25 abril 2013

mário cesariny / poema


  

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando -
a delimitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco



mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1982



sempre!


24 abril 2013

antónio josé forte / excepto tu meu amor excepto tu




MEU AMOR
minha aranha mágica agarrada ao meu peito
cravando as patas aceradas no meu sexo
e a boca na minha boca
conto pelos teus cabelos os anos em que fui criança
marco-os com alfinetes de ouro numa almofada branca
um ano dois anos um século
agora um alfinete na garganta deste pássaro
tão próximo e tão vivo
outro alfinete o último o maior
no meu próprio plexo

MEU AMOR
conto pelos teus cabelos os dias e as noites
e a distância que vai da terra à minha infância
e nenhum avião ainda percorreu
conto as cidades e os povos os vivos e os mortos
e ainda ficam cabelos por contar
anos e anos ficarão por contar


DEFENDE-ME ATÉ QUE EU CONTE
O TEU ÚLTIMO CABELO


antónio josé forte



23 abril 2013

wallace stevens / domingo de manhã


  
1
Complacências do roupão e café
Tardio e laranjas numa cadeira soalheira
E a verde liberdade de uma catatua
Sobre um tapete misturam-se para dissipar
A quietude sagrada de sacrifício antigo.
Ela sonha um pouco e sente a escura
Insinuação daquela velha catástrofe,
Enquanto uma calma escurece entre luzes de água.
As laranjas pungentes e asas verdes brilhantes
Parecem coisas em um cortejo dos mortos,
Serpenteando através de água imensa, sem som.
O dia está qual água imensa, sem som.
Acalmado para a passagem de seus pés sonhadores
Por cima dos mares, até à Palestina silenciosa,
Domínio do sangue e sepulcro.

2
Porque havia ela de entregar a sua riqueza aos mortos?
O que é a divindade se pode vir
Apenas em sombras silenciosas e em sonhos?
Não encontrará ela em confortos do sol,
Em fruta pungente e asas verdes brilhantes, ou então
Em qualquer bálsamo ou beleza da terra,
Coisas a serem acarinhadas como a ideia de céu?
A divindade tem de viver dentro dela:
Paixões da chuva, ou melancolias ao cair da neve;
Mágoas na solidão, ou exultações
Insubmissas quando o bosque floresce; emoções
Tempestuosas nas estradas molhadas em noites de outono;
Todos os prazeres e todas as dores, lembrando
O ramo do verão e o galho do inverno.
Estas são as medidas destinadas à sua alma.

(…)




wallace stevens
ficção suprema
trad. luísa maria lucas queiroz de campos
assírrio & alvim
1991

22 abril 2013

ricardo reis / tão cedo passa tudo quanto passa!





Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
                Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
                E cala. O mais é nada.



ricardo reis


21 abril 2013

eduarda chiote / dependência




Ó Leviatã,
ó adormecido em espessas trepadeiras
de água,
que sabes das correntes
ensandecidas pelo odor fundo
da lua?

Animal fervoroso
e marinho,
como pudeste seduzir-me
a ponto de me prometeres sempre
marés calmas,
tu, vampiro de naufrágios
e de sal?

Em verdade, ó adormecido em espessas
trepadeiras de água,
talvez haja um comprazimento
sem mistério
nas rochas poisadas sob o mar: que de outro
modo o coração delituoso das espécies
nelas cravadas
a ponto de ficarem cegas
e não por necessidade mas comodismo
do espírito,
Leviatã?, amigo meu ? diz-me.



eduarda chiote
a celebração do pó
asa
2001


19 abril 2013

yorgos seferis / o último dia




Estava o dia nublado. Ninguém se resolvia
soprava um vento ligeiro: «Não é o grego é o
siroco» disse alguém.
Alguns ciprestes esguios cravados na encosta e o
mar
cinzento com lagoas luminosas, mais além.
Os soldados apresentavam armas quando começou a chuviscar.
«Não é o grego é o siroco» a única resolução que
se ouviu.
Todavia sabíamos que na alba seguinte não nos restaria
mais nada, nem a mulher bebendo ao nosso lado o sono
nem a memória de que fomos homens alguma vez,
mais nada na alba seguinte.

«Este vento traz à mente a primavera» dizia a amiga
caminhando a meu lado olhando para longe «a primavera
que de repente caiu no inverno perto do mar fechado.
Tão inesperadamente. Passaram tantos anos. Como vamos
morrer?»

Uma marcha fúnebre vagueava por entre a chuva miudinha.
Como morre um homem? Estranho ninguém reflectiu
nisso.
E os que pensaram nisso era como memória de crónicas
velhas
da época dos cruzados ou da - em Salamina - batalha
naval.
Todavia a morte é algo que é feito; como morre
um homem?
Todavia alguém ganha a sua morte, a sua própria morte,
que não pertence a nenhum outro
e este jogo é a vida.
Baixava a luz sobre o dia nublado, ninguém se
resolvia.
Na alba seguinte não nos restaria nada; tudo entregue;
nem sequer as nossas mãos;
e as nossas mulheres trabalhando para outros nos fontanários e
os nossos filhos
nas pedreiras.
A minha amiga cantava caminhando a meu lado
uma canção amputada:
«Na primavera, no verão, escravos...»
Lembrávamo-nos de mestres anciãos que nos deixaram
órfãos.
Um casal passou a conversar:
«Fartei-me do crepúsculo, vamos para casa
vamos para casa acender a luz.»



yorgos seferis
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993



18 abril 2013

leopoldo de luis / os adormecidos




Sob esta mão da noite,
sob esta palma de silêncio,
se achata o homem, mudamente,
contra a terra do seu leito.

Uma densa e escura água empapa
os corpos de mudez e de cegueira.
A carne triste das fadigas
jaz, sob o teto, como morta.

