreto
estando com um pijama rasgado?
e conciliar a aliança com essa vontade
insaciável de despir outras pessoas?
em algum momento avançado da velhice
talvez os orgãos parem de funcionar
e uma ereção torne—se um evento glorioso,
quem sabe? morrer antes não é má ideia
se colocarmos o abandono como única possibilidade.
nenhum asilo com cerca cor de rosa
conseguiu me convencer que o corpo pode
esperar o fim depois da poesia.
mas não é curioso como o amor
nos conduz envolventemente
por uma linha temporal inventando
imagens de morte,
esquecimento e abandono?
a cor, neste caso, é velocidade.
o botão da camisa, um pretexto,
a gema mole, um desgosto,
o cachorro, um dilema,
o sexo, um hábito.
por que este capítulo de ventos
ainda é surpreendente?
já não basta de poemas, literatura,
psicologia e traição?
por que os olhos ainda brilham depois
de tantos anos secando lentamente
e as roupas no varal sendo molhadas
por deus quem as esqueceu novamente?
vai longe o balão
tocar o teto de uma nuvem.
é sempre assim.

  

augusto meneghin
euOnça
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editora medita
2013