veja bem como poderemos
desafogar o mercúrio Antonio
se tudo o que temos
são apenas trapos fervidos?
e este vinho
fermentado em plena sexta-feira
poderá por acaso
extrair de nossa loucura
uma lucidez estóica?
os ciganos se vão Antonio
as caravanas
o amargo da nectarina velha
até mesmo aquele velho romance
que relemos tantas vezes
por não termos mais que um livro
e um vidro de azeitonas.
o calendário na porta
uma mandrágora seca
para espantar os espíritos
e impedir que as crianças
morram todas
de uma disenteria industrial.
aqui neva
mas nunca tivemos gelo
ou sequer um recinto
com os mantimentos que duram
você fuma demais
e bebe exageradamente
:
deve ser por isso que neva
mas nunca tivemos gelo
foi algum conquistador
que esqueceu seu canhão
no deserto em que moramos
e agora as crianças brincam
enfurecendo o espírito ruivo
de um bucaneiro qualquer
veja como pulam sobre a boca
e testam o eco
sem medo de serem mutiladas
quando eu crescer serei como
elas
só que mais velha
e sem canhão
serei mais negra também
guardando em cada bolso
uma esperança e uma estrela
(não importa a ordem)
parece um sonho Antonio
este lugar que moramos
e você fazendo amor
:
o vento que abre
tanto as pernas
quanto os demônios que você me ensinou
agora tenho mais demônios
do que quando casamos.
naquela época eu apenas sabia
que a primeira vez iria doer
o resto aprendi tudo sozinha
por isso neva
e nunca tivemos gelo
apenas o barulho das crianças
e o canhão enferrujado
veja lá
se encontram um tabuleiro de xadrez
meu bisavô dizia
que o jogo de xadrez
explicaria a vida
se ele soubesse jogar
por isso o enterrou bem longe
na esperança que seu segredo
não fosse achado por ninguém
morreu sabendo apenas
que o peão andava para frente
e era peça
pouco importante
o sol é longe Antonio?
pensam que somos pobres
porque somos ignorantes
eles não sabem
que você é alquimista
e que faremos ouro
com o parafuso da fábrica
já está noite.
não quero fazer amor
augusto meneghin
o mar sem nós
editora urutau
2019
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