(Alto, muito alto, inacessível
em sombra astral rebrilha o céu.)

São como bois que entre trevas
arrastam lentos e pesados
a pedra escura que do solo
liberta e sepulta ao mesmo tempo.
Fardos que grávidos se aprumam,
que alados buscam outra pátria.
Carne que cega a sua miséria,
que a desterra do seu peito.
Seres que abatem o cansaço
e seu diário ir morrendo,
sua indiferença ressentida,
seu não esperar Deus em Seu Reino.
Sobre o cansaço e a amargura,
sobre o suor, o ódio, o medo,
cai o silêncio da noite
como um prenhe ventre negro.

Homens voltam como crianças,
e aqui, estremecidos, dormem dentro.
Aqui vão lavrando com o sonho
o sulco fundo do seu túmulo.



leopoldo de luis
poesia espanhola do após-guerra
selecção e tradução de egito gonçalves
portugália
1962 



17 abril 2013

sebastião alba / palavras de ponta e mola




Palavras de ponta e mola
que anavalham
as roçagantes capas
de velhos mestres
de grácil esgrima
oleadas lâminas
nos umbrais dos becos
rasgando rápidas
a embuçada desumanidade
de quem passa
sórdidas, surtas
a reflectir o âmago
das sombras
Navalhas que alvejam
fantasmas de forasteiros
em busca de más mulheres
com terços taciturnos
Ruelas em roda
Pedras da periferia
Sevilhanas palavras
de ponta e mola.



sebastião alba
o ritmo do presságio
edições 70
1981



16 abril 2013

glória gervitz / migrações (fragmentos)


  

E teria talvez valido a pena
deter-se nas pulsações daquela dor de cabeça
Deter-se
             Forçar o lugar do pó, as palavras
apertar o medo, romper a margem
                                        Regressar ao dia de hoje
 
Ela era uma mulher que comia apreensiva num
restaurante
                                       Vivia mais lentamente
Era como estar longe sem mudar de lugar
 
Estou cheia de paredes
Fotografias guardadas numa caixa de charutos
 
                                                É Segunda-Feira
Tinha um penteado que lhe cobria as orelhas
E cheirava sempre a lírios
                                       O que é que recordo?

Para quê pensar-me?
Também isto passará




glória gervitz
poemas
tradução de rosa alice branco
encontros de talábriga



15 abril 2013

mário-henrique leiria / a banana


  
Era uma Velha
tinha uma touca
estava sentada lá na Aldeia
com generais
imperativos e marciais
lá na Aldeia
também havia
alguns pardais
bastante menos que generais
e muito menos
marciais

mas o que se impunha
era educar
e impor a lei
em posição mais marcial
que a do pardal
que tal que tal que tal
e a Velha querida
perna estendida
e sorridente e cordeal
já prometi
a importação a exportação
e algum grão
de bico de bico de bico

parece então que foi
então
que quem não era general
nem considerado
com preparação operacional
na construção
reconstrução constipação
do bananal nacional
viva Tentugal
e não tinha o menor bico
pico pico serenico
sentiu que só sol
e só Velha com uma touca
que louca que louca que louca
era tristeza era pobreza
e coisa pouca
e foi-se embora
para Chucrute
para Bolero
para Zamora
e até pra França
deixando o bico
tão rico tão rico tão rico
marcando passo requiquitico
em contradança
com generais industriais
da construção
da exportação da importação
e de algum grão
de bico de bico de bico




mário-henrique leiria
novos contos do gin
estampa
1973



14 abril 2013

alberto augusto miranda / saída




mulher a fazer vento espantada
da falta do mesmo
assim não se pranteando
em ligeiros indícios com a mão lenta
e um pé semovente um pouco à frente
do que antes
ter uma fé em suave detérmino
devagar abandonando abandonos
finíssima brisa nascendo em si
sobrecalando rugidos, pancadas em rumor, gritos
por detrás de onde a vemos sair agora
em todos os lados o luar se faz divino
sopro.


alberto augusto miranda
semântica do olhar
ed. fenda
1997


13 abril 2013

craig raine / um marciano manda um postal para casa


  

Caxtons são pássaros mecânicos de muitas asas
E alguns são muito apreciados pela coloração -

fazem os olhos derreter-se
ou o corpo gemer de dor.

Nunca vi nenhum voar, mas
às vezes pousam na mão.

Névoa é quando o céu está cansado de voar
e descansa no chão a máquina macia:

então fica o mundo baço e livresco,
como gravuras sob papel de seda.

A chuva é quando a terra é televisão.
Tem a propriedade de tornar as coisas mais escuras.

O Modelo T é um quarto com a fechadura dentro -
dá-se a volta à chave e o mundo fica livre

para o movimento, tão veloz que há um filme
para ver tudo o que passou despercebido.

Mas o tempo está atado ao pulso
ou guardado numa caixa, fazendo um tiquetaque de impaciência.

Em lares, dorme um utensílio assombrado
que ressona quando alguém lhe pega.

Se o fantasma chora, levam-no
aos lábios e sossegam-no com sons

até dormir de novo. E no entanto acordam-no
de propósito, fazendo-lhe cócegas com um dedo.

Só às crianças se permite que sofram
em público. Os adultos vão para um quarto de castigo

com água, mas sem nada de comer.
Fecham a porta à chave e sofrem sozinhos

os barulhos. Ninguém está dispensado,
e a dor de cada um tem um cheiro diferente.

À noite, quando as cores todas morrem,
escondem-se aos pares

e lêem acerca de si próprios
A cores, de pálpebras cerradas. 




craig raine
leituras poemas do inglês
trad. joão ferreira duarte
relógio d´água
1993