01 fevereiro 2012

gil t. sousa / recado





45

amei-vos

como uma árvore
ama os seus pássaros



gil t. sousa
falso lugar
2004




31 janeiro 2012

jorge velhote / acqua

   

                                                           para António Osório


                                                                          Ora passa e declina
                                                                          in quest'autunno che inced
                                                                          con lentezza indicibille,
                                                                          il miglior tempo della nostra vita     
                                                                                                                              
                                                                               Cardarelli


1.

eu não tinha relógio
nem húmidos dedos para habitar
de palavras
apenas lentíssimos olhos
sobre a chuva
como fogo

mas como contemplar teu rosto
crepitando
se das cinzas do vinho e do mel
cresciam as aves
que ocultavas
como música

como invadir a casa
de silêncio
se nas  pálpebras da água

e sobre a terra
um ofício de segredos
como láagrimas

me perturba


2.

eu começara perdendo fascinado
o outono
a azul respirado límpido

mas gravando
o corpo desses agudos
nomes
na loucura da água
recomeço rente às pedras
il miglior tempo della nostra vita







jorge velhote
1979



30 janeiro 2012

caio resende / meninos e bruxas



I

Hoje tenho a mão mais leve,
cansei de pesar sobre as coisas
o que meu peito e alma não puderam.
Levo inda, por baixo de um segredo,
um par de coisas de que tenho medo,
são coisas bobas de menino,
como, por exemplo, ficar de ponta cabeça
e ver alguém se aproximando  – parece bobo,
mas o que esperar de gente com a cabeça tão no céu?
E tenho medo dos caminhos mais seguros,
desde muito, muito menino,
pois lá é que sempre as coisas ficam chatas,
ficam como se sempre fossem a mesma coisa.
Lá, os rios pararam de correr e os meninos
chovem para dentro




caio resende
meninos e bruxas
2011



29 janeiro 2012

michális ganas / porta



Porta cheia de nós
remorsos da nogueira.
Gravas as tuas iniciais a canivete,
vais para a escola atrasado.
O professor que bata,
tens na boca
o gosto da imortalidade.

Diz-me se encontraste o canivete.
A porta, sei que a mudaram.





michális ganas
akáthistos deipnos
atenas, 1985.
tradução de manuel  resende


28 janeiro 2012

rui costa / autobiografia






Não preciso mas tu sabes como eu sou
Encaminho-me pouco divirto-me assim nas copas
Das árvores soprando pensamentos para o mundo que há de noite.
As pessoas quando acordam são outras, já sabias,
Essa névoa contemporânea do medo miudinho
Que perdemos nas cidades e nos corpos, tu entraste
Antes de mim nos jogos, o enxofre da música e o
Lago do feitiço, inocente homem breve que sonha
Tu bem sabes.
Depois aluguei a bruxa por uma vasta noite.
E a minha vida mudou, a noite cresceu,
A vertigem ardeu-me nos braços até a sangria
Do tédio quando para sempre julguei que te perdia.
Na luta perdi um ou dois braços,
Mais do que o que tinha. Mas esta memória é um palácio,
São corais no pensamento. Jardins e fantasmas,
O gume nas mãos sorvendo, criança estratosférica
E profunda: sem braços e agora sem mais nada.
Não me percebeste, enchi-me de fúria.
É uma arte, queria eu dizer, matar sem retrocesso e
Atraso   –  ah aqueles braços para apoiar as mãos  ─  ,
Ceifando. Saturno e o vento na proa erguendo.
O  navio no mar parado, parado: completamente.
Parado como dizer? Não dizer, eu sou uma vida
Medonha e múltipla. E agora descanso
Deitado nestas mãos que mexem
Sem apoio, sabes, nascendo dos teus olhos
P’la manhã.





rui costa
a nuvem prateada das pessoas graves
quasi
2005



27 janeiro 2012

eugénio de andrade / da ignorância




A mão
que entregava à tua
os primeiros sinais do verão
já não sabe o caminho ─  é como se
em vez de aprender fosse cada vez mais
e mais ignorante. Ou ignorar
fosse todo o saber.




eugénio de andrade
poesia
rente ao dizer
fundação eugénio de andrade
2000





26 janeiro 2012

al berto / crepúsculo




(…)

Chegava a qualquer cidade e alugava dois ou três quartos, distantes uns dos outros, mas nunca pernoitava duas vezes de seguida no mesmo.

