20 março 2013

alejandra pizarnik / o despertar




“Senhor
a gaiola transformou-se em pássaro
e voou
e o meu coração está louco
porque uiva à morte
e sorri por detrás do vento
aos meus delírios

Que hei-de fazer com o medo
Que hei-de fazer com o medo

A luz já não dança no meu sorriso
nem as estações queimam pombas nas minhas
ideias
As minhas mãos despiram-se
e foram até onde a morte
ensina os mortos a viver

Senhor
o ar castiga-me o ser
Por detrás do ar há monstros
que bebem do meu sangue

É  o desastre
é a hora do vazio no vazio
é o instante de aferrolhar os lábios
Ouvir gritar os condenados
contemplar cada um dos meus nomes
enforcados no nada

Senhor
eu tenho vinte anos
e também os meus olhos têm vinte anos
e no entanto não dizem nada

Senhor
eu consumei a minha vida num instante
Estalou a última inocência
Agora é nunca ou jamais
ou simplesmente foi

Porque é que não me mato defronte a um espelho
e desapareço para ressurgir no mar
onde me havia de esperar um grande navio
com as luzes acesas?

Porque é que não arranco as veias
e faço com elas uma escada
para subir ao outro lado da noite?

O princípio deu à luz o final
tudo permanecerá igual
os sorrisos gastos
o interesse interessado
as perguntas de pedra em pedra
os gestos que arremessam o amor
tudo continuará igual

E no entanto os meus braços insistem em abraçar o mundo
porque ainda não lhes ensinaram
que já é demasiado tarde

Senhor
Atira os cadáveres do meu sangue

Recordo a minha meninice
quando eu era uma anciã
as flores morriam nas minhas mãos
porque a dança selvagem da alegria
lhes destruía o coração

Recordo as negras manhãs de sol
quando era menina
quer dizer ontem
quer dizer há séculos

Senhor
a gaiola transformou-se em pássaro
e devorou-me a esperança

Senhor
a gaiola transformou-se em pássaro
Que hei-de fazer com o medo?”




alejandra pizarnik
tradução livre


19 março 2013

àlex susanna / recordação de lisboa




Como me agradam estas vozes cansadas,
escuras, pesadas, calmas como bois,
grávidas de luto e de saudade
e ao mesmo tempo de uma fúria contida,
centrada na aspereza da glote,
vozes que parecem vir de muito fundo,
de se terem arrastado por muitas ruas
repartidas entre o desejo e o esquecimento,
vozes que vão aquecendo pouco a pouco,
engrossando, empastando e cozendo
até coalhar de todo consigo mesmas:              
são como um grande poço quase seco
de onde é difícil tirar água no início,
mas quando nos chega a sua fragância,
que jorro de vida não supura
e como ficámos impregnados e húmidos!
 
Isso podem ser canções de taverna
ou os versos de algum velho queixoso
que ainda tem vontade de escrever.




àlex susanna
poemas
tradução de egito gonçalves



18 março 2013

paul éluard / tristeza de ondas de pedra




Tristeza de ondas de pedra.

Lâminas apunhalam lâminas
Vidros quebram vidros
Lâmpadas apagam lâmpadas.

Tantos laços quebrados.

A flecha e a ferida
O olho e a luz
A ascensão e a cabeça.

Invisível no silêncio.



paul éluard
algumas palavras (antologia)
tradução antónio ramos rosa e luiza neto jorge
dom quixote
1977




16 março 2013

laura riding / o vento, o relógio, o nós




O vento penetrou por fim no relógio -
Cada minuto por si próprio.
Já não há sessenta,
Já não há doze,
É tão tarde quanto cedo.

A chuva dissipou os números.
As árvores não cuidam do que se passa.
O tempo tornou-se uma paisagem
De estóicos ramos e folhas suicidas -
Tão depressa pintados quanto despintados.
Ou talvez seja demais dizer isso,
Com o relógio a boiar em si próprio
E os minutos de licença para a morte.

