29 abril 2013

constantino cavafy / a origem


  
Consumara-se o prazer ilícito.
Ergueram-se ambos do catre humilde.
À pressa se vestiram, sem falar.
Saíram separados, furtivamente;
e, ao caminhar inquietos pela rua,
como que receavam que algo neles traísse
em que espécie de amor há pouco se deitavam.

Mas quanto assim ganhou a vida do poeta!
Amanhã, depois, anos depois, serão
escritos os versos de que é esta a origem.

                                                          [1921]



constantino cavafy
90 e mais poemas
trad jorge de sena
edições asa
2003



28 abril 2013

franz kafka / diários




1912, 12 de março

No elétrico que passou rapidamente estava sentado a um canto, a face contra a janela, o braço direito estendido ao longo do encosto do banco, um jovem com o sobretudo desabotoado, muito largo para ele, a olhar para o comprido banco vazio. Tinha ficado noivo hoje e não conseguia pensar noutra coisa. O facto de estar noivo dava-lhe uma sensação de conforto e com esta sensação ele olhava de vez em quando para cima, para o tecto do carro eléctrico. Quando o condutor lhe veio vender o bilhete, encontrou facilmente e no meio do tilintar de moedas a moeda exacta, com um gesto só colocou-a na mão do condutor e pegou no bilhete com dois dedos que ele abria como se fosse uma tesoura. Não havia nenhuma ligação verdadeira entre ele e o carro elétrico e não teria sido uma surpresa se, sem ter usado a plataforma e os degraus, ele tivesse aparecido na rua e tivesse ido no seu caminho a pé e com o mesmo ar.

Só o sobretudo grande de mais existia, tudo o resto foi imaginado.




franz kafka
diários (1910-1923)
trad. maria adélia silva melo
difel
1986



27 abril 2013

armando silva carvalho / em sintra, numa cama




Deitado nesta cama, onde dormiste
onde pesaste o corpo
onde sentiste o gravitar
da chuva o vento
a cobra do vento,

deitado nesta, onde caíste
no alçapão directo das saudades
nas podres drogarias do meu siso,
deitado nesta cama, onde um
penico arde com cigarros,
olhado pelos jarros,
pelos bigodes de um velho
e a mansa mão da esfinge
sobre a mesa,

eu leio nas paredes que me estalam
porque secas de som,
bisonhas redacções de juventude,
sinais de vestuário,
peças de roupa interior
que outrora me feriam.
As linhas que compunha
na bruma caligráfica do tempo
onde te ergui, então, pedra por
pedra, puxando por ridículas roldanas
meus pesados blocos
de ternura.

Deitado nesta cama
revejo o que podia ser teu corpo
na frase trémula que me arrasta
as têmporas. Sacudo puxo penso
com os sentidos livres
de combustão latente
em que me ardeu o sono.



armando silva carvalho
o comércio dos nervos 1968
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007



26 abril 2013

herberto helder / as musas cegas



I

Bruxelas, um mês. De pé sob as luzes encantadas.
Em noites assim eu extinguiria minha alma
cantando humildemente. Fecharia os olhos
sob os anéis dos astros, e entre os violinos
e os fortes poços da noite descobriria
a ardente ideia da minha vida.
Em noites assim amaria o fogo
da minha idade. Cantaria como um louco este grande
silêncio do mundo, vendo queimarem-se nas trevas
as vísceras tensas e os ossos e as flores dos nervos
e a cândida e ligeira arquitectura
de uma vida.


Bruxelas com as traves da minha cabeça
e uma grinalda de carvões em torno dos testículos
de um homem
bêbado da sua idade. Cantaria com esses testículos
negros, as lágrimas, o coração ao meio do nevoeiro
derramando o seu baixo e aéreo sangue,
a sua dor, o lírico
fervor, o fogo de porta entre os símbolos nocturnos.