Em todos eles simulava viver há muito tempo. Num, espalhava bugigangas de plástico, compradas aos vendedores ambulantes, sobre os poucos desengonçados móveis. Noutro, pendurava roupa nos pregos que tinham servido para pendurar estampas baratas, e que alguém se dera ao incómodo de roubar.

Por vezes, deitado, olhava para os pregos espetados nas paredes e tentava perceber o que levava alguém a roubar aquelas arrumadinhas paisagens suíças que, infalivelmente, decoravam os quartos das pensões. E adormecia a pensar que no outro quarto cobrira as paredes com fotografias, e era nesse quarto que lhe apetecia estar.

(…)





al berto
lunário
assírio & alvim
1999




25 janeiro 2012

ted hughes / fidelidade




Era um lugar para viver. Andava
só a ver passar o tempo, a namorar-te,
a flutuar na maré da manhã com as confusas sensações
dos meus vinte e cinco anos. Esvaziada e redecorada
À la mode, a Alexandra House
tinha-se tomado a sopa dos pobres. Estes eram os dias
anteriores à moda vanguardista dos cafés.
A ruidosa cantina do Restaurante Britânico,
uma das marcas deixadas pela guerra,
era um lugar para retemperar noitadas com pequenos-almoços.
Mas a Alexandra House era o lugar onde se ia para ser visto.
As raparigas que recebiam viviam no andar de cima,
acompanhadas por um grupo de perdidos, pessoas que só
  dormiam de dia,
exaustos de andarem pela noite. Nem sei como
consegui um colchão ali, num quarto do andar de cima,
com vista para Petty Cury. Um colchão
sem mais, em cima de umas tábuas nuas, num quarto vazio.
Era tudo o que eu tinha, o meu caderno e aquele colchão.
Sob os pegajosos ouriços dos castanheiros que se abriam,
pelo mês de Junho, abandonei o emprego, preocupava-me
só contigo, esbanjando tudo o que tinha poupado.
Livre da Universidade perdia-me
nas suas liberdades. Todas as noites
dormia naquele colchão, debaixo de uma manta,
com uma rapariga encantadora, que acabava de se escapar
ao marido para aquela experiência limite
de servir na sopa dos pobres. Que
cavalheirismo se apoderou de mim? Penso nisto tudo
como se tivesse acontecido num tempo que nunca passou,
que nunca usei, e ainda está, portanto, em meu poder.
Essa rapariga e eu dormimos nos braços um do outro,
nus e tranquilos como amantes, todas as noites, durante um mês,
sem nunca termos feito amor. Uma qualquer lei sagrada
tinha sido inventada só para mim.
Mas também ela lhe obedecia, como uma sacerdotisa,
delicada e meiga e completamente nua a meu lado.
Seguia com o dedo os arranhões que tu tinhas acabado
  de inscrever
a toda a largura das minhas costas, e até parecia que se queria
  juntar a mim
na minha obsessão, na minha concentração,
para manter a minha preocupação intacta.
Nem uma única vez me convidou, nunca tentou nada.
E eu nunca movi um dedo para além
de um consolo fraterno. Eu era como uma irmã,
e aquilo nunca me pareceu antinatural. Estava absorto,
tão fechado em ti, de uma forma tão cega,
que tudo o que não fosses tu não existia para mim.
E ainda hoje medito — embora já tenha dúvidas
se é motivo para me orgulhar, ou para me lamentar. A sua amiga
tinha um quarto maior, e era mais selvagem.
Mudámo-nos e ficámos no quarto dela. Aquele quarto enorme
transformou-se em dormitório e em quartel-general
alternativo a St Botolph’s. Bonita e roliça,
com um desenvergonhado riso de dentes ralos, esta
  sua amiga
fez tudo o que pôde para me ter dentro dela.
E nunca saberás da batalha
que eu travei para manter o sentido às minhas palavras,
no mundo que nós estávamos a construir.
Eu tinha medo que, se perdesse aquela luta,
alguma coisa nos abandonasse. Erguendo do solo uma
daquelas raparigas nuas, enquanto elas me sorriam
nos seus vinte e poucos anos, coloquei-as
no limiar do nosso improvável futuro
como aqueles que, precisando de proteger a sua casa
tinham por hábito sepultar, no limiar da nova casa,
uma criança inocente.