O mar não é de todo imagem.
Para o mar, pois: agora é tempo,
E cada mortal é um marinheiro
Que jurou vingança contra o vento,
Arrojar a vida de novo aos finos dentes
De onde lhe saiu o primeiro silvo,
Um estúpido desafio de não se sabe o quê,
Guinchando em redor do relógio examinante.

Agora não existe sopro ou tiquetaque.
O barco afundou-se com os homens,
O mar, com o barco, o vento, com o mar.
O vento penetrou por fim no relógio,
O relógio penetrou por fim no vento,
O mundo saiu por fim de si próprio.
Por fim fazemos sentido, tu e eu,
Tu, solitário sobrevivente no papel,
O ousar do vento e o cuidar do relógio
Tornados uma língua sem voz,
E eu, a história aí silenciada -

Há de mim algo mais a dizer?
Digo eu mais do que a hesitação estrangulada de si
A repetir-me palavra por palavra,
Sem que uma pausa altere o guião,
Ou talvez querendo dizer outra coisa?


laura riding
leituras poemas do inglês
trad. joão ferreira duarte
relógio d´água
1993



15 março 2013

john ashbery / andando por aí




Que nome tenho eu para ti?
Decerto não há nome para ti
No sentido em que as estrelas não têm nomes
Que de algum modo lhes servem. Andando por aí,

Um motivo de curiosidade para alguns,
Mas tu estás demasiado preocupado
Com a nódoa secreta do outro lado da tua alma
Para falar muito, e vagueias por aí,

Sorrindo para ti e para os outros.
Chega a ser um tanto solitário,
Mas ao mesmo tempo desanimador,
Contraproducente, quando percebes uma vez mais

Que o caminho mais longo é o mais eficaz,
Aquele que serpenteava por entre as ilhas, e
Parecia que andavas sempre em círculo.
E agora que o fim está perto

Os gomos da viagem abrem-se como um laranja.
Lá dentro há luz, e mistério e sustento.
Anda ver. Vem, não por mim, mas por isso.
Mas se eu ainda lá estiver, concede que nos possamos encontrar.



john ashbery
uma onda e outros poemas
tradução colectiva / joão barrento
poetas em mateus
quetzal editores
1992



14 março 2013

leopoldo maria panero / o circo




Dois atletas saltam de um lado para o outro da minha alma
aos gritos, a troçar da vida:
e não sei os seus nomes. E na minha alma vazia escuto
continuamente os trapézios a balançar. Dois
atletas saltam de um lado para o outro da minha alma
contentes por ela estar tão vazia.
E ouço
ouço no espaço sem sons
uma vez e outra vez os trapézios que rangem
uma vez e outra vez.
Uma mulher sem rosto canta de pé sobre a minha alma,
uma mulher sem rosto sobre a minha alma no chão,
a minha alma, a minha alma: e repito essa palavra
não sei se como uma criança chamando a sua mãe à luz,
em confusos sons e com prantos, ou muito simplesmente
para fazer ver que não tem sentido.
A minha alma. A minha alma
é como terra dura que calcam sem a ver
cavalos e carroças e pés, e seres
que não existem e de cujos olhos
brota o meu sangue hoje, ontem, amanhã. Seres
sem cabeça cantarão sobre o meu túmulo
uma canção incompreensível. E
dividirão entre si os ossos da minha alma.
A minha alma. O meu
irmão morto fuma um cigarro junto de mim.



leopoldo maria panero
poesia espanhola de agora vol. I
tradução de joaquim manuel Magalhães
relógio d´água
1997


13 março 2013

alexandre o'neill / em todo o caso




Remancha, poeta,
Remancha e desmancha
O teu belo plano
De escrever p'la certa.
Não há "p'la certa", poeta!