Era tão pura a ideia de que o tempo começava
depois do verde e fértil e exaltado
mês da carne. Vergada sobre o livro onde o meu rosto
ardia,
a vida esperava com suas torres
vibrantes, seus grandes lagos
límpidos. E eu adormecia
e sonhava um homem em voz alta, um vidro
incandescente, uma fina flor
vermelha colocada sobre a mesa. Era tão violenta
a ideia de cantar sem fim,
até  que a voz consumisse esta garganta sombreada
de estreitos vasos puros.
- Cantar fixa e fria e intensamente
sobre a minha rasa
luminosa vida, ou sobre os campos transparentes e sombrios
de bruxelas do mundo.



herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996



25 abril 2013

mário cesariny / poema


  

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando -
a delimitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco



mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1982



sempre!


24 abril 2013

antónio josé forte / excepto tu meu amor excepto tu




MEU AMOR
minha aranha mágica agarrada ao meu peito
cravando as patas aceradas no meu sexo
e a boca na minha boca
conto pelos teus cabelos os anos em que fui criança
marco-os com alfinetes de ouro numa almofada branca
um ano dois anos um século
agora um alfinete na garganta deste pássaro
tão próximo e tão vivo
outro alfinete o último o maior
no meu próprio plexo

MEU AMOR
conto pelos teus cabelos os dias e as noites
e a distância que vai da terra à minha infância
e nenhum avião ainda percorreu
conto as cidades e os povos os vivos e os mortos
e ainda ficam cabelos por contar
anos e anos ficarão por contar


DEFENDE-ME ATÉ QUE EU CONTE
O TEU ÚLTIMO CABELO


antónio josé forte



23 abril 2013

wallace stevens / domingo de manhã


  
1
Complacências do roupão e café
Tardio e laranjas numa cadeira soalheira
E a verde liberdade de uma catatua
Sobre um tapete misturam-se para dissipar
A quietude sagrada de sacrifício antigo.
Ela sonha um pouco e sente a escura
Insinuação daquela velha catástrofe,
Enquanto uma calma escurece entre luzes de água.
As laranjas pungentes e asas verdes brilhantes
Parecem coisas em um cortejo dos mortos,
Serpenteando através de água imensa, sem som.
O dia está qual água imensa, sem som.
Acalmado para a passagem de seus pés sonhadores
Por cima dos mares, até à Palestina silenciosa,
Domínio do sangue e sepulcro.

2
Porque havia ela de entregar a sua riqueza aos mortos?
O que é a divindade se pode vir
Apenas em sombras silenciosas e em sonhos?
Não encontrará ela em confortos do sol,
Em fruta pungente e asas verdes brilhantes, ou então
Em qualquer bálsamo ou beleza da terra,
Coisas a serem acarinhadas como a ideia de céu?
A divindade tem de viver dentro dela:
Paixões da chuva, ou melancolias ao cair da neve;
Mágoas na solidão, ou exultações
Insubmissas quando o bosque floresce; emoções
Tempestuosas nas estradas molhadas em noites de outono;
Todos os prazeres e todas as dores, lembrando
O ramo do verão e o galho do inverno.
Estas são as medidas destinadas à sua alma.

(…)




wallace stevens
ficção suprema
trad. luísa maria lucas queiroz de campos
assírrio & alvim
1991

22 abril 2013

ricardo reis / tão cedo passa tudo quanto passa!





Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
                Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
                E cala. O mais é nada.



ricardo reis


21 abril 2013

eduarda chiote / dependência




Ó Leviatã,
ó adormecido em espessas trepadeiras
de água,
que sabes das correntes
ensandecidas pelo odor fundo
da lua?

Animal fervoroso
e marinho,
como pudeste seduzir-me
a ponto de me prometeres sempre
marés calmas,
tu, vampiro de naufrágios
e de sal?

