Ao Egito Gonçalves
Estamos nus
e gramamos.
Na grama
secular um passarinho verde
canta para
um poema lírico, para um poeta lírico,
que se
nasceu
é certo que
não cantou.
As paisagens
continuam a existir.
As paisagens
são suaves.
Continuam
também a existir
outras
coisas
que dão
matéria para poemas.
A vida
continua.
Felizmente
que há ódios, comichões, vaidades.
A estupidez,
esta crassa crença intratável, esta confiança
indestrutível em si mesmo,
é o que
felizmente dá uma densidade, uma plenitude a isto.
Num mundo
descoroçoante de puras imagens
é bom este
banho de resistências, pressões, vontades, atritos,
é bom
navegar.
porque este
presente é logo saudoso.
Na grama um
passarinho canta.
Evidentemente
que o poeta suicidou-se.
A vida
continua.
Certas
coisas que pareciam mortas
estão agora
vivas ou, pelo menos, mexem-se.
Ausentes,
dominam-nos.
Não é para
nós que utilizam as palavras,
que
insistem,
não é para
nós!
Estes
grandes ornamentos, estes sábios discursos
fluem em
visões, em ondas, como se não no presente.
Ter-se-á o
presente extinguido?
A vida
continua tão improvávelmente.
Na grama um
passarinho canta.
Canta por
cantar, ou não, canta.
Eu poderia,
com rigor, agora
cantar:
Os anjos exactos
que empunham tesouras
de encontro aos factos
- ó minhas senhoras!
Ou
rigorosamente ainda,
com veemente
exactidão,
inutilizar o
poema,
todos os
poemas
porque
Estamos nus
e gramamos.
4 de Janeiro
de 1952
antónio ramos rosa
«árvore» - 4
1953
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