Mas em todo o caso acerta
Nem que seja a um verso por ano...



alexandre o'neill
tomai lá do o'neill, uma antologia
círculo de leitores
1986



12 março 2013

pier paolo pasolini / pedro II


  
quarta-feira, 6 de março (fim do dia)

Não sei que amargura, que fraterna tristeza
nos olhos dos amigos: que terrível luz
de vingança, na luz dos inimigos.
Um deles tem mesmo a pupila
amarelada de ódio, o ódio de quem confunde
as bênçãos e as maldições da vida com as suas,
como um pimento venenoso que o faz delirar.
(omissis) cantará a sua romanza, macabra Callas
Clérigofascista, e (omissis) a minha condenação.
Pedro II, Pastor Poeta! Porque só um poeta
Poderá saber que tem de morrer!
Amanhã, Nostradamus registará
um dos cem milhões de actos que preparam
a tua coroação, o teu martírio.



pier paolo pasolini
poemas
de «poesia in forma di rosa»
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005



11 março 2013

fiama hasse pais brandão / o miradouro


  

Temi o verão, o tempo. Aproximava-se.
Vi-o transparecer do que é parado,
de bermas e de vistas.
As pedras de Marvão estavam ligadas,
no miradouro, às pedras
de paisagem. Em tudo era a passagem
da temperatura, o verão
que começava - eu vi - entre muralhas, as aves,
as gralhas de alentejo transmudavam-se
tão quentes, como poderiam ser os fogos
da vila mais vorazes?
esses fogos nas lajes, a mesma combustão
das pedras, a denegrida pele dessas lareiras
em redor.

O temor - era o poente - então reverberava
sobre as partes do horizonte, o monte só
da vila, logo a extensão das terras
baixas, brenhas, os tumultos
de um miradouro alto despenhado
sobre sopés, profusos
traços de uma estação de tempo
que me deteve,
tépida, no miradouro, assim como
temendo a posição de ver
temia a vez
da solidão.




fiama hasse pais brandão
líricas portuguesas
edições 70
1983



10 março 2013

ruy belo / cerimonial



Eu vou colhendo com unção os dias
conforme tu os confias
à minha mão:
leves vestes que enfio
quando me despe o coração




ruy belo
tempo
todos os poemas I
assírio & alvim
2004



09 março 2013

luis alberto de cuenca / mal de ausência




Desde que partiste, não sabes como devagar
passa o tempo em Madrid. Vi um filme
que terminou apenas há um século.
Não sabes que lento corre o mundo sem ti, noiva distante.

Os amigos pedem-me que volte a ser o mesmo
que o coração apodrece de tanta melancolia,
que a tua ausência não vale tanta ansiedade inútil,
que pareço um exemplo de subliteratura.

Levaste, porém, a minha paz na tua bolsa,
os fios do telefone, a rua em que vivo.
Mandaste a minha casa tropas ecologistas
saquear-me a alma contaminada e triste.

E, para cúmulo, continuo a sonhar com gigantes
e contigo, despida, beijando-lhes as mãos.
Com deuses a cavalo que destroem a Europa
e cativa te guardam até que eu esteja morto.



luis alberto de cuenca
tradução de manuel rodrígues



08 março 2013

david mourão-ferreira / soneto do cativo



Se é sem dúvida Amor esta explosão
de tantas sensações contraditórias;
a sórdida mistura das memórias
tão longe da verdade e da invenção;

o espelho deformante; a profusão
de frases insensatas, incensórias;
a cúmplice partilha nas histórias
do que outros dirão ou não dirão;

se é sem dúvida Amor a cobardia
de buscar nos lençóis a mais sombria
razão de encantamento e de desprezo;

não há dúvida, Amor, que te não fujo
e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
tenho vivido eternamente preso!




david mourão ferreira
os quatro cantos do tempo
guimarães editores
1963



07 março 2013

josé miguel silva / memórias escolhidas




Se houvesse um campeonato regional
de solidão, eu teria conquistado,
nesse biénio, a medalha de bronze.
Se não acreditam, perguntem aos meus versos.

Enfrentava com graça, nesse tempo,
as temperaturas mais baixas, desde que
 tivesse à mão as páginas de um livro
a cujo discurso arrancava palavras

para aquecer os dedos. Lia toda a noite
com os olhos acesos e quanto mais lia
menos percebia o que havia de querer.
Quem tinha razão era a minha alma: ler muito alto

dá conta da vida, deixamos de saber
apertar os cordões ou o que fazer com as mãos
quando vemos os minutos a cerrar fileiras
e ninguém para cobrir a nossa retirada.




josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d´água
2003