Em verdade, ó adormecido em espessas
trepadeiras de água,
talvez haja um comprazimento
sem mistério
nas rochas poisadas sob o mar: que de outro
modo o coração delituoso das espécies
nelas cravadas
a ponto de ficarem cegas
e não por necessidade mas comodismo
do espírito,
Leviatã?, amigo meu ? diz-me.



eduarda chiote
a celebração do pó
asa
2001


19 abril 2013

yorgos seferis / o último dia




Estava o dia nublado. Ninguém se resolvia
soprava um vento ligeiro: «Não é o grego é o
siroco» disse alguém.
Alguns ciprestes esguios cravados na encosta e o
mar
cinzento com lagoas luminosas, mais além.
Os soldados apresentavam armas quando começou a chuviscar.
«Não é o grego é o siroco» a única resolução que
se ouviu.
Todavia sabíamos que na alba seguinte não nos restaria
mais nada, nem a mulher bebendo ao nosso lado o sono
nem a memória de que fomos homens alguma vez,
mais nada na alba seguinte.

«Este vento traz à mente a primavera» dizia a amiga
caminhando a meu lado olhando para longe «a primavera
que de repente caiu no inverno perto do mar fechado.
Tão inesperadamente. Passaram tantos anos. Como vamos
morrer?»

Uma marcha fúnebre vagueava por entre a chuva miudinha.
Como morre um homem? Estranho ninguém reflectiu
nisso.
E os que pensaram nisso era como memória de crónicas
velhas
da época dos cruzados ou da - em Salamina - batalha
naval.
Todavia a morte é algo que é feito; como morre
um homem?
Todavia alguém ganha a sua morte, a sua própria morte,
que não pertence a nenhum outro
e este jogo é a vida.
Baixava a luz sobre o dia nublado, ninguém se
resolvia.
Na alba seguinte não nos restaria nada; tudo entregue;
nem sequer as nossas mãos;
e as nossas mulheres trabalhando para outros nos fontanários e
os nossos filhos
nas pedreiras.
A minha amiga cantava caminhando a meu lado
uma canção amputada:
«Na primavera, no verão, escravos...»
Lembrávamo-nos de mestres anciãos que nos deixaram
órfãos.
Um casal passou a conversar:
«Fartei-me do crepúsculo, vamos para casa
vamos para casa acender a luz.»



yorgos seferis
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993



18 abril 2013

leopoldo de luis / os adormecidos




Sob esta mão da noite,
sob esta palma de silêncio,
se achata o homem, mudamente,
contra a terra do seu leito.

Uma densa e escura água empapa
os corpos de mudez e de cegueira.
A carne triste das fadigas
jaz, sob o teto, como morta.

(Alto, muito alto, inacessível
em sombra astral rebrilha o céu.)

São como bois que entre trevas
arrastam lentos e pesados
a pedra escura que do solo
liberta e sepulta ao mesmo tempo.
Fardos que grávidos se aprumam,
que alados buscam outra pátria.
Carne que cega a sua miséria,
que a desterra do seu peito.
Seres que abatem o cansaço
e seu diário ir morrendo,
sua indiferença ressentida,
seu não esperar Deus em Seu Reino.
Sobre o cansaço e a amargura,
sobre o suor, o ódio, o medo,
cai o silêncio da noite
como um prenhe ventre negro.

Homens voltam como crianças,
e aqui, estremecidos, dormem dentro.
Aqui vão lavrando com o sonho
o sulco fundo do seu túmulo.



leopoldo de luis
poesia espanhola do após-guerra
selecção e tradução de egito gonçalves
portugália
1962 



17 abril 2013

sebastião alba / palavras de ponta e mola




Palavras de ponta e mola
que anavalham
as roçagantes capas
de velhos mestres
de grácil esgrima
oleadas lâminas
nos umbrais dos becos
rasgando rápidas
a embuçada desumanidade
de quem passa
sórdidas, surtas
a reflectir o âmago
das sombras
Navalhas que alvejam
fantasmas de forasteiros
em busca de más mulheres
com terços taciturnos
Ruelas em roda
Pedras da periferia
Sevilhanas palavras
de ponta e mola.



sebastião alba
o ritmo do presságio
edições 70
1981