ted hughes
cartas de aniversário
trad. de manuel dias
relógio d´água
2000





24 janeiro 2012

leonardo chioda / um fausto




quanta vantagem
sobre o erro

tem o demônio
da certeza

no rolar do precipício
em carne





23 janeiro 2012

wislawa szymborska / o terrorista… olha




A bomba vai explodir no bar às treze e vinte.
São neste momento treze e dezasseis.
Alguns conseguem ainda entrar,
alguns sair.

O terrorista passou já para o outro lado da rua.
A esta distância ficará livre de perigo
e, quanto a vista, é como no cinema:

Uma mulher de casaco amarelo… entra.
Um homem de óculos escuros… sai.
Rapazes de jeans… conversam.
Treze horas, dezassete minutos e quatro segundos.
Aquele baixinho tem sorte e senta-se na vespa,
mais um tipo alto que entra.

Treze horas, dezassete minutos e quarenta segundos.
Passa uma moça de fita verde nos cabelos.
Só que o autocarro oculta-a.

Treze e dezoito.
A rapariga desapareceu.
Se foi bastante estúpida para entrar ou não,
isso se saberá pelas notícias.

Treze e dezanove.
Parece que ninguém entra.
Há porém um careca gordo que sai.
Mas olha, parece que procura algo nos bolsos,
faltam treze segundos para as treze e vinte,
e ele volta a entrar em busca das luvas que perdeu.

São treze e vinte.
Como o tempo voa.
Deve ser agora.
Ainda não.
Sim, é agora.
A bomba… explode.






wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998





22 janeiro 2012

wallace stevens / o boneco de neve





Há que ter um espírito de Inverno
Para olhar a geada e os ramos
Dos pinheiros encrostados de neve;

E ter tido frio muito tempo
Para ver os zimbros encrespados com gelo,
Os abetos eriçados ao brilho distante

Do sol de Janeiro; e não pensar
Em qualquer desgraça no som do vento,
No som de algumas folhas,

Que é o som da terra
Cheia do mesmo vento
Que sopra no mesmo lugar deserto

Para o ouvinte, que ouve na neve,
E, ele mesmo nada, não vê
Nada que lá não está e sim o nada que vê.





wallace stevens
ficção suprema
trad. luísa maria lucas queiroz de campos
assírrio & alvim
1991




21 janeiro 2012

franco loi /a tarde cai e nós aqui à espera.

   



A tarde cai e nós aqui à espera.
Estamos aqui á escuta. Mas que esperamos nós?
Que antigas são as casas! Como é distante
a cidade, esses rumores, a lua...
No desfazer da tarde o ar suspende-se
e como que se esconde no reflexo das nuvens
o que entre nós perpassa ao olhar as caras...
O poeta pensa e, débil, sua voz
fala de qualquer coisa que já foi.
Mas que esperamos nós? Porque estamos à escuta?
Redonda, a lua sobre Milão se mira
e grava memória o ar sobre as nossas faces.




franco loi
memória
colecção poetas em mateus
trad. rosa alice branco
quetzal
1993









20 janeiro 2012

sebastião alba / esplanada




Como o copo que se eleva lentamente,
glacial, numa tarde de remorso,
os teus beijos duma grande difusão clara,
e o fumo dum cigarro à procura
dum ponto no mar.




sebastião alba
o ritmo do presságio
edições 70
1981