A cabeça de vaca da minha tia mais velha
repousa em guerra lenta no cemitério maior.
Rói-lhe o bicho das contas a fímbria da orelha.
Rói-lhe o rato da raiva as narinas sem cor.
Repousa em paz Raposa que na toca
fareja a galinhola e o fricassé.
Já não mija mas cheira
já não vive mas ousa
ser a santa que foi ser o
estrume que é.
A cabeça de vaca de minha tia refoga
nas lágrimas burguesas da família enlatada
cozinha-lhe a memória um viúvo de toga
descasca-lhe a cebola uma filha frustrada.
A cabeça de vaca de minha tia meneia
o sim-sim i não-não dos outros semivivos
na família a razão de se morrer a meias
é a exalação dos suspiros cativos.
Se não fosse o desgosto se não
fosse a gordura
o retrato na sala o buraco no
ventre
se não fosse de força tinha feito a escritura
nem sequer houve tempo para o oiro dos dentes.
Minha tia mastiga minha tia
castiga
na saleta do inferno as almas dos criados:
– não me limpaste o pó a campa
tem urtigas
atrasaste o jantar dos condenados.
A cabeça de vaca de minha tia sem nome
coze no fogo brando do que é passar à história.
Dissolve-se na boca resolve-se
na fome
Do senhor que a devora em sua santa glória.
ary dos santos
vinte anos de poesia
insofrimento in sofrimento, 1969
círculo de leitores
1983
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